quarta-feira, 1 de julho de 2020

4595) A Palmatória do Mundo (1.7.2020)




É uma expressão que hoje se usa pouco, porque o objeto que a inspirou está meio obsoleto.

A palmatória era um artefato de madeira constando mais ou menos de um cabo longo e uma expansão achatada, que servia para fustigar sem pena as palmas das mãos dos alunos, nas escolas do Tempo do Ronca. 

Qualquer erro, o Mestre chamava o infrator para diante do quadro-negro, mandava às vezes que se ajoelhasse, estendesse as mãos abertas com as palmas para cima, segurava-lhe nos dedos com a mão esquerda, e com a direita pespegava-lhe na palma uma vigorosa pancada “de chapa” com o instrumento. Cada pancada era chamada “bolo”. 

O mestre cofiava o bigode e bradava: “Sr. Pompéia! Adiante-se! Doze bolos por essa insubordinação!”. E tome lapada.

Surgiu daí a expressão “Fulano só quer ser a Palmatória do Mundo” para designar as pessoas que passam a vida em busca de erros – dos outros. Em tese, fazem isso para tornar o mundo um lugar melhor. Maldo eu que é pelo prazer de bater em alguém – com o álibi de um motivo nobre.

É uma busca que nada tem com a busca de Dom Quixote, que saía mundo afora à procura de injustiças que pudesse consertar. A busca da Palmatória do Mundo é por alguém que possa ser punido, pouco importando no que a punição possa ou não resultar.

A palmatória é o instrumento de quem quer punir impunemente.


Sendo o mundo o que é, a grande maioria das condenações feitas pelas pessoas consideradas “palmatórias do mundo” acabam sendo de ordem moral: fulana é piranha, sicrano é veado, beltrano é drogado.

É sempre muito forte essa tendência à condenação de ordem moral. A Palmatória do Mundo pretende então ser a pessoa que castiga os que pecam, os que erram, os que fazem o mal.

Por extensão, no entanto, sua função é uma função de limpeza, de profilaxia. O erro precisa ser eliminado não porque implique em algo moralmente questionável, mas apenas porque indica uma dissensão, uma desafinação com o conjunto, um cadete de passo errado atrapalhando a simetria da tropa.


A Palmatória do Mundo é o raio uniformizador, nivelador, aplainador, o raio que pretende eliminar todas as protuberâncias e irregularidades, deixando todas as coisas ao mesmo nível, ou com o mesmo formato.

Essa mentalidade floresce em todo grupo social, até nos mais liberais, nos mais tolerantes, nos mais simpáticos com a excentricidade pessoal.

Uma vez, nos velhos tempos das roupas psicodélicas e dos cabelos exuberantes, falei a uma amiga que meu escritor preferido era Julio Cortázar. Quando mostrei uma foto dele, ela protestou: “Mas isso é um burguês! Um careta de paletó e gravata!”.  Não consegui convencê-la de que ele tinha uma imaginação fantástica, era um grande poeta, etc.  A verdade é que, naquela fase hirsuta da vida, a luta contra as gravatas não deixava muito espaço para a apreciação da poesia.


Lembrei disso, com emoção, ao ler o episódio do encontro de Cortázar com um bando de hippies na Alemanha, que narrei aqui:


Eu nunca tive uma predileção especial pelas roupas coloridas, que usei com prazer, e depois troquei por outras, assim como usei cabelo grande, e depois cortei. E amanhã posso pintar o cabelo de azul, e depois tirar a tinta, e depois raspar. O que tudo isso significava, para mim, era apenas a liberdade de fazer o que me desse vontade, com algo tão simples quanto uma roupa ou um cabelo.

Olha que eu não estava defendendo o nudismo em via pública, nem pintar o cabelo com tinta radioativa.



No meu mundo, pessoas de roupa esmulambada, colorida e cheirando a patchuli conviveriam pacificamente com pessoas de terno e gravata, e com pessoas usando bustiê e tapa-sexo. E mais: cada pessoa podia revezar todo dia esses trajes, e outros, conforme lhe desse na veneta.

Mas durante algum tempo tive pesadelos em que o país seria governado por uma Palmatória Hippie do Mundo, em que o paletó e a gravata fossem considerados subversivos, e todo mundo tivesse que se vestir, obrigatoriamente, igual a Serguei e Janis Joplin.

Quando estou lendo ficção científica, procuro ficar de olho no que as pessoas vestem no Planeta Omicron-77 ou no ano 2.543. Vestem terno e gravata? Vestem brusinha? Vestem regata? Vestem macacão de plástico metalizado e aquário transparente cobrindo a cabeça?




("Moda do Futuro", 1950)

Quem quiser um dia fazer um levantamento de roupas inesperadas na FC pode começar em livros (aliás muito bons sob outros aspectos) como Triton – An Ambiguous Heterotopia (1976) de Samuel R. Delany ou Ubik (1969) de Philip K. Dick (Ed. Aleph, SP).












Um comentário:

Jeferson disse...

Eu recebi aulas de reforço com dona Zefinha (Zefa Baú), na Prata onde morava, mais precisamente vizinho do Boião, hoje Espetão. Lá tinha palmatória. Não que eu tenha visto ela fustigar alguém, mais tinha.