sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

1585) O ginecologista no harém (11.4.2008)

Todo sujeito muito perseguido se torna vingativo quando enriquece, mas se torna magnânimo se ficar muito milionário. 

É o caso do escritor Paulo Coelho. Cada livro que ele publica é tratado como se fosse um tapete velho que a gente pendura num varal e mete a pancada para tirar a poeira acumulada ali há cem anos. 

Bater nos livros de Paulo Coelho é um esporte nacional. E no entanto ele trata os críticos com uma benevolência zen, e afirma: “Cabe ao leitor ler, ao crítico criticar, e ao escritor escrever”. 

Numa coluna recente na revista dominical do “Globo”, PC citou uma frase de Brendan Behan: “Críticos são como eunucos em um harém. Teoricamente, eles sabem qual a melhor maneira de fazer, mas não conseguem ir além disso”. 

Na qualidade dupla de escritor e de crítico (embora qualquer um possa me considerar mau escritor e mau crítico), acho que posso contribuir com algo para essa descrição. Um crítico não é necessariamente um eunuco, alguém incapaz de fazer o que critica. Alguns dos melhores filmes da história do cinema foram feitos por críticos que um dia se meteram a dirigir: François Truffaut e Jean-Luc Godard são dois exemplos que me ocorrem (e muito diferentes entre si – a única coisa que têm em comum é que eram da mesma turma). 

Na literatura, temos o exemplo de Umberto Eco, que era um crítico ao quadrado, ou seja, professor de Semiologia numa Universidade, e quando estreou foi com um romance que botou os escritores profissionais no chinelo. 

Se é para comparar o crítico a alguém, melhor do que um eunuco é um ginecologista. O problema do crítico, quando se mete a escrever, não é a falta de imaginação criativa. O que lhe falta é a descontração lúdica de quem faz algo por mero prazer. 

O excesso de bagagem teórica pode ser uma vantagem na hora de criticar, mas é um peso na hora de criar. O escritor é um cara que olha para dentro de si mesmo; um crítico é um cara acostumado a olhar para dentro dos outros. É clínico, distanciado, brechtiano. Na hora de ser criativo, ele poderia lamentar-se como o robô dos quadrinhos de Barbarella, quando a heroína elogia seu desempenho na cama: “Madame é muito gentil, mas meus impulsos têm algo de mecânico”. 

O escritor acostuma-se a ser levado pela intuição, escreve sem precisar explicar muita coisa a si mesmo. Pode se dar o luxo de responder “Não sei” a quem lhe pergunta o porquê de tal ou tal detalhe do que escreveu. 

O crítico, que fez a própria fama explicando os porquês das obras alheias, sente-se pressionado a ter a mesma jurisdição sobre as próprias. Quando é um crítico meramente impressionista, que critica com base nas suas paixões subjetivas, ele até que se furta um pouco a essa cobrança. Mas os grandes críticos de nossa época são grandes racionalistas. São mentes apolíneas e implacáveis, acostumadas a analisar, dissecar, discernir. Na hora em que precisam do arrebatamento dionisíaco, o Deus do prazer se vinga e não comparece.





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