O pensamento das pessoas chamadas normais é como os
automóveis no trânsito, e o pensamento dos doidos é uma bicicleta.
O automóvel, teoricamente, poderia andar de ré em plena
rua, poderia subir na calçada, poderia dirigir na faixa da esquerda e não da
direita, e assim por diante. Poderia fisicamente, é claro. Não o faz porque
existem leis, códigos, punições previstas; e existe um consenso geral de que é
melhor assim, é melhor que haja proibições e restrições, desde que isso deixe
as possibilidades mais claras, e facilite a vida de todo mundo.
A bicicleta, não. O ciclista é um ser estranho, meio esquizóide.
Está montado num veículo mas se considera pedestre. Ciclista sobe na calçada,
anda na contramão, enfia-se a toda velocidade por um grupo de pedestres, pedala
do lado esquerdo, do lado direito... Todo mundo obedece regras, mas o ciclista
só obedece sua própria conveniência.
O juízo dos doidos é assim também – pensa o que gosta e o
que consegue, e danem-se as outras formas de pensar.
Quando digo “os doidos” não me refiro necessariamente às
pessoas com problemas mentais, internas nos manicômios, etc. Refiro-me a todas as pessoas que pensam “fora
do esquadro”, pessoas cujo raciocínio segue leis próprias; e o fazem
espontaneamente, e não de forma lúcida e deliberada como o fazem os poetas,
escritores, etc.
Exemplo do pensamento de um doido: o primeiro dicionário
de polonês foi publicado em 1746, e entre outras definições tinha esta:
“CAVALO – Todo
mundo sabe o que é um cavalo”.
Este dicionarista é um doente mental? Provavelmente não,
mas o raciocínio que o fez redigir este verbete é o típico raciocínio de um
doido.
G. K. Chesterton tem algumas excelentes páginas sobre a
doidice no capítulo “The Maniac” de Orthodoxy
(1908). É dele a famosa frase de que “um doido é alguém que perdeu tudo exceto
a razão”. Vale lembrar que Chesterton dizia isso lamentando o doido, e não para
celebrá-lo. O sentido profundo de sua frase é de que um doido é alguém incapaz
de pensar em diferentes categorias, de compreender um ponto de vista diferente
do seu. O doido é alguém “cheio de razão”, como a gente diz na Paraíba para
qualificar uma pessoa arrogante, prepotente, que se recusa a entender o ponto
de vista do interlocutor.
Para Chesterton, a insanidade é quando uma pessoa começa
a raciocinar sem partir dos princípios corretos; ela entra num vale-tudo
mental, porque a sua razão é “uma razão sem raízes, uma razão que gira no
vácuo”. Um pensamento insano, mesmo que articulado de modo aparentemente
correto; como certas frases sintaticamente corretas mas que nada dizem, como no
caso dos cambueiros que taliscam a bata de qualquer catalunga, sem perceber que
o tirambó não calistura, nem as tragas fazem qualquer pinelo.
A doidice – essa doidice – seria um pensamento que perdeu
a semântica mas mantém um arremedo de sintaxe.
Chesterton abomina o doido (“o maníaco”) porque, para ele,
doido é quem não é cristão, quem não parte dos princípios corretos. Na análise dele
não há lugar para o doido engraçado, o doido surrealista, o doido imprevisível.
O tipo que ele descreve (com o brilhantismo de sempre) é o monomaníaco, o doido
vazio, o doido sem graça. Por isso ele diz que “mesmo os delírios mais poéticos
dos insanos só podem ser apreciados por uma pessoa sã; para o insano, sua
insanidade é extremamente prosaica, porque é real”.
Acho que foi Henri Bergson, em sua teorização sobre o
Riso, quem sugeriu esse ângulo para definir o Humor: é a nossa reação quando
vemos alguém se comportar cegamente, de maneira mecânica, encalhada num só tipo
de visão, de reação, de raciocínio. Neste ponto há uma convergência
interessante com o pensamento de Chesterton, porque esse tipo de personagem é
alguém que perdeu tudo, exceto a razão, perdeu qualquer capacidade de pensar,
exceto aquele pensamento mecânico que o transforma num cego repetidor de
clichês, de palavras-de-ordem ou de mantras que nem ele mesmo entende.
Existem doidos de toda qualidade. Dizer “o Doido” é tão
inconclusivo como dizer “o Artista”, porque dentro desse termo cabe um milhão
de tipos.
Guimarães Rosa exclama, através do seu narrador de “A
Terceira Margem do Rio”: “Ninguém é
doido. Ou então todos.” Rosa era fascinado pelos doidos, e um conto como “O
Recado do Morro” (hoje incluído no livro No Urubuquaquá, no Pinhém) exibe uma galeria de doidos muito variada.
Tem o “Catraz”, cientista amador, o homem que inventou um
automóvel ainda incompleto, porque só funcionava na descida, “na subida e no plaino ainda não é capaz de
rodar.” O Catraz queria voar para a Lua montado numa catrevage puxada por
urubus amarrados, bastando-lhe erguer na ponta de uma vara um pedaço de
carniça, que faria os urubus levantarem voo para alcançá-la, e como a vara
estaria igualmente se elevando, acabariam desembarcando na Lua ou além.
Tem o “Coletor”, doido que vivia rabiscando números nos
muros da cidade, contabilizando suas cabeças de gado, suas terras, seus
ouros...
A doideira dele era
uma só: imaginava de ser rico, milionário de riquíssimo, e o tempo todo passava
revendo a contagem de suas posses. Escrevia em papel, riscava no chão,
entalhava em casca de árvore, em qualquer parte. (...) Aquele homem tinha uma
felicidade enorme.
Nossos magnatas de fortunas eletrônicas, virtuais,
compartilham dessa imaterial felicidade, e ai de quem sugerir recolhê-los ao
Pinel. Me digam em que casca de árvore ficaram os bilhões de Eike Batista ou de
Bernard Madoff. São doidos? Não, são espertalhões, mas eram menos espertos do
que imaginavam. Dinheiro é um poderoso alucinógeno; ele proporciona visões
deslumbrantes, mas também faz o sujeito atravessar a rua na hora errada.
No mundo de Chesterton não há lugar para o doido esperto.
O doido esperto é simplesmente o esperto que se faz de burro para enganar os
burros que se consideram espertos. O exemplo clássico é o Doidim que os caras
da cidade chamam e mandam escolher entre uma moeda pequena de ouro e uma moeda
grande de cobre – e ele sempre pede para si a moeda maior. Quando alguém vai
lhe explicar que seria mais jogo pegar a outra, ele diz: “Se eu pegar a outra,
eles param de me chamar”.
Esse é o doido esperto, o doido ciclista, que inventa um
caminho mais útil para si mesmo, aproveitando-se do fato de que os outros só
raciocinam de um jeito. Perderam todas as outras formas de pensar, e só lhes
resta “a razão”. São previsíveis. Podem ser driblados.
Um clássico exemplo de doido esperto é Dom Pedro Dinis
Ferreira-Quaderna, o narrador do Romance
da Pedra do Reino (1971) de Ariano Suassuna, um personagem mercurial, escorregadio,
que ao longo do romance se faz de doido, se faz de cego, se faz de besta, se
faz de intelectual, se faz de qualquer coisa que lhe convenha a cada instante. Quaderna
tem, como certos doidos, a mania de grandeza, de se acreditar o futuro Imperador
do Brasil, por ser descendente dos fanáticos que degolaram dezenas de pessoas
em 1838, na Pedra do Reino, para desencantar um castelo e trazer de volta Dom
Sebastião. Quaderna acredita nisso? Depende. Acredita quando lhe convém. Tem
mais juízo do que eu ou você.
Meu saudoso amigo Arievaldo Viana contava esta, de algum
doidim cearense:
Hoje encontrei um doido que anda pedindo esmola
aqui na Praça Pedro Américo. Sempre eu dou-lhe um trocado.
Ele botou a mão na minha cabeça e falou: "Se
você tá com Deus, um bandido bota a arma na sua cabeça, aperta o gatilho e a
arma não dispara."
Perguntei: "E se for uma arma boa e
disparar?"
Ele foi rápido: "Era porque você estava pronto
pra ir ao encontro de Deus".
(Arievaldo Viana)
Um comentário:
Sempre R8sa em seus textos. Acho que li Rosa muito jovem. Preciso voltar a ele agora.
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