A raiva é uma dessas emoções boas de analisar, porque poucas conseguem com tanta rapidez e eficiência tomar as rédeas do juízo dum sujeito. Já vi uma mocinha miúda e tímida encurralar meia dúzia de marmanjos, aos gritos, porque um deles soltou-lhe uma piada inofensiva. Já vi um motorista de ônibus tirar-um-fino de propósito num chapeado que carregava pacificamente suas tralhas pelo meio da rua, e esse chapeado perseguir correndo o ônibus ao longo de uns cinco quarteirões (eu era um dos passageiros) até alcançá-lo num sinal vermelho, invadi-lo, e cobrir o motorista no bofete. Já vi (quem se lembra?) no Presidente Vargas, num jogo noturno Treze x Auto Sport, o jogador Augusto quebrar o lábio do zagueiro Cidão com uma pedra, dando início a uma perseguição sem tréguas em que o beque trezeano (Cidão era uma espécie de Mauro Silva, só que mais torado-no-grosso) perseguiu Augusto pelo gramado inteiro, arrombou as duas portas do vestiário e só foi contido por um destacamento inteiro da polícia. (Ah, sim, o jogo não prosseguiu: acabou ali mesmo).
Vou fazer uma comparação. Quando eu era pequeno, não existiam as redes de TV que existem hoje, as estações repetidoras, etc. Víamos a TV Borborema, canal 9, ou então os dois canais de Recife: a TV Rádio Clube (canal 6) e a TV Jornal do Commercio (canal 2). Devido à distância, a recepção estava longe de ser ideal. Era uma imagem (preto-e-branco, claro) granulosa, esfarelada, que parecia feita basicamente de pó-de-carvão e açúcar-cristal. E havia a famosa Interferência. Às vezes era desencadeada pela passagem de um caminhão pela rua (acho que as antenas estremeciam, sei lá); ou era o vento, ou eram as tempestades eletromagnéticas provocadas pelas manchas solares... não importa. Estava indo tudo muito bem, estávamos todos amontoados na sala assistindo Quinta Dimensão ou Na Corda Bamba, quando de repente a imagem inteira começava a estremecer e a dar sinais de instabilidade. Estava começando a Interferência.
Primeiro as formas todas começavam a balançar como se alguém estivesse sacudindo vigorosamente o aparelho. O som ia sendo substituído por um chiado cada vez mais alto e insuportável, até que tudo na tela se resumia a uma agitação frenética e caótica de pontinhos pretos, brancos e cinza. A Interferência seguia um padrão: começava devagar, ia se intensificando, atingia um clímax, aí ia se atenuando aos poucos, algumas formas começavam a ser visíveis, o som retornava, substituindo o chiado... Do mesmo jeito que começara, ela ia passando, passando, até a imagem e o som se tornarem novamente nítidos e normais. Normalidade que durava cinco ou dez minutos até a Interferência seguinte. A raiva é uma Interferência. Se o indivíduo conseguir respirar fundo e ficar quietinho até que ela passe, o mundo se salva.
5 comentários:
Ola' Braulio,
execelente iniciativa, esta de colocar todas as colunas neste blog. Vai demorar para "ficar em dia" com tudo, mas sera' divertido.
Um grande abraco,
Cicero Carvalho
(seu ex-colega de CLFC, onde adquiri um exemplar d'A espinha dorsal da memoria, que voce autografou - aquela edicao da Editorial Caminho, claro.)
Oi Cicero. Valeu a presença! Nao tente ler tudo. Pesquise primeiro as palavras-chave que lhe interessam mais. Trata-se de um self-service cultural... :-)))
Caríssimo Bráulio Tavares,
Finalmente você resolveu disponibilizar se opus na rede. Há tempos acompanho suas colunas no JPB e no Cronópios e procurava inconformado algo como um blog seu, como um personagem de um seu conto fanático por livros e discos raros. Quase desequilibro o Universo. Felicíssimo por poder lê-lo com vagares. Aproveitarei para linká-lo a partir de meu blog e garantir uns poucos mais além de seus 13 kiloleitores.
Texto simples e brilhante, como se espera do senhor. Nenhuma surpresa e uma bela descoberta, feita a partir de uma navegação besta nos jornais da Paraíba. Vou voltar sempre. Recomendações à mana Clotilde.
Olá, Tião. Volte sempre e convide os amigos. Só não posso servir cerveja, mas conversa é o que não falta.
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