A série de TV baseada na obra Foundation de Isaac Asimov (David Goyer & Josh Friedman) começou com um primeiro episódio bastante bom, mas depois foi decaindo. Vi até o quarto ou o quinto, mas parei por enquanto e fui ver outras mil coisas. A vida é curta.
Já falei aqui sobre as mudanças étnicas e de-gênero que a série imprimiu aos personagens de Asimov. Não vejo problemas quanto a isso. Histórias como Fundação são histórias coletivas, pretendem narrar aquilo que chamamos de “um vasto painel”, onde as individualidades surgem apenas para ocupar um espaço e exercer uma função. Nada tenho contra. É uma forma de narrar como qualquer outra.
O primeiro episódio me atraiu porque evoca um “tropo” narrativo clássico na literatura: a chegada de um protagonista jovem e ambicioso a uma cidade (ou um reino, uma organização, etc) onde deverá se impor, lutar, sofrer, crescer, construir seu destino.
A série começa mostrando o contraste entre os planetas Synnax (aquático, semeado de palafitas, envolto em misticismo) e Trantor, a sede do Império, o planeta-cidade. Trantor é o personagem principal deste episódio de abertura. A imaginação de Asimov deu um retrato variado de seus múltiplos ambientes no livro Prelúdio da Fundação, 1988. E esta série introduziu dois elementos novos por sua conta e risco, e achei que se saiu bem.
O primeiro deles é a existência de um
“elevador espacial” que liga o planeta a uma estação orbital ou coisa parecida.
A utilização literária desses elevadores é geralmente atribuída a Arthur C.
Clarke com o livro As Fontes do Paraíso
(1979), embora Charles Sheffield tivesse publicado no mesmo ano The Web Between the Worlds, com tema
semelhante.
É nesse elevador que a jovem matemática Gaal Dornick desce na direção da superfície, ao chegar em Trantor. Ela está cheia de tensão, de euforia, de consciência do desafio em que está mergulhando. Um pouco (imagino aqui com meus botões) como Bob Dylan desembarcando em New York aos 19 anos, ou o espadachim D’Artagnan adentrando a Paris onde irá conhecer três mosqueteiros.
São 14 horas de descida até a superfície de Trantor (elevadores espaciais são tubos verticais com cerca de 30 mil quilômetros de extensão), e toda esta sequência inicial não passa de uma preparação para o desfecho do episódio, quando um atentado a bomba explode o elevador, fazendo o “cabo” gigantesco desmoronar e chicotear o planeta, causando uma carnificina muito maior que a queda das Torres Gêmeas.
Nada disto está no livro de Asimov, mas se é para interferir na história original, que seja assim, com ousadia criativa e efeitos visuais à altura. A propósito, Asimov, falecido em 1992, era um novaiorquino de coração, e se tivesse presenciado o atentado do 11 de setembro isso certamente iria se refletir na sua ficção.
Um artigo de Marcelo Musa Cavallari na
revista Piauí de outubro passado cita
um trecho da filósofa Donatella Di Cesare, em Grammatica dei Tempi Messianici, que diz:
“Se Deus ordenou a dispersão, a humanidade escolhe em seu lugar a concentração. Uma única metrópole, uma cidade mundial, tão grande quanto o mundo, uma cidade-mundo, marcada por uma torre que toque os céus, onde se fale uma única língua: este é o fim último, o resultado extremo do centralismo totalizante e totalitário que anima a empresa babélica.”
Essa contradição judaico-cristã entre dispersão e centralização está na raiz da série de Asimov, inspirada no Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, que ele estava lendo na época. A cidade-mundo de Trantor é o centro de um império de 25 milhões de planetas. Como administrar um latifúndio destas proporções?
A segunda interferência de peso que ocorre neste capítulo inicial foca-se justamente no administrador-chefe, o Imperador Cleon. A série de Goyer & Friedman sugere que a dinastia imperial passou, a certa altura, a clonar o Imperador Cleon e administrar o Império através de triunviratos sucessivos em que Cleon se multiplica em três “irmãos”: Brother Dawn, Brother Day e Brother Dusk (“Aurora”, “Dia” e “Crepúsculo”), que são Cleon com aproximadamente 10 anos, 40 anos e 70 anos.
Não lembro de precedentes na literatura de
FC mostrando triunviratos assim (provavelmente existem), mas a idéia funciona
do ponto de vista dramatúrgico. Afinal, é o mesmo indivíduo, com a experiência
acumulada dos anos, repassando para suas próprias “cópias” seus valores, seus
julgamentos, suas avaliações políticas, suas estratégias.
Quando um “Brother Dusk” fica muito velho, entrega-se a uma eutanásia ritual, enquanto um novo clone-bebê é preparado, de modo que o império tem sempre um Imperador-ancião aconselhando o Imperador-adulto; e os dois instruindo um Imperador-criança nos segredos da governabilidade. (Que ainda será uma palavra mágica e um dogma no ano 12.000.)
E essa solução dramaturgicamente convincente acaba sendo um fator na ruína do Império, porque a mesmice se instaura, a dinastia “recusa-se a largar o osso” como se diz hoje em dia, e a insatisfação política dos sistemas solares da periferia acaba resultando em catástrofes como o atentado que derruba o elevador espacial.
Este bom primeiro episódio, contudo, mostra defeitos que vão se acentuado. Não existe uma vibração humana real por trás dos personagens, mesmo quando estão chorando, esbravejando ou discursando para multidões. Falta subtexto, ou seja, a história contada é tão vasta e complexa que mesmo quem já tem uma idéia detalhada daquele universo sente dificuldade em imaginar o que se passa naquelas cabeças.
Sobra para os atores, que se esforçam para impregnar de raiz humana personagens que não foram concebidos dessa forma.
Fundação acaba se parecendo com certas montagens teatrais de tragédias gregas: cenários monumentais onde pessoas vestindo togas compridas pronunciam frases bombásticas de braço erguido.
Acho que o problema é quando os autores de uma série a definem como “Um Épico de FC”. A palavra “épico” passa a se impor – e no inconsciente coletivo de roteiristas, atores, cenógrafos, etc, surgem filmes como Ben-Hur, O Manto Sagrado ou Os Dez Mandamentos.
“Épico”, no áudio-visual norte-americano, é isso.
São obras que partem da grandiosidade arquitetônica e das girândolas de efeitos visuais, e deixam por último os seres humanos. Esse é o erro. Eu vejo como “épicos” mais característicos da FC filmes tão diferentes entre si como Blade Runner (1982), Mad Max Fury Road (2015), Filhos da Esperança (2006), A Guerra dos Mundos (2005)... Em casos assim, a história humana vem na frente, e o resto, por mais dispendioso que tenha sido, é cenografia.
O cinema dos EUA está cansado de preconizar que o principal fator de sucesso junto ao público é: “uma história interessante acontecendo a personagens interessantes”. A identificação emocional com os personagens é uma coisa complexa, e não é tão fácil de se conseguir quanto parece. Em Fundação (Goyer & Friedman) essa identificação se perde porque uma história de proporções gigantescas fica mal-e-mal subentendida através de diálogos pomposos, e os atores e atrizes se esforçam em vão para dar densidade humana a personagens que o fim das contas são “only a pawn in their game”.
Quando um “Brother Dusk” fica muito velho, entrega-se a uma eutanásia ritual, enquanto um novo clone-bebê é preparado, de modo que o império tem sempre um Imperador-ancião aconselhando o Imperador-adulto; e os dois instruindo um Imperador-criança nos segredos da governabilidade. (Que ainda será uma palavra mágica e um dogma no ano 12.000.)
E essa solução dramaturgicamente convincente acaba sendo um fator na ruína do Império, porque a mesmice se instaura, a dinastia “recusa-se a largar o osso” como se diz hoje em dia, e a insatisfação política dos sistemas solares da periferia acaba resultando em catástrofes como o atentado que derruba o elevador espacial.
Este bom primeiro episódio, contudo, mostra defeitos que vão se acentuado. Não existe uma vibração humana real por trás dos personagens, mesmo quando estão chorando, esbravejando ou discursando para multidões. Falta subtexto, ou seja, a história contada é tão vasta e complexa que mesmo quem já tem uma idéia detalhada daquele universo sente dificuldade em imaginar o que se passa naquelas cabeças.
Sobra para os atores, que se esforçam para impregnar de raiz humana personagens que não foram concebidos dessa forma.
Fundação acaba se parecendo com certas montagens teatrais de tragédias gregas: cenários monumentais onde pessoas vestindo togas compridas pronunciam frases bombásticas de braço erguido.
Acho que o problema é quando os autores de uma série a definem como “Um Épico de FC”. A palavra “épico” passa a se impor – e no inconsciente coletivo de roteiristas, atores, cenógrafos, etc, surgem filmes como Ben-Hur, O Manto Sagrado ou Os Dez Mandamentos.
“Épico”, no áudio-visual norte-americano, é isso.
São obras que partem da grandiosidade arquitetônica e das girândolas de efeitos visuais, e deixam por último os seres humanos. Esse é o erro. Eu vejo como “épicos” mais característicos da FC filmes tão diferentes entre si como Blade Runner (1982), Mad Max Fury Road (2015), Filhos da Esperança (2006), A Guerra dos Mundos (2005)... Em casos assim, a história humana vem na frente, e o resto, por mais dispendioso que tenha sido, é cenografia.
O cinema dos EUA está cansado de preconizar que o principal fator de sucesso junto ao público é: “uma história interessante acontecendo a personagens interessantes”. A identificação emocional com os personagens é uma coisa complexa, e não é tão fácil de se conseguir quanto parece. Em Fundação (Goyer & Friedman) essa identificação se perde porque uma história de proporções gigantescas fica mal-e-mal subentendida através de diálogos pomposos, e os atores e atrizes se esforçam em vão para dar densidade humana a personagens que o fim das contas são “only a pawn in their game”.
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