sábado, 31 de outubro de 2009

1338) Máquina de escrever e mediunidade (27.6.2007)




Existe coisa mais fascinante do que a mente humana? Duvido. Ela é como aquelas casas antigas, imensas, labirínticas, onde a gente se perde com facilidade, e onde, quando menos espera, descobre um aposento onde jamais havia entrado. Ao que parece, a invenção da máquina de escrever produziu um novo aposento nas mentes humanas, gerando uma experiência de dissociação psíquica talvez comparável à que outros indivíduos experimentaram em períodos remotos da História quando a escrita se impôs como um veículo para a produção de um texto a sós.

Uma resenha de Joan Acocella sobre o livro The Iron Whim: A Fragmented History of the Typewriter, de Darren Wershler-Henry, cita uma porção de episódios curiosos na história deste nobre instrumento. Escritores sempre cultivaram uma relação de enfrentamento físico com a escrita, mas essa relação sempre foi íntima, quase sensual, com a ponta úmida da pena rascando de leve a epiderme do papel, deixando ali as senhas manuscritas através das quais os pensamentos do autor podiam ser reconstituídos. A escrita se assemelhava um pouco ao desenho. Era uma relação íntima, silenciosa.

Chegou a máquina de escrever com seus mecanismos e seu estardalhaço, e pareceu que o mundo ia se acabar. Era preciso dar uma pancada com o dedo, fazendo o martelinho desferir outra pancada no papel, amortecida pela fita úmida que imprimia o negror da letra. Em meus bons tempos de tradutor-por-sobrevivência, já trabalhei de 8 a 10 horas por dia numa máquina de escrever mecânica: quando ia dormir, as unhas estavam em frangalhos, os dedos inchados e insensíveis. Mas o mais interessante é que a máquina exigia outro tipo de relação mental. O livro de Wershler-Henry fala que após a morte de Henry James, sua datilógrafa,Theodora Bosanquet, dizia continuar ouvindo a voz do escritor ditando-lhe textos, e que outros escritores já mortos, como Thomas Hardy ou John Galsworthy, também estavam querendo ditar-lhe textos.

Wershler-Henry afirma que “as pessoas acreditavam que o que era escrito numa máquina era ditado, por uma voz que não era a mesma da pessoa que datilografava; mesmos as pessoas que compunham seus textos diretamente na máquina achavam que estavam seguindo um ditado vindo de outra parte”. Bastava isto para um escritor meio visionário como William S. Burroughs inventar em alguns de seus romances fantásticos uma máquina que ele chamava The Soft Typewriter (“A Máquina-de-Escrever Mole”), uma espécie de máquina orgânica que escrevia não só nossos livros como nossas próprias vidas.

Pode ser mediunidade; ou pode ser simplesmente um processo esquizóide benigno brotado na nossa mente, o mesmo que me permite estar agora datilografando uma frase que já pensei enquanto com o mesmo cérebro já estou tentando pensar a próxima. Cada nova tecnologia-de-pensar cria um novo puxado em nossa mente, esta casa infinita que malassombramos com nossa alma.





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