Em 1918, Marcel Duchamp pegou um cartão postal com a reprodução da “Mona Lisa” e pintou-lhe em cima um bigode e um cavanhaque. O sacrilégio ajudou a sacramentar sua fama de iconoclasta.
Duchamp já havia introduzido nas artes plásticas o conceito de “ready made”, a obra de arte “já pronta”: um objeto banal que era magicamente transformado em Arte pelo gesto do artista em oferecê-lo (a uma galeria, uma exposição, um museu, um possível comprador) como obra de arte.
Duchamp fez isto com uma roda de bicicleta afixada a um banquinho, e depois com um urinol de porcelana, aqueles de banheiro público (que geralmente estão cheios de bolas de naftalina, pedras de gelo ou rodelas de limão).
A quantidade de mal-entendidos, ingenuidades e vigarices que estes gestos produziram é grande, e um dos seus críticos mais entusiastas é Affonso Romano de Sant’Anna, numa série de artigos que acompanhei durante anos em “O Globo”, reunidos depois no livro Desconstruindo Duchamp.
Eu tenho uma atitude contraditória diante disto. Por um lado, admiro a originalidade e a ousadia do pensamento de Duchamp. Por outro, acho que sua influência (como a de tantos artistas desconcertantes, surpreendentes) acabou fazendo mais mal do que bem.
Os gestos de Duchamp só têm valor porque ninguém tinha pensado naquilo antes. São o que alguns teóricos chamam de “gestos, ou atos, fundadores”. O seu bigode na Mona Lisa provocou escândalo, irritação, menosprezo; depois, milhares de páginas de discussões sobre o que é e o que não é arte, sobre os conceitos de paródia, desconstrução, comentário estético, sacralidade da obra, metalinguagem, o escambau. Podemos ser contra, como Affonso Romano, mas eu, pelo menos, me sinto na obrigação de reconhecer que aquele gesto teve originalidade, e colocou um problema novo.
Mas, o que seria das artes plásticas se os artistas jovens tomassem isso como um novo gênero, chamado “Bigodes em Rostos Femininos”? E fôssemos condenados a comparecer a vernissages onde veríamos apenas reproduções de retratos femininos, só que com a vigorosa adição de bigodes de todos os formatos?
A repetição de gestos fundadores é um cacoete infelizmente inevitável na Arte. Edgar Allan Poe escreveu dois ou três contos em que um sujeito decifra um crime misterioso usando apenas seus poderes de observação e de dedução – e o romance detetivesco aí está, repetindo “ad infinitum” esse seu gesto fundador.
A favor do romance policial deve-se reconhecer a imensa originalidade das variantes imaginadas pelos seus cultivadores, e alguém menos mal-humorado do que eu talvez venha a dizer o mesmo da Arte Conceitual de hoje.
Duchamp, que era um grande gozador, gostava de espalhar cascas-de-banana conceituais diante dos marchands e dos críticos. Hoje, seus seguidores espalham cascas de laranja, de abacaxi, de maçã... Falta alguém dizer que não é a casca, pessoal. É o “resultado fundador” do gesto, e isto só ocorre na primeira vez.
2 comentários:
Oi Bráulio,
não precisa aceitar este comentário. Gostaria só de apresentar a você alguns contos que escrevi.
http://queridobunker.wordpress.com/sumario/
um abraço,
márcio
Duchamp vive! O homeme não para de nos surpreender ea foto não deixa dúvidas: ele está entre nós sob o codinome de Jorge Loredo !!
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