O
nome é o rosto verbal do personagem, a senha que basta pronunciar para fazê-lo
surgir por inteiro. Na criação de um
personagem, a escolha ou invenção de um nome próprio é uma decisão final que
nem sempre é fácil. Alguns escritores
costumam fazer listas de nomes e sobrenomes, e os distribuem pelos personagens
seguindo um pouco o instinto e um pouco a busca de verossimilhança.
Pode ser que o autor queira fazer do seu personagem alguém típico, mediano, e nesse caso pode ser útil dar-lhe um nome quase invisível. “José da Silva” já é caricatural, mas nomes como “Antonio Barbosa” ou “Paulo Ferreira” são nomes brasileiros que tendem a passar despercebidos. Qualquer “Maria” se dilui em milhões de outras, a menos que traga um segundo nome fora do comum.
Na antiga literatura satírica ou moralizante usava-se o nome do personagem para revelar desde logo sua característica principal. Um indivíduo ingênuo chamava-se “Simplício” ou “Inocêncio”; um indivíduo decente e probo era “Honorato”. “Fidélia” sugeria uma esposa digna, e “Dolores” uma sofredora.
Essas indicações óbvias destinavam-se talvez a um público leitor não muito sofisticado, para quem a iniciativa de associar o nome do personagem ao seu caráter era uma gratificante façanha intelectual. Com o passar dos tempos este recurso foi se tornando mais sutil, mas não se perdeu de todo. Em Dona Flor e Seus Dois Maridos Jorge Amado contrasta os dois esposos da protagonista chamando a um Vadinho, que sugere “vadio”, e ao outro Teodoro Madureira, que sugere um homem religioso e maduro.
Os nomes dos personagens de Guimarães Rosa já mereceram numerosos estudos, começando pelo Recado do Nome de Ana Maria Machado, em 1976. Na literatura de Rosa existe um propósito permanente de não tratar os nomes próprios como um dado imutável, documental, extraído da realidade e impossível de modificar. Ele considera que o nome é um elemento literário a mais, e que cabe ao escritor interferir nele, torná-lo significante.
Os nomes dos grandes personagens de sua obra (Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Augusto Matraga, Miguilim, etc.) já foram exaustivamente analisados pela crítica. Mas basta pegarmos uma lista de coadjuvantes para perceber o ouvido e a memória afetiva do autor, como nas listagens que Riobaldo faz dos jagunços do bando: Alaripe, Sesfrêdo, João Concliz, Quipes, Joaquim Beijú, Tipote, Quêque, Mão de Lixa, Freitas Macho, Preto Mangaba, Coscorão, Jiribibe, Moçambicão, Sidurino, Rasga-em-Baixo, Dimas Doido... Nomes tão peculiares e característicos quanto um rosto humano visto de perto.
Nomes abstratos foram muito usados na literatura romântica, onde apareciam “o Marquês de S...” ou “a Duquesa de D...”, quando não “o Barão de ***” – o que levou a Emília de Monteiro Lobato a proclamar-se “Condessa de Três Estrelinhas”.
Osman Lins foi um dos raros escritores brasileiros a criar um sinal gráfico para designar um personagem, em vez de um nome. Em seu romance Avalovara, uma personagem feminina é referida por um sinal: um círculo com um ponto no centro e duas pequenas saliências erguidas dos lados, como duas orelhas. Um recurso ousado, até pelo fato de que o leitor não dispõe de um equivalente sonoro para este sinal, como ocorre com qualquer nome comum. Se um personagem se chama “Capitu”, existem sons correspondentes à combinação dessas seis letras nessa ordem. Mas a personagem de Avalovara existe apenas para os olhos, na página; é um personagem fora do mundo oral.
Pode ser que o autor queira fazer do seu personagem alguém típico, mediano, e nesse caso pode ser útil dar-lhe um nome quase invisível. “José da Silva” já é caricatural, mas nomes como “Antonio Barbosa” ou “Paulo Ferreira” são nomes brasileiros que tendem a passar despercebidos. Qualquer “Maria” se dilui em milhões de outras, a menos que traga um segundo nome fora do comum.
Na antiga literatura satírica ou moralizante usava-se o nome do personagem para revelar desde logo sua característica principal. Um indivíduo ingênuo chamava-se “Simplício” ou “Inocêncio”; um indivíduo decente e probo era “Honorato”. “Fidélia” sugeria uma esposa digna, e “Dolores” uma sofredora.
Essas indicações óbvias destinavam-se talvez a um público leitor não muito sofisticado, para quem a iniciativa de associar o nome do personagem ao seu caráter era uma gratificante façanha intelectual. Com o passar dos tempos este recurso foi se tornando mais sutil, mas não se perdeu de todo. Em Dona Flor e Seus Dois Maridos Jorge Amado contrasta os dois esposos da protagonista chamando a um Vadinho, que sugere “vadio”, e ao outro Teodoro Madureira, que sugere um homem religioso e maduro.
Os nomes dos personagens de Guimarães Rosa já mereceram numerosos estudos, começando pelo Recado do Nome de Ana Maria Machado, em 1976. Na literatura de Rosa existe um propósito permanente de não tratar os nomes próprios como um dado imutável, documental, extraído da realidade e impossível de modificar. Ele considera que o nome é um elemento literário a mais, e que cabe ao escritor interferir nele, torná-lo significante.
Os nomes dos grandes personagens de sua obra (Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Augusto Matraga, Miguilim, etc.) já foram exaustivamente analisados pela crítica. Mas basta pegarmos uma lista de coadjuvantes para perceber o ouvido e a memória afetiva do autor, como nas listagens que Riobaldo faz dos jagunços do bando: Alaripe, Sesfrêdo, João Concliz, Quipes, Joaquim Beijú, Tipote, Quêque, Mão de Lixa, Freitas Macho, Preto Mangaba, Coscorão, Jiribibe, Moçambicão, Sidurino, Rasga-em-Baixo, Dimas Doido... Nomes tão peculiares e característicos quanto um rosto humano visto de perto.
Nomes abstratos foram muito usados na literatura romântica, onde apareciam “o Marquês de S...” ou “a Duquesa de D...”, quando não “o Barão de ***” – o que levou a Emília de Monteiro Lobato a proclamar-se “Condessa de Três Estrelinhas”.
Osman Lins foi um dos raros escritores brasileiros a criar um sinal gráfico para designar um personagem, em vez de um nome. Em seu romance Avalovara, uma personagem feminina é referida por um sinal: um círculo com um ponto no centro e duas pequenas saliências erguidas dos lados, como duas orelhas. Um recurso ousado, até pelo fato de que o leitor não dispõe de um equivalente sonoro para este sinal, como ocorre com qualquer nome comum. Se um personagem se chama “Capitu”, existem sons correspondentes à combinação dessas seis letras nessa ordem. Mas a personagem de Avalovara existe apenas para os olhos, na página; é um personagem fora do mundo oral.
Oswald de Andrade, embora mais conhecido como poeta e agitador literário, escreveu dois romances que estão entre as obras mais criativas de todo o Modernismo Brasileiro, Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande. Neles, a verve satírica do escritor se volta contra a afetada e ignorante burguesia de sua época, e ele prega aos seus personagens nomes burlescos: Pinto Calçudo, Machado Penumbra, Madama Rocambola, Carlindoga, Mariquinhas Navegadeira... São nomes que nada têm de realistas, mas que muitas vezes evocam justamente os apelidos cômicos que as pessoas de sobrenomes pomposos colocam nos parentes, na sua intimidade familiar.
A literatura de ficção científica tem a obrigação de inventar outros mundos, outras civilizações, outras línguas e outras Histórias. Como produzir nomes que reflitam essa enorme estranheza? Um alienígena, vindo de outro sistema solar, não pode se chamar William nem Bóris. Uma solução frequentemente empregada pelos autores é tentar reproduzir foneticamente os sons, teoricamente ininteligíveis, que constituem os nomes próprios. Daí surgem nomes como “Ph’theri” e outros.
Isaac Asimov, nas suas histórias sobre robôs inteligentes, dá aos seus robôs mecânicos siglas que são transformadas, na linguagem coloquial, em nomes próprios. Assim, “NS-Two” torna-se “Nestor”, “LV-X” torna-se “Elvex” e assim por diante. Já os nomes dos personagens humanos na sua série da “Fundação” são uma hábil mistura de radicais e sílabas aleatórias, que os tornam fáceis de pronunciar, mas com o grau de estranheza suficiente para parecerem nomes de outros mundos: Hari Seldon, Salvor Hardin, Golan Trevize, Dors Venabili, Ebling Mis, Eto Dermezel, etc.
Cada escritor cria um laboratório de nomes de acordo com o universo que está criando. Os planetas onde ocorrem as histórias de Cordwainer Smith têm um clima retrô, são civilizações avançadas que procuram reproduzir fases antigas da História da humanidade, recorrendo a idiomas extintos. Isto o faz criar nomes próprios como Lord Jestocost, Dolores Oh, Magno Taliano, Lord Femtiosex, Lady Arabella, Lord Sto Odin, além de lugares como o planeta Viola Siderea e o Alpha Ralpha Boulevard, “a avenida que subia até as nuvens”.
O ideal é que um nome literário seja marcante, único, e que fique colado àquele personagem para sempre: Quincas Borba, Jane Eyre, Gregor Samsa, Isaías Caminha, Emma Bovary, Dorian Gray, Maria Moura... Nomes fortes, característicos, não tão comuns que se confundam com outros, não tão raros que sugiram um exotismo desnecessário.
(Uma versão ligeiramente diferente deste texto apareceu na revista Língua Portuguesa, Editora Segmento (São Paulo), março de 2009)
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