quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

5148) O diretor e a atriz (30.1.2025)

 


(Isabella Rossellini e David Lynch, Veludo Azul)


 
Talvez a reflexão mais famosa sobre a relação entre diretores de cinema e seu elenco seja a que o pessoal atribui a Alfred Hitchcock: “Os atores de cinema são gado.”  
 
Ora, tudo que cerca Hitchcock é cheio de nuances, e de reviravoltas divertidas. Conta-se que ele, questionado sobre esta frase, defendeu-se: “Eu nunca disse que os atores são gado. Disse apenas que devem ser tratados como gado.” 
 
Hitchcock tinha (pelo que me consta) bons relacionamentos com alguns atores de filmes seus, como Cary Grant e James Stewart. Com as atrizes a coisa era diferente. O diretor tinha um indisfarçável fetiche por mulheres loiras e lindas. Gostava de dirigi-las em cenas onde aquela aparência fria, distante, aristocrática era arrebatada pela ação de um erotismo interno, e elas “se derretiam suaves, neve no vulcão”, como na canção de Chico César. 
 
Com essa mistura, ele compôs cenas memoráveis com Kim Novak, Eve Marie Saint, Tippi Hedren, Grace Kelly, Ingrid Bergman... 
 
Quem mais sofreu, ao que parece, foi Tippi Hedren. O livro de Camille Paglia sobre Os Pássaros (Ed. Rocco) relata algumas coerções psicológicas (vá o eufemismo) por que a atriz passou durante as filmagens (e em Marnie a história se repetiu). 



(Tippi Hedren em Os Pássaros )

 
O problema com Hitchcock não era somente o machismo, era o fato de que o cinema era para ele um teatro de marionetes. Ele concebia complicadas coreografias entre atores, cenários e câmera, e finalizava essas coreografias na mesa de montagem. Durante esse processo, ficava muito impaciente quando alguém (homem ou mulher) não obedecia suas marcações exatas, precisas, e que não necessitavam de justificativas (pelo menos na cabeça dele). 
 
Pensei nisto recentemente lendo os depoimentos de algumas atrizes sobre seu trabalho com David Lynch, morto recentemente. Sou admirador dos filmes de Lynch desde que vi O Homem Elefante por volta de 1981, num cinema no centro do Recife. Gosto de todos, até dos que são (aos meus olhos) cheios de defeitos, ou de coisas-que-eu-preferiria-ver-filmadas-de-um-jeito-diferente. 



(Naomi Watts e David Lynch)

 
Ao longo dos anos vi muita gente falando da experiência de filmar com Lynch, e parece uma unanimidade dizer que ele conseguia transformar o set de filmagem num ambiente agradável, animado, respeitoso, e até mesmo “leve” – se é que isto é possível num trabalho tão complicado, tão sujeito a problemas. 
 
E não é elogio póstumo com missa-de-corpo-presente. Dizem isso do estilo de filmar de Lynch há pelo menos vinte anos. O que é tanto mais notável quando se sabe que seus filmes, fatalmente, em algum momento, fazem um mergulho, tenso e sem concessões, em algumas regiões cruéis, violentas e doentias da mente humana. (E do corpo humano.) 
 
É fácil ter um “set” de filmagem descontraído e de bom humor quando se está filmando uma comédia com Billy Crystal ou um filme-de-amor para adolescentes. Mas filmar histórias como Veludo Azul ou Twin Peaks, com seu teor de crueldade física e morbidez mental, requer um talento especial. É preciso manter o nível de tensão necessário à empreitada, e ao mesmo tempo conseguir que a equipe não saia dali massacrada ou deprimida. É arte, mas é carrêgo. 



(Laura Dern e David Lynch) 

 
Depoimentos de atrizes sérias e ótimas (pelos meus critérios) como Laura Dern, Naomi Watts e Isabella Rossellini mostram o quanto David Lynch conseguia conduzir todo mundo ao longo dessa corda-bamba sem que ninguém caísse. 
 
Deprimidas ou massacradas saem muitas equipes (elenco + técnicos) dos sets de filmagem de várias obras-primas. Filmes que chegam a esse nível de qualidade porque são realizados por diretores exigentes, perfeccionistas, geniais, dotados de “uma visão”, impiedosos para com erros ou limitações. 



(Shelley Duvall em O Iluminado

 
São fofocas de Hollywood, mas ainda hoje se fala nas centenas de takes que Stanley Kubrick (cujos filmes eu admiro tanto quanto os de Lynch) exigia de seus atores. Li alguns meses atrás, por ocasião da morte de Shelley Duvall, depoimentos dela sobre a via-crucis por que passou para filmar O Iluminado.  Mais madura, mais tranquila, Shelley tentava minimizar o sofrimento por que passou nas mãos de Kubrick, mas as histórias que se contavam na época são assustadoras e plausíveis. 
 
Não só ela – até um homão hardboiled como George C. Scott foi obrigado a refazer dezenas de vezes os mesmos takes, que ele, ator brechtiano, queria fazer a sério, e Kubrick queria ver na chave mais grotesca possível. Diz-se que ao ver Dr. Fantástico pronto, Scott arrancou os cabelos ao ver que Kubrick jogara no cesto de lixo seus esforços mais sérios e transformou o General Buck Turgidson num dos personagens mais caricatos de sua filmografia. 



(George C. Scott em Dr. Strangelove) 

 
Claro que Kubrick sabia o que estava fazendo, e tinha o direito de fazê-lo. Mas trabalhar com ele era provavelmente algo que todo mundo morria de vontade antes, e suspirava de alívio depois. 
 
Kubrick era do time de Hitchcock. Cinema é o que vai aparecer na tela, e se for preciso passar a estrela principal num moedor-de-carne para obter esse efeito, traga-se o moedor. 
 
Também não é preciso fazer como (num caso muito discutido em anos recentes) Bernardo Bertolucci e Marlon Brando, que nas filmagens de O Último Tango em Paris combinaram entre si como seria a cena do estupro da personagem de Maria Schneider, e a atriz, jovem e pouco experiente, deixou-se levar. (E arrependeu-se publicamente depois.) 



(Marlon Brando e Maria Schneider, em O Último Tango em Paris

 
Já conversei com diretores que defendem, com restrições, esta prerrogativa de poderem recorrer a diferentes métodos para “extrair do ator uma emoção verdadeira”. 
 
Deixar o ator/atriz em insegurança; irritar; ameaçar; ofender; fazer chantagem emocional; confessar uma paixão (verdadeira ou falsa); ridicularizar a pessoa na frente de toda a equipe... 
 
E quando a pessoa estiver no estado emocional desejado, pegar o megafone e gritar: “Vamos lá! Cena 132, take 1!... Rodando!...” 
 
Tudo vale a pena quando resulta numa boa cena, diria Fernando Pessoa, se fosse roteirista. O que acontece é que existem estirpes diferentes de diretores. Eu costumo classificá-los em três tipos principais (estas simplificações são sempre toscas, é só para dar uma idéia):
 
a)      Diretor de Imagem: para quem o que mais importa é botar na tela imagens perfeitas, originais, espantosas, não importa o trabalho que isso dê. Não é apenas o “filme com fotografia bonita”, é também o filme com estética própria, o filme que inventa uma nova linguagem, o filme fundado em efeitos especiais... Muitos são diretores que vieram da área técnica (câmera, etc.). 

b)      Diretor de História: o que quer contar uma história, e tudo deve colaborar com essa história. A narrativa é o centro do filme, não apenas pela originalidade do enredo, mas pelas idéias que essa enredo provoca. É um tipo de cinema mais próximo da Literatura; muitos roteiristas se tornam diretores, atuam nesta faixa, dizem nas entrevistas: “Sou um contador de histórias”. 

c)       Diretor de Atores: é o diretor para quem o trabalho com o elemento humano é o centro de tudo; muitas vezes são diretores que têm também uma carreira no teatro. Quando dão um close-up em alguém, decerto estão preocupados com a lente, a iluminação, e tudo o mais: mas, principalmente, com o que se está se passando naquele instante na cabeça do ator/atriz. 
 
Claro que um bom diretor (nem precisa ser genial) mistura todas essas coisas. Precisa fazê-lo, se quer dirigir. Mas já vi dezenas de diretores dizendo coisa do tipo: “Eu quero é contar uma boa história com perfeição, o elenco pode ser qualquer um, a imagem precisa apenas ser correta e sem erros.”. Já vi depoimentos dizendo: “Me dê um elenco de amigos com quem já trabalhei, eu invento uma história em uma semana, e eles vão criar todo o resto.” 
 
Lynch dirigiu O Homem Elefante (1980) aos 34 anos. Teve que se mudar para a Inglaterra e dirigir feras como Sir John Gielgud e Anthony Hopkins, quando seu currículo incluía apenas o bizarríssimo Eraserhead (1977). 



(David Lynch e Anthony Hopkins em O Homem Elefante

 
Ele já fez vários relatos do pesadelo que foi esta experiência, até porque Hopkins detestou trabalhar com ele, os dois não coincidiam em quase nada, mas quem bancou Lynch do começo ao fim foi Mel Brooks. O produtor acreditou no jovem inexperiente, comprou todas as brigas, não permitiu nenhuma interferência dos financiadores, e a verdade é que The Elephant Man acabou recebendo oito indicações ao Oscar. 
 
(Eu vejo com certo desdém essa fixação da turma do cinema pelo tal do “Oscar”, mas enfim, ele rende dinheiro, e fica o registro.) 
 
Há diretores que, não importa o quanto se preocupem com a fotografia ou com a amarração do roteiro, parecem gostar de entrar em sintonia com seus atores, quase numa ligação telepática. Uma ligação que envolve memória, afeto, improviso, confiança mútua. O que pode ser um bom antídoto para a tendência, no cinema de hoje (tanto o cinemão industrial quanto o cinema descolado-alternativo), para o estilo “arrancar uma interpretação boa dessa turma, nem que seja no chicote”. 



(Federico Fellini e Marcello Mastroianni, em Oito e Meio) 
 
 
 
 




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