quinta-feira, 5 de junho de 2014

3516) Lovecraft e a vanguarda (4.6.2014)



(ilustracao de Abigail Larson)

H. P. Lovecraft, mestre das histórias de horror, foi um sujeito de perfil conservador até quase a caricatura. Ele dizia que era um homem do século 18 perdido no século 20.  Suas opiniões literárias, contudo, são em geral bastante ajuizadas.  Numa carta de 2 de outubro de 1928 para sua amiga Zealia Brown-Reeed Bishop, ele comenta a moda do fluxo de consciência (“stream of consciousness”) que vinha tomando conta da literatura.

HPL reconhece o fato, uma relativa novidade na época, de que “nossas mentes estão cheias, o tempo todo, de milhares de linhas de imagens e de idéias irrelevantes e dissociadas; e nossos atos na verdade são determinados pela soma total desses farrapos heterogêneos e inconscientes, mais do que por uma única linha de idéias conectadas que nós, publicamente, reconhecemos em virtude de sua posição no nível superior da consciência.” Ele louva a maneira como a literatura tenta reproduzir no texto esse entrechoque de elementos quase aleatórios, e vê James Joyce (na prosa) e T. S. Eliot (na poesia) como os principais expoentes dessa tendência. (Mais adiante, ele a define melhor ao enumerar os nomes de E. E. Cummings, Hart Crane, Aldous Huxley, Wyndham Lewis, Dorothy Richardson, os Sitwells, D. H. Lawrence, Virginia Woolf, Gertrude Stein, Kenneth Burke, Ezra Pound e Marcel Proust).

HPL levanta a questão: uma tal escrita pertence ao domínio da arte literária ou do mero registro psicológico de impressões? Ele dá generosamente o benefício da dúvida aos escritores, dizendo: “Os métodos extremos destes autores transcendem, sem dúvida, os limites da verdadeira arte, embora eu acredite que eles estão destinados a produzir uma poderosa influência sobre a arte propriamente dita. A arte literária, creio, deve continuar aderindo à prática de registrar fatos exteriores [à consciência], em ordem consecutiva; mas de agora em diante deve perceber as motivações complexas e irracionais desses acontecimentos, e deve se abster de atribuir-lhes causas simples, óbvias e artificialmente racionalizadas.”

Com uma razoável abertura, HPL diz que a decisão sobre o quanto de material inconsciente deve afetar a criação da obra “deve ser decidida independentemente em cada caso particular pelo julgamento do próprio autor, e pelo seu senso estético”. Lovecraft, o escritor, me parece pesado demais, preso demais ao próprio estilo; mas é bom ver que como leitor ele era capaz de avaliar com simpatia, num momento de transição (o ano é 1928) uma mudança gigantesca por que estava passando a literatura. E sua crítica às histórias com “causas simples, óbvias e artificialmente racionalizadas” me parece atualíssima.


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