terça-feira, 16 de agosto de 2016

4147) O apologista Giuseppe Baccaro (16.8.2016)



Perdemos na semana passada a pessoa única e inimitável de Giuseppe Baccaro, falecido aos 86 anos num hospital do Recife.

Para a imprensa em geral, nos obituários que li agora, ele era um artista, um marchand e colecionador de artes, italiano, radicado no Brasil desde os vinte e poucos anos, um sujeito ligado desde sempre ao mundo das artes plásticas. Passou uma longa temporada em São Paulo, e se fixou por volta de 1970 em Olinda, onde criou a Casa das Crianças de Olinda, uma entidade assistencial.

O outro lado de Baccaro é a sua ligação com o cordel, a cantoria de viola, a xilogravura, outras formas de poesia popular.

Foi por essa via que nos conhecemos, por volta de 1976, quando ele realizava (praticamente sozinho) um festival de violeiros em Olinda e eu trabalhava no Congresso Nacional de Violeiros, de Campina Grande. Ele nos visitou certa vez, para ver o Congresso, e começamos aí um diálogo que durou muito tempo.

Havia uma certa hierarquia na relação. Baccaro era 20 anos mais velho do que eu, que não passava de um estudante universitário, um diletante que sabia preparar bons motes. Ele tinha o poder econômico, mas, muito mais do que isso, tinha “a Força”. Aquela energia inexplicável e fascinante que leva certos indivíduos a realizarem coisas, compulsivamente, passando por cima de pau e pedra, dobrando os outros à sua vontade, visando um objetivo maior.

Incansável, mandão, impaciente, afável, risonho, onipresente, era aquele tipo de cara capaz de armar sozinho a lona de um circo.

O eterno sotaque italiano brotava com força a cada contratempo; “Ma no é possível!”. E arregaçava as mangas, pegava a gente pela orelha e levava pra consertar.

Nossa convivência se consolidou em 1979, quando ele me chamou para participar da Viagem dos Poetas ao Brasil, uma excursão de cantadores patrocinada pela Prefeitura de Olinda, na gestão de Germano Coelho.

Eu quase endoideço, porque Baccaro ficava me incumbindo de uma maratona de tarefas para as quais eu era totalmente despreparado. Se sou tímido e desorganizado hoje, imagina 40 anos atrás.

Durante menos de um mês, um ônibus cheio de repentistas realizou shows sucessivos em (nesta ordem) Recife, Maceió, Aracaju, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belém, São Luís, Teresina, Fortaleza, Natal, João Pessoa e Olinda.

Entre as duplas que fizeram a viagem, estavam Ivanildo Vila Nova e Geraldo Amâncio; Lourival Batista e Lourival Bandeira; Otacílio Batista e Oliveira de Panelas; Luís Campos e Luís Antonio; Zé Vicente e Manuel Estêvão; Pedro Bandeira e Daudeth Bandeira; e vários outros.

Eu fui junto, como uma espécie de assessor de imprensa, e levei comigo minha irmã Inês e minha esposa na época, Arly Arnaud, “Lili”. As duas frequentavam cantorias comigo há anos e eram amigas da maioria dos poetas. Ajudavam a vender os folhetos e xilogravuras, a apartar as brigas.

Baccaro mexia em tudo, se preocupava com tudo: a ordem das duplas que iam cantar, o som, a iluminação, o palco, os temas a serem sorteados. Era tempo da ditadura, governo Geisel, e ele insistia: “Vamo falar de política!  Vamo soltar o verbo!” Eu ponderava: “Baccaro, e se prenderem o grupo inteiro?”  E ele: “Ah! Melhor! O mundo todo fica sabendo dessa patifaria que tem aqui!”.

Não prenderam ninguém, embora tivéssemos aqui e ali uns arranca-rabos – quando cantamos nos degraus do Teatro Municipal de São Paulo, às quatro da tarde, parando o trânsito, a polícia veio cortar o nosso som.

Fizemos apresentações em palco ao ar livre para multidões gigantescas na Praça da Sé (SP), na Feira de São Cristóvão (Rio, numa manhã chuvosa de domingo), no Campo Grande (Salvador).

Quando chegamos em Brasília, Baccaro anunciou que no dia seguinte iríamos ser recebidos pelo Ministro da Educação, ao qual ele entregaria um manifesto pela poesia popular. Sempre interessado em qualquer chance para produzir frases bombásticas, perguntei se precisava de alguma coisa. “Só que no me atrapalhe,” disse Baccaro, e passou a noite batucando o manifesto numa máquina de escrever emprestada.

Alguns anos depois ele repetiu a Viagem, e desta vez não fui. Inês foi, e talvez seja a única pessoa da equipe a ter participado das duas.

Quando sentávamos para conversar, Baccaro sempre deixava clara sua impaciência com o descaso com que o Brasil tratava a poesia popular.

Eu tinha menos de 30 anos e ainda estava numa fase meio deslumbrada, só pensava em rimas, em motes, em inventar novos gêneros. Baccaro passava a mão pelo cabelo meio longo e deblaterava contra a estupidez das autoridades, a burrice dos intelectuais, a desinformação da imprensa, os preconceitos da classe média.

“São uns idiotas, uns imbeciles,” bradava ele. “Têm a poesia mais viva do mundo, os poetas mais geniais, e não dão valor.” Acho que herdei dele (espero ter herdado) esse inconformismo com a imbecilidade oficial brasileira. Principalmente os nordestinos, tão deslumbrados com o folclore do Sudeste.

Nas gráficas da Casa da Criança publiquei meu folheto Cantoria: Regras e Estilos, que distribuíamos de graça na “Viagem” de 1979, e em 1981 ele me deu de presente uma tiragem enorme de Cabeça Elétrica, Coração Acústico, com letras de minhas canções.

Era um convertido, um desses estrangeiros que renascem ao descobrir o Brasil. Como o francês Raymond Cantel, criador da maior biblioteca de cordel da Europa, que entrevistei no Hotel Tambaú e depois levei à “Estrella da Poesia”, a editora de Manuel Camilo dos Santos, de quem ele era o maior fã. Como Idelette Muzart, a francesa que uma magia de cordel transformou em paraibana por amor à poesia popular. Como o holandês Joseph M. Luyten, que editou na Hedra uma excelente coleção de antologias de cordel (eu organizei a de Raimundo Santa Helena). Como Claude Sicre, o rapper dos ”Fabulous Trobadors”, que ao ressuscitar na Provença o idioma occitano descobriu o coco-de-embolada do Nordeste. Como tantos outros que tiveram de vir de longe para nos mostrar a poesia que se produzia ao nosso redor.

Era artista plástico, marchand, colecionador, mecenas, empresário? Para mim era e será Baccaro, apologista da cantoria de viola.







2 comentários:

Clóvis Cavalcanti disse...

Conheci Baccaro também por esse seu trabalho com relação aos poetas populares do Nordeste -- artistas inconfundíveis. Fui apresentado a cantadores na casa dele. Assisti aos festivais realizados em Olinda. E fui convidado a fazer parte da segunda caravana dos cantadores pelo Brasil. Não dava para eu ir. Deveria ter ido. Em Olinda, num festival de cantadores, escutei "Nordeste Independente" pela primeira vez. Impressionou-me porque a platéia aplaudia a canção a cada verso, praticamente. Baccaro dizia que só o Nordeste, no mundo inteiro, tinham tantos poetas do povo. A Grécia vem em segundo lugar. Esse italiano era muito mais do que marchand, artista, cultor da arte. Uma vez, indo com ele a uma festa de carnaval do bloco Siri na Lata, em Olinda, fiquei impressionado como Baccaro sabia fazer bem o passo, no ritmo da pesada dos frevos de bloco.

JoonBarros disse...

Olá, Bráulio. Agora, visitando a tag cantoria de viola, reli esse texto. E me ocorreram algumas questões sobre o período que você descreve, onde vivíamos os anos de ditadura militar. Fiquei pensando sobre os motes e os versos sobre o país, sobre a política, a repressão. Louvamos tanto as letras de Chico, Milton e outros que faziam referência à ditadura, sua habilidade de "esconder" a crítica em suas letras. Mas fico imaginando o que pode ter surgido no improviso desses poetas geniais e inventivos. Existe algum registro dessas cantorias, ou alguém que tenha escrito sobre? Penso até mesmo no contexto do Congresso Nacional de Violeiros em Campina.