domingo, 12 de outubro de 2014

3629) O efeito folhetim (12.10.2014)




(Dica de leitura: Folhetim - Uma História, de Marlise Meyer, Companhia das Letras)


É terrível, mas precisa se dizer. Uma das coisas que nós, críticos, vivemos a criticar no folhetim em seu sentido mais amplo (incluindo romances europeus em fascículos no século 19, telenovelas de hoje, aventuras de FC seralizadas em revistas, etc.) é seu apelo à sorte e ao azar, ao acaso benigno, à coincidência salvadora, à chance-em-um-milhão que acaba dando certo, a frase que foi involuntariamente escutada por alguém e isso poupou uma vida, um encontro casual num hotel que evita ou provoca a queda de um governo, tudo que significa uma solução caída do céu para que a história vá em frente e ainda consiga fazer sentido.



O folhetim, sendo uma literatura escrita ao correr da pena (era a expressão da época), nem sempre podia voltar no capítulo 10 e eliminar uma cena entre dois personagens, cena cuja existência impede agora o autor de dar uma guinada na história.  Já num livro feito e refeito antes de ser impresso, basta cortar a cena e dar algumas falas àquela velhinha anônima que catava papel no parque, para preparar uma situação futura. 



No folhetim de Tolstoi, Balzac e Dickens, não.  O que era escrito era logo publicado, e ninguém podia voltar atrás para mexer. (Parece que autores mais exigentes preferiam escrever tudo e publicar aos poucos, seguindo o modelo das séries de TV atuais, que só vão ao ar depois de prontas.) Às vezes autores mais despachados, como Ponson du Terrail, se faziam de doidos e recontavam os fatos do passado como lhes convinha, não como já tinham sido contados antes.   (A publicação em livro, após encerrado o folhetim, permitia geralmente remendar esses trechos.)



O hóspede do albergue levanta-se de madrugada para fechar uma janela ruidosa e percebe a tempo os rufiões que rumam para o seu quarto a fim de matá-lo.  Tudo parece ocorrer por uma coreografia precisa do destino, em que basta perder um trem para, ao embarcar no próximo, envolver-se num turbilhão de aventuras ou de horrores.  Na vida real, certas coisas teriam que acontecer inúmeras vezes até que se produzisse a fagulha dramática, a confluência dinâmica dos destinos.  No folhetim, é sempre da primeira vez.  O Deus dos folhetins não gosta de perder tempo.


A coincidência e a conveniência dramatúrgica trabalham (do ponto de vista prático) para poupar tempo ao autor, ou para fazê-lo cortar um nó górdio, ou para manter seu interesse quando está sem saco de escrever. Isso dá a essa narrativa um traçado fluido e aerodinâmico que não teria na vida real, onde os acontecimentos estariam sujeitos a trambolhões, solavancos, descontinuidades e imprecisões, o pedágio que temos de pagar à realidade.