segunda-feira, 31 de março de 2008

0337) Proselitismo (18.4.2004)




Existem dois tipos de pessoas: os que pensam que só existem dois tipos, e os que sabem que existem muitos mais. Como eu pertenço a ambos os grupos, penso que há pelo menos dois tipos de gente cuja existência não pode ser negada por nenhuma falácia lógica: os que gostam de liderar e os que gostam de ser liderados. Por isto existem os movimentos ou “ismos”, aos quais as pessoas se engajam por um gesto espontâneo de admiração. Não devemos subestimar o poder de uma visão-do-mundo coerente e nítida. Poucas pessoas conseguem elaborar uma por conta própria. Eu mesmo, por exemplo, nunca consegui. Minha visão-das-coisas é uma colcha-de-retalhos de visões contraditórias, de idéias apanhadas aqui e ali, de teorias que se invalidam mutuamente mas das quais lanço mão por instinto quando quero explicar algo.

Mangue não, viu, camaradinha? A sua visão-das-coisas também é assim. A menos que você se chame, sei lá, Karl Marx, ou Sigmund Freud, ou mais meia-dúzia de sujeitos que conseguiram produzir uma explicação que explica tudo. Esses caras são gênios. Não porque a explicação dada por eles seja mais certa do que as demais, mas porque foram capazes de produzir uma Teoria Unificada da Vida Humana. Não é pouca coisa. Tanto é que eles têm centenas de milhões de seguidores, e nada indica que nos próximos séculos esse número venha a diminuir, mesmo com o aparecimento de novas Teorias Unificadas. No ano 2500, quando nossos tataranetos forem cyborgs ou colonizarem Marte, muitos deles serão marxistas, muitos deles serão freudianos. Anotem aí, e podem vir me cobrar quando eu for ressuscitado pela Ciência futura.

O mais interessante das ideologias é o fervor dos que se dedicam ao proselitismo. É típico das religiões que os recém-convertidos sejam mais ardorosos do que os veteranos. O novo súdito é sempre mais realista do que o rei. Os apóstolos que conheceram Cristo pessoalmente limitavam-se a fazer pregações aqui e ali; Saulo, que era um perseguidor de cristãos, teve uma revelação tão pesada na estrada de Damasco que passou três dias cego, sem comer, e sem beber. Quando ficou bom, virou o maior cristão do mundo.

Eu me acho um sujeito meio superficial, porque não tenho nenhuma crença que eu considere essencial à humanidade. As coisas em que acredito são para consumo interno. Só passo minhas idéias adiante se alguém estiver interessado, e vier me fazer perguntas. Mas o proselitista típico é aquele que procura atingir justamente os alvos mais difíceis. Já passei noites inteiras numa mesa de bar dizendo, “OK, velho, eu sei que Lacan foi um cara importantíssimo, mas não me interessa muito”, ou então “tá, tá legal, eu concordo que o Concretismo é importante, mas não acho que as possibilidades da sextilha já tenham sido esgotadas.” Eu nunca convenci ninguém de coisa alguma, caro leitor. Se você achar que eu estou fazendo propaganda de alguma idéia, largue o jornal, e leia amanhã: estarei falando de algo completamente diferente.

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