“A vida inteira que poderia ter sido e não foi”, pensou um dia Manuel Bandeira, durante um poema.
Frágil, ameaçado pela tuberculose desde a adolescência, o poeta não tinha como não fantasiar outras vidas, o que aliás fez lindamente em “Vou-me embora pra Pasárgada”. Tanta coisa para viver, tantas aventuras, tantos prazeres! E a vida se resume ao esforço fatigante de preservar uma existência sem atrativos. Por isso, talvez, gente como Janis Joplin dizia preferir viver dez anos a mil-por-hora do que mil anos a dez.
Janis conseguiu o que queria. A maioria das pessoas prefere viver pianinho, prefere pegar leve, poupar-se, mesmo que resignando-se a uma certa pasmaceira. E abrindo mão daquilo que a cultura-de-massas chama “a realização do seu sonho”.
Paulo Coelho popularizou (não foi ele quem criou) a expressão “quando você vai atrás do seu sonho, o universo inteiro conspira a seu favor”. É uma frase eficaz no sentido motivacional, porque todos nós precisamos de uma aplicação de otimismo quando temos que encarar uma tarefa, mesmo algo simples como arrumar a escrivaninha ou lavar o banheiro de casa.
É preciso acreditar que o objetivo vai ser atingido. Times de futebol, equipes de vendedores, grupos de militantes políticos, soldados no campo de batalha – todos eles precisam acreditar no sucesso, precisam da hipnose benéfica do otimismo.
Esse tipo de auto-ajuda funciona de forma paradoxal, porque as pessoas conseguem acreditar ao mesmo tempo no livre-arbítrio (“eu tomei esta decisão e tenho certeza de que alcançarei meu objetivo”) e no destino (“está escrito que serei vencedor”). O que é compreensível: sempre que os fatos parecem desmentir um desses aspectos, basta-nos trocar de chave, e acreditar no outro.
(Hugh Mac Leod)
Hugh MacLeod, autor de livros de auto-ajuda, afirma (em Ignore Everybody):
Toda pessoa foi trazida para a Terra com um Monte Everest privado para escalar. Talvez você nunca chegue ao pico, e isto é compreensível. Mas se você não fizer pelo menos um esforço sério para chegar ao cume nevado, anos depois você vai se ver deitado em seu leito de morte, e tudo que vai sentir é um enorme vazio. (trad. BT)
A auto-ajuda consiste muitas vezes em reafirmar, com suas próprias palavras, algo que você leu e lhe pareceu fazer sentido.
Franz Kafka tem uma parábola famosa chamada “Diante da Lei”. Um homem chega diante de uma porta que dá acesso à Lei. Diante dela há um guarda enorme, ameaçador, que o dissuade de tentar entrar ali. “Depois desta porta há outra,” explica ele ao homem, “com um guarda ainda maior que eu, e depois outra ainda maior, e assim por diante; eu próprio não consigo olhar para eles sem ficar tomado de terror.”
O homem hesita, acha que não vai ser capaz, e passa o resto da vida ali, ao pé da porta. Perto de morrer, ele chama o guarda e pergunta por que motivo, durante todos aqueles anos, não apareceram outras pessoas ali à procura da Lei. O guarda responde: “Porque esta porta existia somente para ti, e como agora vais morrer, terei que fechá-la”.
A porta da Lei e o Everest privado são o mesmo conceito – existe algo que somente você será capaz de tentar, e não adianta tentar se beneficiar da experiência alheia ou do efeito manada, invadindo o recinto junto com uma multidão. As conquistas pessoais são solitárias, por definição. Dependem só de você.
Henry James glosou este mote em sua misteriosa noveleta “A Fera na Selva” (1903). Seu protagonista, John Marcher, é um homem inteligente, pacato, metódico, que confessa viver à espera de um evento extraordinário que (por uma intuição qualquer) ele pressente estar à sua espera no futuro. Preparando-se para esse evento (que tanto pode ser uma epifania quanto um desastre), ele se poupa, se protege, evita embarcar em outros compromissos. E no final, nada acontece. O evento extraordinário talvez estivesse no seu caminho se ele tivesse se lançado à vida, ao invés de se proteger dela.
Ter medo da vida é doloroso. O que dizer de quem tem medo da literatura? John Crowley tem um conto, “Novelty”, na coletânea do mesmo nome (Foundation / Doubleday, 1989), cujo protagonista, um indivíduo cheio de ambições literárias, um dia se depara, dentro de si mesmo, com uma revelação acabrunhante.
Muitos anos depois, ele percebeu que a diferença entre ele e Shakespeare não era propriamente de talento, mas de fibra. A capacidade de não se intimidar diante das idéias mais vastas ou mais poderosas e de simplesmente (simplesmente!) sentar-se à mesa e pôr mãos à obra. A terrível languidez que se apossava dele quando algo imenso e complexo tornava-se subitamente claro aos seus olhos, algo com as dimensões de um “Rei Lear” e a minúcia de um soneto. Se ao menos não desabasse sobre ele assim, de uma vez, tudo tão monumental e tão perfeito, deixando-o amedrontado e frouxo diante da perspectiva de articular tudo aquilo, cena por cena, página por página!... (...) Gemendo como um fantasma desprezado, a idéia grandiosa ruflava as asas e sumia no vazio. (trad. BT)
Alguns autores são assim, capazes de se maravilhar (e se aterrorizar) com as dimensões de uma empreitada. Outros são mais pragmáticos.
(Thomas Carlyle)
Conta-se que Thomas Carlyle recebeu de seu colega John Stuart Mill, em 1834, a encomenda da redação de uma história da Revolução Francesa. Mill recebera essa proposta mas não tinha condições de executá-la. Carlyle aceitou, e pôs mãos à obra. Depois que concluiu o livro (cuja edição atual tem cerca de 800 páginas), enviou o manuscrito para Stuart Mill. Na casa deste, por engano, uma criada pegou o pacote com o manuscrito e o queimou, achando que era destinado ao lixo. Quando recebeu a notícia, Carlyle sentou-se à mesa, pegou pena e tinteiro, escreveu “Capítulo 1”, e refez o livro por completo.
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