sexta-feira, 30 de setembro de 2011

2675) Livros Proibidos IV (30.9.2011)



Checando as estatísticas de livros denunciados ou proibidos no período 1990-2010 nos Estados Unidos, temos números interessantes. Razão das denúncias: sexo explícito, 3.169; linguagem ofensiva, 2.658; violência, 2.289; livros inadequados para a faixa etária do grupo-alvo, 2.232. Drogas? Lá embaixo na lista, com 382. Política? Idem, com 319. Esses números claramente se referem ao universo escolar, infanto-juvenil, que é onde se exerce o peso da censura e do puritanismo nos EUA. Nesse mesmo período, os números dizem (por ordem decrescente) que a origem das denúncias veio das seguintes instituições: escola, 4.048; biblioteca escolar, 3.659; biblioteca pública, 2.679. Universidades aparecem com apenas 141 denúncias.

Nos EUA, existe liberdade para discutir idéias políticas, mas por outro lado o país é vítima de um puritanismo alucinado que cria as situações mais estapafúrdias. Tipo aquelas notícias em que um garoto de seis anos é acusado de assédio sexual porque beijou na escola uma coleguinha de cinco. Os EUA sempre me deram a impressão de um país onde é mais fácil publicar um livro propondo a derrubada do capitalismo do que um livro em que os personagens façam sexo oral.

No Brasil, já foram proibidos mais livros pelo seu conteúdo político do que por conteúdo sexual. Dizem que Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca só foi proibido porque um figurão do governo militar se escandalizou com a linguagem e o tema do conto-título (marginais invadem uma festa de reveillon de ricaços, estupram e matam quem bem entendem) e não descansou enquanto o livro não foi proibido. Algo parecido ocorreu com Zero de Ignácio de Loyola Brandão. Não me lembro de livros infantis proibidos pela ditadura.

Aqui no Brasil está surgindo uma censura do politicamente correto em que indivíduos ou grupos se julgam insultados porque um personagem de um livro diz alguma ofensa contra eles, e pedem a proibição do livro. É a democratização da censura. Em breve chegaremos ao aperfeiçoamento final desse método, quando qualquer pessoa pode denunciar um livro e solicitar oficialmente sua proibição, alegando que foi prejudicado.

As filhas de Garrincha conseguiram proibir a biografia do jogador, escrita por Ruy Castro; Roberto Carlos conseguiu tirar das livrarias sua biografia escrita por Paulo César de Araújo. Ora, há uma porção de livros-de-fofocas e livros maledicentes por aí, sobre gente famosa. Como digo sempre, a liberdade de expressão significa, também, a liberdade de expressão para ao maledicentes – os quais, se for o caso, terão que pagar por isso de alguma forma. Nem toda censura é política, mas toda censura é censura.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

2674) Contos de Campinoigandres (29.9.2011)




“Disseram-me que na feira de Campinoigandres, uma cidade famosa por ludibriar forasteiros, havia um homem capaz de mover objetos, com as mãos, mais rapidamente do que podíamos acompanhá-los com os olhos.

"Contavam-me essa história e nunca acreditei, portanto quando me aconteceu de ir pela primeira vez à tal cidade, procurei-o.

“Encontrei-o no mercado, diante de uma pequena mesa. Colocava sobre ela três cascas de noz, emborcadas. Levantava a do meio e colocava sob ela uma pequena moeda de prata, que era o prêmio destinado ao acertador.

"Em seguida, arregaçava as mangas, tocava nas semi-esferas com as pontas dos dedos e começava a movê-las de um lado para o outro, fazendo com que se rodeassem, se alternassem, se intercalassem umas às outras, com tal velocidade que de início até eu me perdi.

"Não fui o único; todos os que, ao final, indicavam a casca de noz onde estaria a moeda viam-no erguê-la e mostrar que estava vazia de prêmios.

“Depois de várias vezes, porém, vi que seu repertório de movimentos tinha recorrências, e acabava repetindo uma mesma sequência feita há uns sete ou oito movimentos atrás... Discerni naquilo um princípio de ordem. Os movimentos começavam caóticos mas depois sempre se repetiam.

"Era como uma mão sem pena fingindo riscar um pergaminho, sem deixar letras escritas: as letras estavam ali, subentendidas nos movimentos mudos. Eram como lábios se movendo por trás de um vidro.

“Afastei a turba, postei-me diante dele, e me inscrevi para a aposta. Ele aceitou, preparou-se, e repetiu todo o ritual: começou a mover as cascas de noz bem devagar; pareceu-me meio errático, indeciso, mas logo foi acelerando o ritmo, e as estruturas de repetição apareceram. Eu estava ali, desafiando-o, e todos olhavam para mim, de modo que respirei fundo e segui seus movimentos com os olhos.

"Quando ele se deteve (detinha-se sem obedecer a nenhum padrão, era sempre um breque súbito) eu tinha a casca certa embaixo dos olhos, não a tinha perdido de vista um instante sequer. Ele deu um meio passo para trás e fez um gesto com a mão, oferecendo a mesa à minha escolha. Eu ergui a casca de noz que acompanhara com a vista: e lá estava a moeda.

“Ele apanhou com a ponta dos dedos a moeda e a estendeu para mim, com uma reverência. Quando a guardei na bolsa, ele ergueu as duas outras cascas, e embaixo delas havia os dois diamantes mais bem feitos que eu já vi na minha vida.

"E o povo de Campinoigandres prorrompeu numa tremenda gargalhada; a feira inteira parecia estar sabendo, fizeram a maior pateada, com berros e assobios, creio até que na janela de um castelo balançaram a bandeira da cidade.”




quarta-feira, 28 de setembro de 2011

2673) Livros Proibidos III (28.9.2011)



A Semana dos Livros Proibidos (24-set a 1-out) pretende, entre outras coisas, defender a liberdade de expressão e de publicação de livros. Uma estatística curiosa no saite da American Library Association (http://bit.ly/LdDLu) mostra que da lista dos “100 Romances mais Importantes do Século 20” escolhidos pelo Radcliffe Publishing Course, 46 foram em algum momento proibidos ou denunciados para proibição em algum país. Geralmente por questões morais, porque o livro contém cenas de sexo explícito; ou defende atos sexuais considerados ofensivos (homossexualismo, adultério, promiscuidade, prostituição, masturbação, etc); ou usa linguagem ofensiva, imoral (palavrões, etc.). Esses valores mudam de país para país. O que é pornográfico aqui não o é acolá, então não é de admirar que o Ulisses de Joyce, o Lolita de Nabokov, os Trópicos de Henry Miller e O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence tenham sido proibidos mundo afora, inclusive em seus países de origem.

Nenhum desses livros, que eu me lembre foi proibido no Brasil. Eram cercados de tabus e de críticas, mas eram publicados, sim, e ninguém foi preso por vendê-los “por baixo do pano”. Paulo Francis se referia a Lady Chatterley como “o livro que todo mundo leu segurando com uma mão só”. Talvez tenha sido assim para a geração dele; eu me lembro em 1967, no Estadual da Prata, o pessoal com ar conspiratório emprestando uns aos outros o Sexus de Henry Miller e indicando: “Capítulo 16...”. Era em plena ditadura, mas esses livros passavam. A Revolução Sexual estava embranquecendo os cabelos dos nossos pais, mas os pilares da Pátria permaneciam incólumes. A ditadura estava mais preocupada em proibir coisas mais específicas; talvez o Que Fazer? de Lênin ou o Torturas e Torturados de Márcio Moreira Alves.

Ninguém lembra Cassandra Rios, que nunca foi grande escritora, mas foi perseguida durante décadas por seus romances eróticos: Tessa, a Gata, A Paranóica, Eudemônia, O Bruxo Espanhol... Li na adolescência (na casa de meus primos) A Lua Escondida, uma história de paixão lésbica; e anos depois li As Mulheres dos Cabelos de Metal, uma ficção científica erótica que passou despercebida até da censura. Quando as pessoas fazem campanha pela liberação da literatura erótica, geralmente estão pensando em Joyce ou Miller. Minha dúvida é: na hora do naufrágio, esses intelectuais teriam coragem de colocar Cassandra Rios no bote salva-vidas? Ou a salvação é apenas para os que são também intelectuais? A arte “redime” o erotismo? É preciso ser uma grande obra literária para que os intelectuais se mobilizem contra sua proibição?

terça-feira, 27 de setembro de 2011

2672) A palavra inchirido (27.9.2011)




Até hoje não sei como se escreve: Inchirido? Enxerido? Não importa; esse adjetivo é uma daquelas palavras tipicamente nordestinas, como arretado, oxente, mangar. 

O cara inchirido é o cara atrevido, metido, ousado. No sentido sexual, é o homem que dá em cima, que “avança o sinal”, que “azara”, que dá cantadas, que fica rondando e pedindo uma chance. 

Como tantos outros termos nessa área, pode ter um sentido pejorativo e um sentido elogioso, dependendo do interesse que a vítima possa ter pelo cara que se comporta assim: “Não suporto Fulano, além de feio é inchirido”, ”Eu fico toda nervosa quando ele chega junto, porque ele é muito inchirido”, “Minha filha, eu só gosto de homem inchirido, porque a gente já sabe que ali acontece alguma coisa”.

Também se usa, meio metaforicamente, em outras circunstâncias. “O brasileiro é um povo muito inchirido, se metendo a fazer Copa do Mundo e Olimpíada ao mesmo tempo!”. “O São Caetano montou naquele tempo um time meio inchirido, que acabou sendo vice-campeão brasileiro e vice-campeão da Libertadores”. 

Ou seja, “inchirido” no sentido geral de ambicioso, disposto a ir além dos limites que lhe haviam sido traçados por outros. E existe, claro, o verbo “inchirir-se”, reflexivo: “Cuidado, Fulana, teu marido anda se inchirindo pra aquela galega do bar”.

Surge a questão: qual a origem da palavra? Por algum tempo pensei que viesse do verbo “encher”, mas logo descartei. Pensei que viesse de “inserir, inserido”: “Fulano anda se inserindo no meio de uma turma que não é a dele”. 

Num livro de Carter Dickson, Os Crimes da Viúva Vermelha, encontrei uma referência de que a palavra “Enchiridio” se referia a “uma coleção de orações mágicas inventadas pelo Papa Leão III e oferecidas a Carlos Magno no ano 800”.

Agora, o saite A Word A Day me explica que a palavra significa “manual, pequeno livro de informações básicas”, e vem do grego “encheiridion”: en (em) + chiros (mão) + idion (sufixo diminutivo). Ou seja, um livrinho com informações essenciais que pode ser levado na mão; daí o sinônimo “manual” (em inglês é “handbook”).

Diz o saite que o uso mais antigo documentado, é de 1541. Mas isso não importa. A questão é: o Enchiridio (que aliás deve se pronunciar “enquirídio”) medieval pode ter dado origem, pelas vias tortuosas de sempre, ao nosso conceito de “inchirido”? 

O inchirido seria, então, aquele sujeito que leva consigo um livrinho com todas as respostas (espécie de Manual do Escoteiro) e que devido a isso passa a ostentar uma cultura-de-almanaque, se torna pedante, metido a besta, sabe-tudo, atrevido? E ainda por cima conquista todas as mulheres com isso?! 




domingo, 25 de setembro de 2011

2671) Livros Proibidos II (25.9.2011)



(Capa de Harry Potter, recriada por M. S. Corley)

A Semana dos Livros Proibidos (última semana de setembro), chama a atenção para o que os organizadores, nos EUA, chamam de “Banned and Challenged Books”. “Banned” é o livro banido, proibido oficialmente por um governo, com todas as consequências (apreensão policial dos exemplares à venda, com prejuízo para o livreiro, etc.). Muitas vezes isto envolve a ameaça à liberdade ou à integridade física do autor ou do editor. “Challenged” significa que o livro é impugnado, questionado, denunciado por grupos ou entidades, sob a alegação de que infringe algum princípio. O número de livros denunciados, claro, é muito maior do que o de livros de fato proibidos, já que nem toda denúncia é aceita. Ainda assim, o estrago é grande, porque a denúncia produz efeitos locais, principalmente no que diz respeito à eliminação de livros das bibliotecas e do currículo escolar de colégios e universidades.

Todo mundo entende que o Minha Luta (“Mein Kampf”) de Hitler seja proibido. O furibundo alemão é o saco-de-pancadas preferencial do Ocidente. A tal ponto, aliás, que por todo lado brotam jovens carrancudos, insatisfeitos, irritados com a hipocrisia da época, e começando a murmurar uns com os outros: “Por que será que proibiram o livro do cara? Vai ver que ele denunciava isso-tudo-que-está-aí... Era um idealista...”. E pronto, a proibição tem um resultado inverso: projeta uma aura de contestação e de martírio sobre a obra de um desorientado.

Já os livros de Harry Potter têm sido largamente denunciados nos EUA porque grupos evangélicos de variadas colorações os consideram uma apologia ao satanismo, à magia negra, etc. Se você acha isso absurdo, e que Harry Potter é inofensivo, o que dizer então da denúncia contra a série Capitão Cueca de Dav Pilkey? Sucesso aqui no Brasil, os livrinhos ficaram em sexto lugar na lista de obras mais denunciadas nos EUA em 2002, por “falta de sensibilidade”, por serem “inadequados à faixa etária” e por “encorajarem as crianças a desobedecer as autoridades”. Pois é. Começa com Capitão Cueca, daqui a pouco os meninos vão estar lendo Che Guevara.

A denúncia contra Harry Potter, é claro, é proporcional ao seu sucesso. Há incontáveis livros sobre meninos bruxos que entram e saem dos lares e das escolas sem que ninguém lhes dê importância ou os considere Os Evangelhos de Belfegor. Mas os professores não são bobos. Harry Potter foi um movimento social em torno de um livro, um movimento que arrebatou dezenas de milhões de garotos. Ninguém faz sucesso impunemente. Ninguém atinge milhões de pessoas sem que alguma autoridade se debruce sobre o caso, luneta em punho, para saber por quê.

sábado, 24 de setembro de 2011

2670) Livros Proibidos I (24.9.2011)



Está começando nos EUA a Semana dos Libros Proibidos (“Banned Books Week”), celebrada na última semana do mês de setembro. É uma iniciativa conjunta de associações representando editores, professores, livreiros, bibliotecas e entidades culturais que combatem a censura a obras literárias, desde a proibição pura e simples até a sua retirada de currículos e do acervo de bibliotecas. Eu nunca tive um livro proibido pela censura. Tive uma música (“Nordeste Independente”, composta com Ivanildo Vila Nova, gravada por Elba Ramalho) que teve sua execução pública proibida durante o último ano da ditadura militar. Mas é como leitor que durante os próximos dias comentarei algumas dessas obras que foram retiradas de circulação, e por que motivos isso aconteceu.

Os principais motivos para um livro ser proibido são: 1) conteúdo sexual; 2) cenas de violência ou sadismo; 3) linguagem chocante (não necessariamente palavrões de cunho sexual, mas linguagem considerada agressiva, vulgar, violenta, etc.); 4) cenas envolvendo drogas e parecendo endossar o seu uso; 5) conteúdo racista ou discriminatório contra maiorias; 6) idéias políticas contrárias ao regime vigente; 7) agressões, calúnias ou afirmações graves contra um indivíduo ou grupo. Há outros, com certeza; estou enumerando de memória. As razões mudam de lugar para lugar.

A liberdade de literatura é muito parecida com a liberdade de imprensa. Todo mundo é a favor até o instante em que se torna vítima dessa liberdade, até quando surge um livro dizendo algo que nos ofende, nos envergonha ou nos ameaça. Nesse instante, nosso discurso democrático vai dar uma volta no espaço sideral, e a vontade que a gente tem é mandar apreender aquele livro, queimá-lo em praça pública, e premiar o autor com uma surra de fio-desencapado e um banho de sal grosso.

Digo isto para lembrar que a luta pela liberdade de expressão não é uma luta do Bem contra o Mal, a luta dos Cem Por Cento Certos contra os Cem Por Cento Errados. É um dilema, uma encruzilhada entre duas opções, ambas envolvendo ganhos numa direção e perdas na outra. Somos contra a proibição de James Joyce ou de Rubem Fonseca, mas aposto que muitos de nós somos a favor da proibição dos livros de Hitler. Cada sociedade se define pelos seus critérios para proibir um livro e ameaçar seu autor, porque ao fazer isto ela atinge um limite de si própria, atinge aquela fronteira ética na qual em nome dos mais elevados valores se cometem os atos mais graves. Somos todos a favor da liberdade de expressão. Mas cada um de nós tem pelo menos um livro que proibiria com prazer e vingança. Bora, rapaz. Fala a verdade.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

2669) Romero Cavalcanti (23.9.2011)



(recorte de Romero Cavalcanti)


Há artistas paraibanos que são famosos na Paraíba e desconhecidos no resto do Brasil. Romero Cavalcanti, pelo contrário, é famoso no Brasil e quase desconhecido na Paraíba. Explica-se pelo fato de que, tendo nascido em Itabaiana e estudado na capital, ele foi muito cedo para o Rio de Janeiro, onde construiu uma carreira de artista plástico, artista gráfico, ilustrador, capista de livros e discos, criador de cartazes e de programações visuais. As técnicas e os meios são os mais variados: óleo, bico de pena, desenho, objetos, colagem, aerógrafo, etc.

Fizemos muitos trabalhos juntos até agora, mas o mais importante talvez seja a série de capas e ilustrações que Romero produziu para minhas antologias de contos fantásticos lançados pela Casa da Palavra: Páginas de Sombra (2003), Contos fantásticos no labirinto de Borges (2005), Freud e o Estranho (2007), Contos Obscuros de Edgar Allan Poe (2010) e, a ser lançado em breve, Páginas do Futuro: contos brasileiros de ficção científica. São ilustrações feitas com colagem de fragmentos de gravuras antigas, num estilo muito usado pelos Surrealistas nos anos 1920 (principalmente Max Ernst).



Depois de décadas no Rio, Romero faz sua primeira exposição individual na Paraíba dentro do evento “Setembro Fotográfico” (24 a 30 de setembro). Alguém perguntará: Mas ele é fotógrafo? A resposta é: Não, ele é um desconstrutor de fotografias. A exposição “Ex-Fotos” (com um saboroso trocadilho no título, cheio de sugestões) mostra fotos alheias que o artista recorta com estilete até transformar em coisas completamente diversas. O corte do estilete produz uma nova silhueta que nada tem a ver com a original, e nessa nova silhueta as zonas de cor, de luz e de sombra sofrem uma leitura que também nada tem a ver com a da imagem em que foram produzidas originalmente.

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Existem as artes aditivas, que consistem em colocar coisas onde não havia nada (a pintura, p. ex.), e artes subtrativas, que consiste em pegar uma massa informe e retirar partes dela até deixar ali uma obra de arte (a escultura, p. ex.). A desconstrução promovida por Romero é de uma terceira natureza, porque pega uma obra de arte acabada (ou pelo menos um produto informacional acabado, no caso uma foto) e interfere nela até transformá-la numa voluta abstracionista, numa caricatura grotesca, numa colagem de formas surrealistas.

A exposição “Ex-Fotos” está aberta no Casarão 34, de 24 de setembro a 30 de outubro, de 2ª. a 6ª. feira, das 8às 12 e das 14 às 18 horas. Além da exposição, o artista estará ministrando a oficina “Recorte da Imagem a Partir da Fotografia”, nos dias 27 e 28, das 15 às 18 horas.



















quinta-feira, 22 de setembro de 2011

2668) O preço do ingresso (22.9.2011)



(foto: Alexey Titarenko)

Num país do Leste Europeu, um governo corrupto foi derrubado por um golpe chefiado por militares nacionalistas. Rasgaram a Constituição e impuseram outra, prenderam dissidentes, o de sempre. Entre outras providências, resolveram interferir no mercado cinematográfico. Havia uma polêmica interminável ali sobre a invasão de filmes norteamericanos, que estava sufocando a criatividade dos realizadores locais. O Ministério das Artes Visuais, chefiado por um tenente-coronel com especialização em mísseis balísticos, chegou a uma curiosa conclusão. Argumentou ele que era uma injustiça muito grande que o cinema dos EUA, riquíssimo e poderoso, concorresse nas bilheterias em igualdade de condições com o cinema local, notoriamente amadorístico, pobre de recursos. Assim como (raciocinou o Governo) uma garrafa de vinho francês safra 1920 não custa o mesmo que um vinho banal, por causa dos insumos envolvidos em sua produção, o ingresso de uma superprodução norteamericana não pode custar o mesmo que o ingresso de um filme feito por meia dúzia de cabeludos que estão querendo mudar o mundo em uma hora e meia.

Vai daí, o Governo gerou um complicado mecanismo de avaliação de custos para os filmes, e enfiou goela abaixo dos distribuidores e exibidores a exigência de que o ingresso para ver um filme deveria custar cerca de 0,001% do orçamento total do filme (o exemplo do relise distribuído à imprensa era: “O ingresso para um filme que custou um milhão de dólares deveria custar dez dólares”). Falou-se em redistribuição de renda, em geração de empregos, em incentivo à produção local.

Isto provocou, é claro, um enorme mal-estar e uma saia muito justa com os distribuidores internacionais, que até então achavam muito natural que um filme de Indiana Jones cobrasse o mesmo preço de ingresso cobrado por um filme-de-arte como Seis tonalidades de bruma de Zbigniew Tornatolski. Como a essa altura a economia do país já estava totalmente dolarizada (um pão francês chegava a custar mais de 10 milhões de “vezlatys”, a moeda local), o mercado exibidor se deparava com filas gigantescas querendo ver filmes importados a custo quase zero (Andy Warhol, Julio Bressane, John Cassavetes), cuja entrada custava alguns centavos de dólar ao espectador. E no cinema ao lado, havia um engarrafamento de limusines, tapete vermelho, gambiarras de luzes e cronistas sociais para receber a burguesia local e o alto escalão do governo, gente capaz de pagar um ingresso de 2.370 dólares para assistir o Avatar de James Cameron (claro que todos recebiam dos cofres públicos uma ajuda de custo especial para isto, mas aí já é outra história).

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

2667) Bicicleta abandonada (21.9.2011)



(foto: Joe Schumacher)

A idéia é de Avram Davidson, em “Or all the Seas with Oysters” (que eu traduziria por “E os mares cobertos de ostras”). É uma teoria científica heterodoxa (os cientistas ortodoxos são incapazes de ter novas idéias sobre o Universo). O conto, ganhador do Prêmio Hugo de 1958, mostra o diálogo entre dois amigos: Ferd (que gosta de livros, LPs e conversas de alto nível) e Oscar (que gosta de cerveja, boliche e mulheres). Ferd se interessa por fenômenos biológicos: o mimetismo, que faz algumas criaturas vivas se disfarçarem como objetos (galhos, pedras, etc.) para atrair vítimas; e a regeneração, que faz um lagarto crescer um rabo novo depois de ter o rabo cortado.

E Ferd diz: já repararam como os alfinetes de segurança (ou “broches de fraldas”) parecem sumir quando a gente, com bebê em casa, mais precisa deles? Já repararam como os cabides de roupa (ou “ombreiras”) parecem se multiplicar nos armários – a gente deixa dois e no dia seguinte encontra cinco? Ferd descobre que o mundo está sendo invadido por uma espécie nova, uma raça de seres metálicos. Sua forma inicial é o alfinete de segurança. Daí ele evolui para a forma de cabide, que é a larva. E finalmente desabrocha na forma adulta, que é a bicicleta.

Ferd explica ao boquiaberto Oscar que essas criaturas vivem de elementos que captam do ar; e que evoluem, mudando de forma, apenas quando não são vistas por ninguém. Uma grande parte das bicicletas que vemos na rua (acorrentadas aos postes e às grades, abandonadas nos parques, etc.) não foram feitas numa fábrica. São formas mutantes que esses seres metálicos adotaram por mimetismo, para passar despercebidos.

O fotógrafo Joe Schumacher, que mora no Harlem (Nova York) tem um websaite onde fotografa de tudo, inclusive bicicletas abandonadas. Uma das suas fotos mostra um desenvolvimento insuspeitado da teoria de Davidson. (http://bit.ly/qZTVjj) Num daqueles mourões de metal usados para “ancorar” bicicletas nas ruas, ele registrou a presença de três dessas criaturas, acorrentadas juntas. Uma delas é um carrinho de supermercado – esse nosso carrinho comum, de trepidantes varetas metálicas. A segunda é uma bicicleta normal e a terceira é uma dessas bicicletas de entrega, com uma caixa plástica de colocar garrafas de leite. Um casal com seu filhote? Um sambaqui onde jazem três estágios sucessivos da evolução de um alienígena, uma forma de vida baseada no alumínio e agora, darwinianamente, incorporando o plástico? Ah, amigos, a ciência oficial não se pronuncia a respeito, está ocupada projetando cíclotrons que não servem para nada, e inventando antidepressivos para a indústria farmacêutica.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

2666) Tudo já foi dito? (20.9.2011)




Por que alguém ainda se dá o trabalho de escrever livros? Tudo já foi dito, tudo já foi feito, todas as histórias já foram contadas. Não existe nada na literatura de hoje cuja raiz dramatúrgica não esteja num épico indiano do século X ou numa fábula grega. 

Os escritores de hoje querem ganhar a vida honestamente, e ninguém pode negar esse seu direito. Mas se querem dizer uma frase nova, contar uma história inédita, trazer alguma idéia original, vão perder a viagem: podem ir tirando o cavalinho da chuva, alojando-o no estábulo e acomodando-se na cama para passar a noite.

John Barth é um desses escritores doidos para dizer algo de novo e constatando, com uma espécie de euforia horrorizada, que tudo já foi dito. Num artigo no The Atlantic (http://bit.ly/r2sswu), ele cita um texto egípcio de 2.000 a. C., em que o escriba Khakheperresenb comenta, com nostalgia: 

“Ah, se eu tivesse frases que não fossem conhecidas, numa linguagem nova que jamais foi usada, sem uma só frase que tivesse perdido o viço e que já tivesse sido dita pelos homens de antigamente!”. 

Barth, um deus-pequenino do Pós-Modernismo, é um desses escritores que, vendo a impossibilidade de contar uma história que ainda não foi contada, mexem o tempo inteiro no software da contação de histórias. Como a maioria dos escritores oriundos do meio acadêmico, ele dá a impressão de que leu 50 romances e 500 livros sobre Teoria do Romance. Ou, como disse certa vez uma amiga minha: “Ler um romance escrito por um professor de Literatura é como fazer sexo com um ginecologista”.

É típico não do escritor, mas do professor de Literatura, pensar se aquilo que está dizendo já foi dito antes, e dito melhor. O professor de Literatura compara o livro que está escrevendo com os livros que já foram escritos; o escritor compara o tumulto da página com o tumulto que está na sua cabeça e esquece o resto. 

Se um indivíduo escreve tendo em mente o propósito de acrescentar algo de novo à Literatura Universal (ou mesmo à Literatura Paraibana, se suas ambições forem mais modestas) vai se ver num beco sem saída, porque há milhões de direções em que essa brava literatura pode ser expandida com proveito. Faria melhor se considerasse que o livro que pretende escrever não pertence nem à Paraíba nem à Humanidade, mas a si mesmo. 

Se algo já foi dito e já foi escutado, nada nos impede de dizer e escutar de novo, porque nenhuma pedra é arremessada duas vezes à água do mesmo rio. As histórias pedem para serem contadas de novo, porque sempre haverá quem ainda não as escutou, e é um privilégio contá-las pela milésima vez a alguém que as está escutando pela primeira.