Este filme póstumo de Orson Welles, lançado este ano depois de décadas de desencontros e atrasos, está em exibição no Netflix, e vem acompanhado por uma espécie de making of com o título Eles Vão Me Amar Depois de Morto, uma extensa reportagem com todos os envolvidos na realização do filme, anos atrás, e com sua finalização recente.
Ou seja, é um argumento tipo A Noite Americana (1973) de François Truffaut: vemos um filme, o
filme “de fora”, sobre uma equipe que está realizando um segundo filme, o filme
“de dentro”. Na história de Truffaut, ele próprio encarna o diretor deste
segundo filme, cujo título é Je Vous Présente
Pamela.
No caso de Welles, o filme-que-está-sendo-feito é um
daqueles filmes-cabeça europeus de raros diálogos e gente vagando sem rumo por
entre cenários inquietantes.
O filme “de fora” começa com o encerramento de mais um
dia de filmagem. Uma caravana de gente –
atores, técnicos, imprensa, figurantes, gente peruando a filmagem – parte
imediatamente para um rancho próximo, para uma festa boca-livre onde cenas já
editadas do filme-cabeça serão exibidas. A festa dura a noite inteira; o filme
termina ao amanhecer.
O diretor desse filme-cabeça, chamado igualmente The Other Side of the Wind, é Jake
Hannaford, interpretado por John Huston. É um personagem e tanto, e Huston é
bom ator, no sentido de que é um sujeito de inteligência rara, exuberante, viril,
desbocado, e parece entender bem o personagem, um gênio paparicado e impulsivo.
O filme “de dentro” mostra uma mulher bonita sendo
estalqueada por um rapaz bonito, sem que uma palavra seja trocada entre os
dois. A certa altura ocorre o que os resenhadores chamam “uma tórrida cena de
sexo” num carro em movimento, à noite, à chuva, em plena estrada. Depois os
dois vagueiam por entre cenários de estúdio abandonados, entregues à chuva e ao
vento.
O filme “de fora”, mostrando a festa, lembra muito
aquelas sequências de F For Fake
(“Verdades e Mentiras de Orson Welles”, 1978), com câmaras misturadas à multidão
e uma sucessão estonteante de pessoas desconhecidas gritando perguntas,
respostas, chamados, alusões, argumentos, que talvez a gente só entenda mesmo
quando vê o filme pela segunda vez.
Montagem picotada, imagem com qualidade variável, um
efeito de descontinuidade, de algaravia ininteligível, desorientação, o que
acaba nos levando para dentro da festa, que não é outra coisa senão isto.
Huston é o centro de tudo, e na última meia hora de filme está visivelmente
bêbado, ou interpretando bem o papel de bêbado.
Em torno da bebedeira e da projeção de parte do copião do
filme, rolam as rivalidades, discussões, traições e provocações que esperamos
encontrar num filme sobre Hollywood. Feito por alguém que teve de Hollywood as
experiências que couberam a Orson Welles.
Um papel importante é o do diretor Peter Bogdanovich (Na Mira da Morte, A Última Sessão de Cinema, Lua
de Papel, etc.), meio que reproduzindo junto a “Jake Hannaford” (Huston) o papel
que viveu fora dos filmes, junto ao próprio Orson Welles: entrevistador,
biógrafo, fã, especialista, etc.
(um ator, Welles, dirigindo dois diretores, Huston e Bogdanovich)
O núcleo do enredo deste filme tem aquele tema que eu
chamo, pegando carona no filme de Sidney Lumet, a Longa Jornada Noite Adentro.
Uma noite insone vivida por um grupo de pessoas em crise; uma narrativa
interminável que se encerra com o nascer do sol. Tipo A
Noite de Antonioni, o Quem Tem Medo
de Virginia Woolf de Edward Albee, a festa de A Regra do Jogo de Jean Renoir...
É a agitação às cegas de um certo pessoal do cinema, que
acorda cedo, trabalha duro, e de noite está com a cabeça tão acelerada que
força o corpo a não dormir, a poder de bebida, de drogas, de sexo, de brigas, de
gargalhadas, de agitação sem sentido, de qualquer coisa que pareça fazer o
tempo sumir no horizonte.
É a noite do iguana, a noite dos desesperados, a noite
dos mortos vivos, a noite do espantalho; é a Longa Jornada Noite Adentro.
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