(Dante Gabriel Rossetti: Mnemosyne, a deusa da memória)
Algum tempo atrás, numa festa de cantadores em São José do
Egito, subi ao palco para recitar uns versinhos. Macaco velho que sou, tinha no
bolso um dos meus cordéis, pra não me perder. Mal o puxei do bolso, vi a
platéia se desinflar da própria expectativa.
O Vale do Pajeú não é apenas um lugar onde se venera a deusa Poesia. Venera-se igualmente a deusa Memória, as duas uma ao lado da outra, em dois altares igualmente enfeitados de fitas, ex-votos e velas. Ali, não basta saber fazer versos; não basta entender o que é um verso bem feito; não basta ter o tutano e a medula necessários para subir num palco e enfrentar o Monstro de Mil Rostos. Tudo isso não é nada quando o cara escreve um poema e sobe para declamá-lo com um ridículo papel na mão. Com uma “cola” na mão, na frente de todo mundo.
O Vale do Pajeú não é apenas um lugar onde se venera a deusa Poesia. Venera-se igualmente a deusa Memória, as duas uma ao lado da outra, em dois altares igualmente enfeitados de fitas, ex-votos e velas. Ali, não basta saber fazer versos; não basta entender o que é um verso bem feito; não basta ter o tutano e a medula necessários para subir num palco e enfrentar o Monstro de Mil Rostos. Tudo isso não é nada quando o cara escreve um poema e sobe para declamá-lo com um ridículo papel na mão. Com uma “cola” na mão, na frente de todo mundo.
O camarada que precisa ler um poema é porque não gravou o
poema em si mesmo, não fez do poema uma parte de si, ao preço de minutos ou
horas de um ritual mnemônico que não está muito distante da prece religiosa.
Por outro lado, essa peculiar dramaturgia pajeuzeira mostra o quanto está verde e viçoso o ramo da oralidade entre nós. Os recitadores são às vezes jovens, rápidos, precisos, verdadeiras metralhadoras, de carga inesgotável e transbordante. Outras vezes são anciãos compassados capazes de falar lentamente, sem nunca alterar o passo, seja rememorando, seja reproduzindo o verso, e dali passar por associação de idéias para outro parecido, e deste para um terceiro porque tocou no nome de Fulano, e daí brota mais um episódio semelhante... e as horas se passam e aquela fita não para de rodar.
Por outro lado, essa peculiar dramaturgia pajeuzeira mostra o quanto está verde e viçoso o ramo da oralidade entre nós. Os recitadores são às vezes jovens, rápidos, precisos, verdadeiras metralhadoras, de carga inesgotável e transbordante. Outras vezes são anciãos compassados capazes de falar lentamente, sem nunca alterar o passo, seja rememorando, seja reproduzindo o verso, e dali passar por associação de idéias para outro parecido, e deste para um terceiro porque tocou no nome de Fulano, e daí brota mais um episódio semelhante... e as horas se passam e aquela fita não para de rodar.
E de pouquinho, daquelas águas escuras e profundas, daquela nossa cisterna cheia de ecos, começa a brotar um pedaço, um cotoco de verso aqui, um frangalho de rima ali, uma redondilha rasgada acolá, e outras palavras vêm surgindo luminosas, dão um pequeno pulinho ao chegar à superfície, ficam boiando ali, e como por um milagre da matéria essas palavras vão se alinhando, ganhando forma e sentido, como se tivessem vindo todas soltas e misturadas mas com a ordem de se recompor quando chegassem à tona, e você cofia o rosto grisalho ou imberbe, ergue o indicador e começa a recitar.
Um comentário:
Ótimo texto! A memória é cara à retórica clássica, que se estrutura em cinco partes: inuentio, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio.
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