sábado, 20 de julho de 2019

4486) A Lua foi conquistada afinal (20.7.2019)





A data de 20 de julho marca este ano o cinquentenário da descida do homem na Lua. Neil Armstrong e Buzz Aldrin foram os dois primeiros seres humanos a caminhar naquela poeira de milhões de anos “que cheirava a pólvora queimada”, disseram eles, após muitas tentativas (ainda na espaçonave) de limpar o finíssimo pó cinzento aderido aos seus trajes espaciais.

Eu estava perto de completar 19 anos naquele dia histórico, e por essas ironias do destino não assisti o pouso pela TV. Estava tocando com minha banda de rock no Recife naquele dia.


Conto essa história neste meu artigo para a revista “Kurumata”:



Já leitor inveterado de ficção científica, eu acho que via naquilo tudo uma dimensão que muita gente ao meu redor não via. Para muitos, era apenas uma façanha como descobrir a América ou chegar ao Polo Norte; uma aventura arriscada, movida a tecnologia e uma certa coragem suicida.

E uma aventura movida a política, porque era ainda a época da Guerra Fria, da corrida tecno-militar entre os EUA e a URSS. Seria (se tudo desse certo) uma vitória esmagadora dos norte-americanos, e todos torcíamos por eles.

Até eu – porque embora estivéssemos vivendo um período brutal da ditadura militar, com o AI-5 recentemente imposto à população, nem eu nem meus amigos tínhamos a menor simpatia para com aquela União Soviética igualmente ditatorial, burocrática, truculenta com seus cineastas e escritores.

Melhor torcer pelos norte-americanos, que pelo menos tinham um pouco mais em comum conosco, pensava todo mundo ao meu redor.

Ou (pensava eu) melhor considerar aquilo uma vitória não de um país, mas de toda a Humanidade. Era um planeta que pela primeira vez tocava fisicamente em outro; não era um país. Nós, brasileiros, estávamos pousando ali também.

A transmissão ao vivo, em tempo real, coisa nova naquela época, criava um laço supra-nacional entre todos os bilhões de pessoas que acompanhavam a aventura. A televisão nos unia num momento que, descontadas as oscilações de fuso horário e os inevitáveis delays de transmissão, podia ser considerado um “Agora” universal. Além fronteiras.

E aquele fato transcendental acabaria servindo também como argamassa de destinos individuais, dando à descida na Lua aquele status de fato unificador, que nos leva a perguntar a alguém: “Onde estava você quando aquilo aconteceu?”.

Durante alguns anos tomei notas para um conto que se intitularia justamente “Onde Estava Você?”, e que seria uma reflexão sobre esse eixo de simultaneidade entre vidas individuais, produzido por um fato de amplitude planetária.

Pensei em três casais de gerações sucessivas, numa mesma família. Em 1945, o avô e a avó do narrador escutam a notícia da explosão da Bomba de Hiroshima. Em 1969, o pai e a mãe dele assistem na TV a descida do homem na Lua. E em 2006 ele conta onde está quando uma raça alienígena faz seu primeiro contato explícito com o nosso planeta.


O conto ficou se chamando “Príncipe das Sombras”, está no meu livro A Espinha Dorsal da Memória (1989), e diz a certa altura:

...um dia ele perguntou a ela onde estava quando a Bomba caiu sobre o Japão. Ela respondeu que tinha sabido da notícia através do rádio; tomava banho de chuveiro e o rádio estava ligado na sala, ela ouviu a voz urgente do locutor e captou alguma frase, não percebeu todos os alcances do fato mas sentiu que tinha a ver com o fim da guerra, saiu à sala gotejante, envolta na toalha, mas o rádio já retornava à música e a mãe vinha em defesa do tapete. (...) Quanto a ele, que tinha vinte e quatro anos naquele agosto, estava num restaurante com alguns amigos, quando outro amigo entrou a passos largos, puxou uma cadeira e largou na mesa a notícia, o peito ofegante, os olhos brilhando, e não porque estivesse a pensar no efeito daquilo sobre o moral nipônico, mas porque era possível, era real.


(...) Em 20 de julho de 1969 uma moça de cabelos louros ligou a televisão para ver o que estava passando (dividia um apartamento com duas amigas, ambas tinham saído, era domingo) e viu uma sucessão de imagens que não entendeu bem, entendeu a voz que as acompanhava e era a de Gilberto Gil, que àquela época era seu cantor preferido; a voz entoava versos que ela não conhecia: “Momento histórico... Simples resultado do desenvolvimento da ciência viva... Afirmação do homem, normal, gradativa, sobre o universo natural – sei lá que mais...”  A canção a levou à poltrona, da qual não mais se levantou durante as horas seguintes, até terminar a transmissão da primeira descida do homem na Lua. A moça ainda não era minha mãe; ainda se passariam vários anos até que um rapaz de cabelos escuros e boca maliciosa lhe perguntasse: “onde estava você, quando, etc.?” Após a resposta, ele disse que naquele dia estava também diante da televisão, a sala cheia de gente, a cabeça cheia de fumo, o rosto lavado em lágrimas, vingativamente satisfeito, como se aquilo fosse um triunfo pessoal.

A ficção científica nunca me ensinou a odiar raças alienígenas, mas me ensinou a pensar na humanidade como uma coisa só. Retalhada por distâncias geográficas, históricas e culturais, desunida por competições econômicas e políticas; mas uma coisa só. Quem pisou na Lua naquela tarde de domingo foram os aborígenes australianos, os camponeses do México, os pastores do Cáucaso, os tutsis e hutus de Ruanda, os roqueiros da Escandinávia, os pirangueiros-de-porta-de-bodega do bairro do São José, em Campina Grande, que certamente estavam vendo tudo e fazendo piada.

Gilles Deleuze tem uma definição de Esquerda x Direita que para mim vai muito mais além dessa distinção meramente política. Diz ele que quem é de esquerda se preocupa primeiro com a humanidade, depois com seu próprio país, e só depois com sua cidade e as pessoas que o cercam. E quem é de direita pensa acima de tudo em si mesmo e nos seus, só depois cuida dos interesses do país, e provavelmente não está nem aí para a humanidade. (Estou parafraseando, claro.)

Eu tiraria os termos “esquerda” e “direita” da discussão e diria que essa oposição talvez seja a mais importante de todas no planeta Terra de hoje, quando é o próprio planeta que está ameaçado de entrar em colapso, e com esse colapso acabar com as guerras dos países, a farra das "famílias" e a própria existência da civilização.

Se esta não for a questão mais importante do mundo hoje, neste 20 de julho de 2019, qual será?















Um comentário:

Unknown disse...

Pronto, colapsou. 60 dias de isolamento social, este texto no Mundo Fantasmo e tb A ESPINHA DORSAL DA MEMÓRIA continuam atuais. Não pelo seu escrito, mas pela situação, tristemente atuais.