sábado, 14 de novembro de 2009

1366) A enganação literária (31.7.2007)



Falei dias atrás sobre o escritor J. T. Leroy, autor de livros sobre sua vida como garoto de programa de beira de estrada, viciado em drogas, portador do HIV. Leroy lançou livros, teve obras filmadas, e depois descobriu-se que ele não existia. Era um pseudônimo de uma escritora que recorria a uma enteada para desempenhar o papel de “Leroy” em público. “Ele” esteve no Brasil em 2005, na Flip (Festa Literária de Paraty), e deu entrevistas que exploravam sua aparência andrógina, quase transexual. Em 2006 a verdade saiu nos jornais. E agora as pessoas (e os tribunais) discutem: Isso é crime? Falsidade ideológica, ou coisa equivalente?

Não vou discutir os aspectos jurídicos, mas os literários. Existem autores que só escrevem sobre seu próprio mundo. Escrevem com sua verdade pessoal, sua visão pessoal, sua experiência pessoal. Escritores assim são maus criadores de personagens, porque só sabem falar do que conhecem. Jorge Luís Borges e Henry Miller, por mais diferentes que sejam, têm isso em comum. Falam sobre seus próprios mundos; não saberiam, por exemplo, escrever um romance na primeira pessoa contando a vida de uma dona-de-casa numa fazenda.

Outros autores, contudo, sabem colocar-se na pele de personagens imaginários, vivenciar mentalmente situações que nunca conheceram, produzir em si próprios emoções fictícias. Quando Flaubert disse “Madame Bovary sou eu” deu a formulação mais simples desse processo, porque foi dentro dele, Flaubert, que se criaram as complexas emoções e vivências daquela mulherzinha boba, banal, ambiciosa, que, em princípio, em nada se parecia com Flaubert. Quando chamam Chico Buarque de “o Chico Xavier da alma feminina”, os críticos colocam essa questão da pseudo-mediunidade, da técnica (pois é uma técnica) de imaginar-se sendo outra pessoa, pensando com ela, sentindo com ela. Alguns sabem fazer. Outros não.

J. T. Leroy tem um livro, adaptado para o cinema, com o título The Heart is Deceitful Above All Things – “O Coração é Enganador Acima de Tudo”. O que nos traz aos versos de Pessoa: “O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente”. Emoções podem ser verdadeiras mesmo produzidas por uma vivência não real – o cinema está aí para isso, não é mesmo? Para que recebamos por duas horas o espírito daquele personagem interpretado por Dustin Hoffmann ou Fernanda Montenegro, soframos com ele, riamos com ele, identifiquemo-nos com seus menores trejeitos faciais, com as menores inflexões de sua voz. São falsas, essas emoções que nos violentam na sala escura? Não acho. São as mesmas de um escritor que as produz conscientemente em si próprio, num gabinete silencioso, a sós diante do computador. Guimarães Rosa dizia: “De repente, o diabo me cavalga”. Não o Diabo cristão: mas o “Daimon” grego, o espírito criador que pede para dizer algo. Se lhe inventamos um nome e uma biografia, aí são outros quinhentos.

Nenhum comentário: