sexta-feira, 14 de agosto de 2009

1199) Gangsterismo, comércio e política (16.1.2007)




Alguém já disse que a guerra é a continuação da política por outros meios. Esta frase dá a entender que a política é o estado normal das relações humanas, e a guerra uma aberração.

Historicamente, contudo, é o contrário. O homem primitivo guerreava primeiro, negociava depois. A política veio ajudar a sobrevivência da espécie, evitando que as tribos se exterminassem mutuamente. A guerra é o estado "normal", "natural", instintivo do ser humano. É a compulsão de quando ver uma coisa de valor agarrá-la e sair correndo, a compulsão de quebrar a cabeça de quem discorda de nós, a compulsão de violentar, de pegar na marra, de apoderar-se do que interessa e exterminar os recalcitrantes.

A guerra é simplesmente isso -- de forma organizada e científica; mas a política é a civilização. Por mais que a classe política esteja em baixa cotação no Ocidente, nunca ela foi tão necessária. Quando a política se revela incompetente a guerra retorna, como um monstro de filme B.

O gangsterismo é uma forma intermitente de guerra, é o capitalismo reduzido a sua expressão mais rude. É o comércio abrindo mão da política e recorrendo à guerra: coagindo os fregueses, fuzilando os concorrentes, roubando a mercadoria alheia.

Não existe uma diferença essencial entre os traficantes dos morros cariocas, os chefões da Máfia americana, e muitos vultos históricos ilustres que em séculos passados promoveram a ferro e fogo a expansão comercial da Europa pelo resto do mundo.

O seriado da TV-Globo Cidade dos Homens, com os atores garotos "Laranjinha" e "Acerola", mostrou certa vez uma cena magistral em que um dos garotos, tendo que explicar as Guerras Napoleônicas na escola, interpretou-as pelo linguajar do morro: "Aí -- o cara tinha uma boca-de-fumo irada, mas o cara da boca vizinha quis invadir a boca dele, aí ele juntou os caras, invadiu lá, barbarizou, tomou a boca do outro..."

A política (em sua área legislativa e judiciária) é a arte de estabelecer controles recíprocos entre a sociedade e o Estado, para que nenhum dos dois tome as rédeas nos dentes e desembeste. Quando a sociedade perde o controle do Estado, ele vira ditadura armada, rodeada por uma burocracia deficitária e obesa. Quando o Estado perde o controle da sociedade, o gangsterismo campeia, porque as oportunidades de lucro rápido e ilimitado são muitas.

Entre 1964 e 1984, o Estado fez o que quis no Brasil. Daí em diante, por um compreensível movimento pendular, o liberalismo tomou conta. Ora, o gangsterismo não é mais do que o liberalismo com super-poderes. É quando o "laissez faire" se transforma em "liberou geral", que rapidamente degenera em "cada um por si", o qual logo desemboca no "salve-se quem puder".

Estamos agora no penúltimo destes estágios, em que o Estado, apodrecido por dentro e enfraquecido por fora, não governa mais nem a si mesmo, e todo mundo se acha no direito de invadir a boca-de-fumo do vizinho.

Quando o comunismo acabou na URSS, ela foi invadida pelo capitalismo em sua versão mais predatória: o gangsterismo. O Estado soviético perdeu o esqueleto militar e ideológico que o sustentava, e desmoronou. As máfias e quadrilhas campeiam. A Rússia de hoje é um trailer do que serão os países aqui do Ocidente quando o sistema capitalista internacional quebrar de vez daqui a algumas décadas. Acho que não estarei mais por aqui, embora isto não me sirva de consolo.






Um comentário:

Kléber Santos disse...

Treze anos depois da publicação deste texto, o gangsterismo miliciano está no executivo, os protofascistas fazem carreata e bloqueiam entradas de hospitais e a Política derrapa no fundo do poço. A realidade virou uma distopia.