domingo, 9 de março de 2008

0144) “Limbo”: a guerra ao corpo (6.9.2003)




Um artigo na revista eletrônica Slate analisa o documentário de Melody Gilbert Whole, exibido recentemente no Los Angeles Film Festival. Tema: pessoas saudáveis que amputam seus próprios membros. Parece maluquice? Tudo parece maluquice, antes da gente se acostumar. Um indivíduo diz que viu pela primeira vez uma pessoa com a perna amputada quando tinha 4 anos. Aos 7, pensou: “Eu queria ser assim também”. Aos 50, colocou a perna numa bacia com gelo seco até danificá-la de forma irreversível, e convenceu um cirurgião a amputá-la. Ao ver o resultado, disse: “Todos os meus tormentos acabam de desaparecer.”

Não dê de ombros, caro leitor, dizendo que o cara é doido. Se ele é doido, mande ampliar o Hospício. O filme mostra outro que disparou um tiro de carabina 12 na perna, para obrigar os médicos a cortá-la. Outros resolveram tudo com guilhotinas artesanais ou serras elétricas. Ninguém contou conversa. Houve até casos de matrimônios desfeitos: o sujeito achou melhor perder a esposa do que ficar com a perna. Alguns médicos consideram a apotemnofilia (é o nome científico) um distúrbio de fundo sexual, uma crise de identidade. Há pessoas que se excitam sexualmente com a visão de corpos mutilados, como podemos ver no filme Crash de David Cronemberg (que outro cineasta iria se interessar por isto, além dele e de Buñuel?), baseado no romance de J. G. Ballard, um dos melhores escritores de ficção científica britânicos.

Outro autor de FC, Bernard Wolfe, publicou em 1952 o romance Limbo, onde ele prefigura um mundo pós-III Guerra Mundial onde a melhor maneira encontrada para reprimir a agressividade humana é através da amputação dos braços e das pernas, e sua substituição por membros artificiais. O Pacifismo é associado à passividade. No ato sexual, os homens “desaparafusam” os braços e as pernas e deitam-se de costas, deixando o papel ativo para as mulheres. “Imobilização” é um dos conceitos básicos dessa sociedade. Existe algo de doente nela? Daqui da nossa, não há como saber.

“O Homem tem descoberto maneiras engenhosas de se desfigurar e se ferir. Amarrando os pés, esticando os beiços com batoques, perfurando narinas e bochechas e orelhas, lixando os dentes, amarrando o crânio até deixá-lo em forma de pirâmide, circuncidando-se, castrando-se para virar menino-de-coro ou eunuco-de-harém, cortando dedos e artelhos e cabelos em rituais de dor, ferrando em brasa e tatuando a própria pele, apertando o abdômen com espartilhos, empanturrando-se até a senilidade, envenenando-se com nicotina e álcool e outras drogas; e as Amazonas, decididas a aderir à auto-flagelação (igualdade de direitos, sempre!) cortam o seio para poder manejar o arco. Um frenesi incessante de decepação do próprio corpo. O ser humano, independente de outras coisas que possa ser, é com certeza um animal que se auto-mutila. Num certo sentido, um amputado voluntário.” Dizia Bernard Wolfe, em 1952.

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