domingo, 9 de março de 2008
0134) O mnemonista (26.8.2003)
Em 1944, Jorge Luís Borges publicou o conto “Funes, o memorioso”, que ele próprio descreve como “uma vasta metáfora da insônia”. Funes é um rapaz que tem memória total, tem acesso irrestrito a todas as coisas que viu, sentiu, viveu, pensou. Se sugeríssemos a Funes uma palavra, digamos “folha”, ele seria capaz de recordar os milhões de vezes em que a ouvi, leu ou pronunciou, lembrando a data, o lugar e as circunstâncias de cada uma dessas vezes.
Muita gente não percebe a base científica em que se apóia o “realismo mágico” de Borges. Pessoas de memória excepcional como a de Funes são tão reais quanto pessoas de memória bruxuleante como a minha.
O psicólogo russo A. R. Luria é autor de um livro clássico sobre o tema, The Mind of a Mnemonist, onde ele descreve o funcionamento da mente do paciente que ele chama de “S.”.
Aos 30 anos de idade, S. trabalhava num jornal, e chamou a atenção do seu editor pelo fato de nunca tomar notas das matérias que fazia. Alguns interrogatórios e testes de memorização deixaram o editor tão perplexo que ele acabou mandando o repórter ao consultório de Luria, onde seu espantoso talento foi descoberto.
S. era capaz de decorar com exatidão qualquer texto, qualquer lista de palavras ou de números que lhe fosse apresentada. Uma lista de 70 palavras era memorizada visualmente, como se estivessem escritas diante de seus olhos, de modo que ele não apenas podia repetir a lista inteira, como também dizê-la de trás para a frente, ou responder imediatamente quais as palavras que ficavam antes e depois de outra palavra específica.
Lembrar, para ele, era como ler algo escrito à sua frente. Luria observou também que tal impressão era indelével. Oito anos após um teste em que decorou uma série de sílabas desconexas, S. foi capaz de reproduzir sem problemas a mesma série.
A memória de S era sinestésica, ou seja, era uma rede de associações entre palavras, imagens, sons, cheiros, sensações táteis. Um dia, ao voltarem de um laboratório, Luria perguntou distraidamente a S. se ele seria capaz de lembrar o caminho de volta. “Claro,” disse ele, “como poderia esquecer? Por exemplo, aqui tem esta cerca... ela tem um gosto bem salgado, uma textura áspera, e o som dela é tão agudo que dói no ouvido.”
S. decorava poemas em línguas estrangeiras usando o expediente de associar cada sílaba a uma imagem e distribuir essas imagens num percurso fictício ao longo de uma rua. Depois, era só refazer o percurso, ver as imagens, e reconstituir as sílabas. Nada mais fácil.
Não é de admirar que para ele fosse muito difícil manter uma conversa sobre qualquer assunto. Tudo o distraía, tudo arrastava sua mente em outra direção. Tinha dificuldade em permanecer nos empregos, em manter amizades duradouras. Sua mente era um calidoscópio, um turbilhão, um dilúvio de lembranças que aumentava sem parar, porque nada era esquecido. Como nas lendas antigas, sua bênção era também sua maldição.
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Um comentário:
Excelente resumo. Há anos que leio e ouço sobre este paciente S. Vou tentar encontrar o livro. Uma curiosidade inicial: era mesmo uma cerca que ele memorizou - gosto, textura etc. Obrigado.
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