1
Eu me lembro de
quando se aproximava o mês de setembro e a gente interrompia as aulas para ir
ensaiar o desfile, na rua. Por um lado era bom porque nesse dia não ia ter mais
aula. Quando acabava o ensaio a gente voltava pro colégio, pegava as coisas e
ia embora. Mas o ensaio em si implicava às vezes sair marchando por aquelas
longas retas, sair do Alfredo Dantas, descer a Irineu Joffily, dar uma volta no
Açude Velho, subir pela Vila Nova da Rainha, pegar a Maciel Pinheiro, voltar ao
colégio. Mas havia o fascínio de ver a banda marcial de perto, observar como os
caras dos taróis controlavam o rufo, entender a função do bombão, do surdo; e
sair um pouco no sol, tirar as teias de aranha, de vez em quando trazer “os
povo” pras janelas, pálidos de espanto. Me lembro que havia um conundrum filosófico irrespondível: É
melhor ser rabeira do pelotão 1, ou testa do pelotão 2? O que hoje talvez se
dissesse: É melhor ser o lanterna da Série A ou o campeão da série B?”
2
Eu me lembro de
um Museu de Cera que ficou algumas semanas em exposição em Campina, em frente à
Praça da Bandeira (onde hoje tem o camelódromo). Havia estátuas de vultos
históricos, cientistas, personagens da literatura, da lenda. Havia Caryl
Chessman, o “bandido da luz vermelha”, na câmara de gás; era um fato ainda recente. Havia
Jack o Estripador, etc. Na porta de
entrada, um disco de propaganda, chamando os clientes para entrar, tocava em
loop um tango de Carlos Gardel, que diz “teu
riso é como a brisa...” Havia uma
outra seção, só para maiores de 18 anos, que exibia de maneira gráfica (modelos
de cera) uma infinidade de doenças venéreas, mostrando sua aparência exterior,
explicando o que era e acho que sugerindo remédios. Anos depois, um museu de
cera diferente, mais didático, menos carnaval-ambulante, ficou em exposição na
Faculdade de Administração, na Getúlio Vargas, logo acima da esquina do
Correio. Havia um pistoleiro de barba chamado Cruz Diablo, me pareceu um bom
nome de personagem.
3
Eu me lembro de que no bairro de José Pinheiro, o popular
“Zepa”, havia (será que ainda há?) um cinema pequeno, chamado Cine Art. Era um
desses cinemas-poeira de rua, e tinha na entrada uma placa: “Proibido Entrar
Descalço”. No auge do Cineclube de Campina Grande, surgiu uma idéia de promover
ali uma sessão de cinema de arte, como já havia no Capitólio e no Babilônia. O
idealismo de Luís Custódio, presidente do Cineclube, o levou a mil negociações
com a gerência do cinema, onde só passavam bangue-bangues e pornochanchadas.
Depois de marchas e contramarchas, o Cineclube promoveu ali a exibição do filme
O Picolino (“Top Hat”), um musical
com Fred Astaire, que nossa ingenuidade acreditou ser um título alegre,
descontraído, capaz de agradar a qualquer platéia. Não fui assistir a sessão, o
que hoje lamento, porque foi a única.
4
Eu me lembro do sebo de Câmara, um sebo que ficava na rua
Maciel Pinheiro, entre aquela galeriazinha onde funcionou a Varig e a descida
para o Beco dos Bêbos. Você subia dois ou três degraus da calçada e entrava
numa sala ampla, com livros ao longo das paredes, empilhados em balcões ou em
esteiras rente à parede. Câmara era um sujeito alto, meio calvo, tinha um gosto
muito bom para literatura e poesia. Foi lá que eu comprei meu primeiro livro de
Drummond, a Antologia Poética da
Sabiá. Foi lá que vi um livro maluco chamado Kaos e guardei na memória esse título. Anos depois reencontrei o título
citado no Pasquim, ligado ao nome do
músico de Maracatu Atômico e cineasta
de O Demiurgo, Jorge Mautner. Campina
Grande sempre foi mais uma cidade de livrarias do que de sebos. O atual Catalivros
de Ronaldo já é um dos sebos mais duradouros da história da cidade.
5
Eu me lembro de
um jogador amador de Campina, chamado Lambretinha, pela velocidade. Ele jogava
no Fracalanza, que era o time de funcionários de uma rede comercial, enxertado
com jogadores vindos de outros times. Lambretinha era pequenino, não lembro bem
da cara dele, mas me lembro de saltar de pé no meio das cadeiras cativas do
Presidente Vargas quando a defesa deles rebatia uma bola e alguém esticava o
passe longo esperado por todos. O estádio ficava de pé, e ele dava arrancadas
que revivi depois quando vi um gol de Jacozinho num jogo comemorativo no
Maracanã. O Fracalanza era verde e amarelo, acho, e jogava na preliminar.
(Naquele tempo antediluviano, jogo de futebol era um programa duplo: quem
chegasse mais cedo via um jogo de dois times amadores, geralmente; e depois o
programa principal da noite, o jogo do dono do estádio contra um visitante.)
Era o famoso esfria-sol.
6
Eu me lembro de Lampião, apelido de Judite, uma das meninas-da-noite
que batiam calçadas nas madrugadas de Campina, fazendo programas com qualquer
cara que parasse um carro e botasse elas para dentro. Lampião era a mais velha
e uma espécie de líder de um grupo que tinha Olindete, Menininha, Rute... As
mais novas tinham uns quinze anos, mas eram todas escoladas, vividas, calejadas
na conversa e no comportamento. Eu era da turma que fazia bacurau (conversas
aleatórias noite adentro) em frente ao antigo Museu de Arte, na esquina da
Maciel Pinheiro com a Floriano Peixoto. As meninas de vez em quando encostavam
e a gente ficava tirando onda, puxando conversa com elas. Lampião era corajosa
e agia como protetora das outras; me lembro de uma vez ela contando pra gente como
uns PMs estavam querendo pegar na marra uma das garotas. Ela disse: “Os caba
vieram tirando onda mas eu trevessei meu naife e falei: Quem vier eu furo!
Oxente, foram simbora.” Judite faleceu algumas semanas atrás, com mais de 70
anos. Vi sua foto nas redes sociais: negra, envelhecida e valente.
Um comentário:
Lembre e conte mais. Por favor.
Abraço.
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