terça-feira, 27 de janeiro de 2015

3721) "O Pedestre" (27.1.2015)



Reza a lenda que alguns anos atrás Bob Dylan foi fazer um show numa cidade tamanho médio qualquer. Chegou na véspera, instalou-se no hotel, e ao anoitecer saiu sozinho para dar uma volta no quarteirão. 

Era um desses bairros pacatos, casinhas simples, com gramados sem cercas etc. e tal.  Ele saiu pelas calçadas, gozando o sabor e o prazer do anonimato (coisa que não é pra qualquer um), até que um carro da polícia parou e os agentes desceram empunhando lanternas e armas. Mandaram que erguesse os braços.  Alguém tinha visto um homem desconhecido, de casaco e chapéu, rondando as casas; calafrios de alarma percorreram aquelas vulneráveis medulas suburbanas.  

A rádio patrulha foi chamada, e não adiantou dizer “Sou Bob Dylan, o roqueiro.”  E daí?  Os policiais eram jovens, nunca tinham ouvido falar.  Ele levou o resto daquela noite para desmanchar o mal entendido.

S. J. Perelman, escritor e humorista norte-americano, trabalhou em Hollywood.  Numa entrevista à Paris Review, falou desse período, quando o repórter lhe perguntou sobre William Faulkner, que também mamou nas tetas do Bezerro de Ouro, por mais equívoca que seja esta metáfora. 

Perelman disse: “Às vezes, num domingo de manhã, ele passava caminhando em frente à casa em que eu morei, em Beverly Hills. Eu reparava nele somente porque o simples fato de sair andando, naquela área, o caracterizava como um excêntrico.  E ele acabou se metendo em complicações.  Um carro da patrulha o deteve uma vez e o fez passar um mau pedaço. A polícia estava convencida de que ele era olheiro de alguma quadrilha que roubava jóias, e estava sondando as residências elegantes.”

Um dos primeiros contos de Ray Bradbury que li foi “O Pedestre” (1951), incluído no livro Os Frutos Dourados do Sol. Nele, um homem sai caminhando à noitinha, no ano de 2053, por uma cidade onde todo mundo está trancado em casa, vendo TV. Estão desertas as calçadas. Um carro da polícia o aborda.  Ele diz que não fez nada demais, está apenas caminhando.  A polícia ordena que ele entre, e o leva consigo. “Para onde?”, pergunta ele. E a resposta: “Para o Centro Psiquiátrico de Pesquisa de Tendências Regressivas”.

O que é a ficção científica?  É a literatura que prevê o futuro?  Não.  É a literatura que olha o presente, vê o presente em movimento, vê o presente como uma forma que se avoluma, cresce, toma conta do mundo.  Presente e futuro são pontos diferentes de uma única curva. A beleza da FC é quando ela, usando apenas dois pontos, nos faz sentir a força da curva, a grandeza da curva, a ameaça terrível guardada em cada curva que se ergue à nossa frente bela como um tsunami.




2 comentários:

Hugo Ayslan disse...

Torquato também gostava de caminhar na madrugada...rs:"Três da madrugada/ Quase nada/ Na cidade abandonada/ Nessa rua que não tem mais fim/ três da madrugada/ tudo é nada/ a cidade abandonada/ e essa rua não tem mais/ nada de mim.../ nada/ noite alta madrugada/ na cidade que me guarda/ e esta cidade me mata/ de saudade/ é sempre assim.../ triste madrugada/ tudo é nada/ minha alegria cansada/ e a mão fria mão gelada/ toca bem leve em mim/ saiba:/ meu pobre coração não vale nada/ pelas três da madrugada/ toda palavra calada/ nesta rua da cidade/ que não tem mais fim/ que não tem mais fim.”

Josie disse...

Pois é... Esse aqui também gostava de caminhar:

http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/andarape.pdf

abs
J.