No filme Tempo de Guerra (Les Carabiniers), de Jean-Luc Godard, há uma cena em que um rapaz matuto, que se alistou no exército para combater, vê um cinema pela primeira vez. Ele senta na platéia, e logo aparece na tela a famosa imagem do trem vindo na direção da câmara. Como as platéias do Cinematógrafo Lumière de 1895, ele se apavora, cobre a cabeça com as mãos, encolhe-se na cadeira. Logo em seguida aparece a cena de um banheiro onde uma mulher enrolada numa toalha se prepara para o banho, bota a banheira para encher, etc. Quando a mulher começa a tirar a toalha, caminha para um dos lados, saindo do campo de visão da câmara. Animadíssimo, o rapaz sai pulando por cima das filas de cadeiras e, chegando junto da tela, cola o rosto ao pano, espiando na direção em que a mulher sumiu.
Como qualquer cena de um filme de Godard, esta tem uma importante mensagem semiótica e um profundo sentido metafísico. (Para sermos justos, é preciso reconhecer que quando o sujeito tem vocação semiótica e metafísica nem precisa de Godard, ele enxerga isso até num filme de Xuxa ou num comercial de pneu.) Em primeiro lugar, por que rimos do rapaz? Porque somos espertos, somos sabidos, temos consciência de que o que está fora do quadro cinematográfico tem existência implícita mas não pode, nem precisa, ser enxergado. Sabemos que há uma continuidade lógica entre o mundo da imagem e o mundo fora dela: uma mulher que sai envolta numa toalha não retorna metamorfoseada em libélula ou em cangaceiro. Fora do quadro, as coisas continuam sendo elas mesmas. Mas não têm imagem. A moldura retangular está ali para isto mesmo, para delimitar a área onde tudo precisa ter imagem.
Em segundo lugar, lembremos nosso espanto, na infância, quando percebemos que os personagens de um filme nunca precisavam – por exemplo – ir ao banheiro. Pareciam imunes a esta dimensão plebéia. Isto nos levou a descobrir que não somente o espaço, mas o tempo daquela Terra Plana era diferente do nosso. Assim como havia uma porção de espaços subentendidos, era lícito supor que acontecimentos não vistos tinham se passado.
E por fim... Talvez o nosso mundo aqui, de quatro dimensões, funcione do mesmo jeito. Nós, os filósofos e cientistas, somos os matutos teimosos que correm para junto da tela querendo ver a Natureza nua, querendo ver os super-cordéis vibrantes do espaço-tempo, querendo ver a purpurina dos quarks agitando-se nos campos de força. Queremos olhar para fora do quadro da matéria, das quatro dimensões, da seta unidirecional do Tempo. Platão, Aristóteles, Aquino, Hegel... E Einstein, Bohr, Heisenberg, Hawking, Feynman... Todos eles são matutos teimosos, recusando-se a admitir que o mundo acaba nisso que vemos. O que nos move é o impulso de saber, de ir às últimas deduções, de desvendar, de descobrir, de ver a mulher tirando a toalha. Existe coisa mais estimulante para o intelecto do que uma mulher tirando a toalha?
Um comentário:
Muito bom esse post Bráulio. Faz a gente pensar sobre as curiosidades que as pessoas têm em diversos níveis. Parabéns!!!
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