quinta-feira, 26 de março de 2015

3772) A perna artificial (27.3.2015)



Era uma vez um cara que morava perto da linha do trem, e costumava ficar às vezes sentado no chão, perto dos trilhos, pensando na vida. Um dia ele estava distraído, com a perna esquerda em cima dos trilhos, e o trem passou e arrancou a perna dele.  Grande comoção na família, que se mobilizou, fez lista de doações, livro-de-ouro, o escambau, e levantou um milhão de cruzeiros (a história é antiga) para poder dar a ele uma caríssima perna artificial. Foi feito, e a vida voltou à normalidade. Uma tarde, ele estava mais uma vez sentado junto da linha do trem, desta vez com as duas pernas em cima dos trilhos. À distância, o trem apitou para avisar que se aproximava. Ouvindo o apito, ele deixou a perna de carne e osso em cima do trilho e afastou a outra, comentando: “Esta aqui me custou um milhão de cruzeiros!”.

Esta é uma das piadas mais antigas que me lembro de ter escutado. Marcou minha infância, e me fazia rir muito. Quando comecei, já por volta dos vinte-e-tantos anos, a refletir sobre o humor e os processos que ele utiliza, percebi que cada vez que pensava nela surgiram novas associações de idéias. A mais importante, acho, é que ela é uma metáfora terrível da nossa época. A gente tende a valorizar o que conquistou com esforço próprio, não o que trouxe de nascença. A gente valoriza mais a tecnologia do que a biologia, mais a civilização do que a natureza. (Um amigo já me disse: “eu cuido melhor do meu computador do que de mim”.) E com isso corre o risco de ficar sem as duas. É uma boa fábula moral para este Brasil que, segundo Glauber Rocha, “pode beber água de coco de graça, mas prefere pagar por uma Coca-Cola”.

Hoje, o que mais me chama a atenção é o mecanismo tragédia-grega de uma historieta assim. Tudo é fado, tudo é destino, e não se vê um dedo sequer de livre arbítrio nesse personagem aparentemente tão bem posto em si mesmo. Sentar com as pernas em cima de uma linha do trem é meio caminho andado para perdê-las. E quando isto acontece, pensam que o cara ficou com um trauma, uma repulsa pelas coisas ferroviárias? Não, ele continua a sentar no mesmo lugar, com as duas pernas ali, fazendo por conta própria uma reconstituição ritual do trauma, quase que implorando aos Deuses do Plot para que aquele fato espantoso se repita. Anedota não é realismo, é fabulação. Tentar interpretá-la através de motivações emocionais realistas é perdido. Há uma certa literatura (não toda, é claro) que também funciona assim. Críticos desperdiçam hectares de papel cobrando verossimilhança de personagens que são meras funções de uma história que precisa acontecer de uma maneira tão implacável quanto a aproximação de um trem.




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