sexta-feira, 15 de agosto de 2008

0516) O ensaio incompreensível (13.11.2004)





Falei há alguns dias sobre o poema incompreensível, mas por uma questão de eqüidade devo falar também da crítica incompreensível. O estudo acadêmico da literatura tem ficado, a cada década que passa, mais invadido por uma mentalidade que pretende analisar textos literários com instrumentos teóricos abstrusos, manipulados através de um jargão dos mais obscuros.

A impressão que tenho (e não só eu) é que as faculdades, depois que foram tomadas pelo vírus pernicioso da Lingüística e do Estruturalismo, só sabem ensinar uma meia-dúzia de recursos de análise lingüística, e mais nada. Os alunos passam quatro anos queimando as pestanas para aprender a usar esses recursos, e quando se formam saem a aplicá-los às cegas em qualquer texto que lhes apareça pela frente. É como um estudante de Medicina que aprendesse a usar o bisturi, o escalpelo, o fórceps, etc., e ao se deparar com um doente se sentisse na obrigação de usar nele todos esses instrumentos, por ter sido a única coisa que lhe ensinaram na faculdade.

Hoje, abri ao acaso um livro de análise sobre um romance brasileiro, e o crítico iniciava um parágrafo da seguinte forma:

“Observamos no início desta análise a fusão actancial resultante da irrupção do actante da enunciação na narração, que se confunde desta maneira com o actante do enunciado, indicando ser esta fusão inevitável, dado o projeto do actante da enunciação de discursivizar, reproduzindo-a, a travessia vivida. Como dar a esta, que se constitui numa desintegração da identidade subjetiva, uma forma, se reproduzi-la implica não só um retorno ao que aconteceu, mas um retorno ao que instaura uma identidade, ao que a gera e garante enquanto tal, isto é, um retorno à linguagem, necessariamente afetada em seu ser nesta experiência?”

Entendeu, caro leitor? Pois vá a janela e solte um foguetão. Você merece. Não estou dizendo que o texto não faz sentido, porque provavelmente faz. É a linguagem que me incomoda. Parece aquelas brincadeiras em que a gente pega frases como “Pode tirar o cavalinho da chuva” e a transforma em “Digne-se trasladar seu eqüino de pequeno porte da intempérie”. Fujam todos. Corram, pelo amor de Deus. São monstros terríveis que estão vindo por aí. É o Ranço do Beletrismo! O Fetichismo das Prosopopéias! A Reiterância dos Proparoxítonos! A Recidiva Polissilábica! A Tecnologização da Discursividade Conceitual mascarando o Não-Ser da Coisa-Em-Si!

Esse pedantismo patético que acomete uma parte (felizmente só uma parte) da crítica literária pode ser combatido com doses generosas de textos inteligentes analisando textos inteligentes. Toda vez que se deparar com uma monstruosidade como aquele parágrafo acima, leitor, basta ler sem perda de tempo algumas páginas de O Castelo de Axel de Edmund Wilson, ou de Gregos e Baianos de José Paulo Paes, ou de Por que ler os clássicos de Ítalo Calvino, ou de No Bosque do Espelho de Alberto Manguel. Nem tudo está perdido.

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