domingo, 9 de março de 2008

0126) O rap e o repente (16.8.2003)

Dias atrás fui ver um show de de Berna Ceppas, um cara que faz música computadorizada. “Música eletrônica” é música dançante que toca em boate. Música computadorizada é música para nerds como eu ficarem sentados, vendo num telão uma montanha-russa de imagens picotadas e aleatórias, ao som de loops & samples, enquanto no palco alguns sujeitos pilotam computadores, mesas de som e outras engenhocas, criando um sincronismo entre improviso visual e improviso sonoro.

O show tinha a participação especial de Negone, um “rapper” carioca. E de um instante para o outro o show de transformava. Depois de 50 minutos de som na caixa e imagem no telão, sem que nenhum dos artistas no palco desse outro sinal de vida a não ser mexer em controles, sobe no palco um cara com um microfone que vai até a platéia e pede que lhe emprestem documentos. Ele pega carteiras de identidade e de motorista, começa a ler os dados e a improvisar em cima: “Essa aqui é Luciana, nasceu em 74, veio hoje no teatro, pra me ver improvisar... É aqui que eu vou dizer, é aqui que eu vou falar... Ela nasceu no Rio, é garota carioca, gosta de comer pipoca, quando toma guaraná...”

A platéia vem abaixo. O show, que era musicalmente ótimo, ganha uma dimensão humana que não tinha antes. O espectador sente-se parte do show, vê seu nome e seus dados sendo usados como pretexto-de-rima pelo poeta. Todos riem, todos gostam, e vinte minutos depois, quando o poeta devolve os documentos e encerra sua canja, os aplausos são entusiasmados.

Eu passei minha adolescência vendo Dedé da Mulatinha e Colombita cantarem pelas ruas de Campina; vi duplas como Cachimbinho e Geraldo Mouzinho, Caju e Castanha, fazerem esse toma-lá-dá-cá com a platéia. O Nordeste é mesmo privilegiado. Uma coisa que os negros norte-americanos transformaram em moda nos anos 1980 já era praticado nos sertões da Paraíba em 1880. Não vou entrar aqui na lenga-lenga de que basta ser americano para fazer sucesso. Isso é coisa já sabida.

O rap e o repente não são concorrentes: são irmãos, filhos do Capitalismo Europeu com mães diferentes. Podem até torcer o nariz um para o outro, no reencontro, mas ambos sabem quem são, e se tiverem a chance de conviver, acabarão se aproximando e se entendendo. O gesto do improviso criativo pode tirar a secura e a frieza da música tecnológica, criada a partir de bases e de colagens sonoras improvisadas. Um ótimo exemplo é o show do DJ Dolores, onde a música computadorizada prepara o terreno para Maciel Salu improvisar décimas, aboios ou solos de rabeca. Música high-tech e música folk podem se enriquecer mutuamente. Qualquer platéia admira um improviso feito sobre um assunto que ela entenda. Cachimbinho & Cia. não precisam abandonar o pandeiro e aderir à eletrônica. O formato antigo continua. Mas pode surgir um formato novo, desde que surja para valorizar o improviso, o repente, o verso feito na hora, que é o grande diferencial desta Arte Maior.

Nenhum comentário: