domingo, 21 de fevereiro de 2016

4056) O Tribunal do Facebook (21.2.2016)



Há uma frase clássica, que não sei se é ainda em latim ou já em italiano, que diz: “Cui bono?”. Significa: “Beneficia a quem? A quem favorece? A quem interessa?” Tudo no mundo, no meio das relações sociais, traz vantagens para Fulano ou para Sicrano. Na literatura policial surge de vez em quando essa perguntinha básica. O sr. Fulano dos Anzóis foi morto por pessoa ou pessoas desconhecidas. A quem beneficiou essa morte?

Sempre que uma coisa começa a acontecer repetidamente, com força, com insistência, eu me pergunto: “Cui bono?” Vejam, p. ex., o Tribunal do Facebook. É impressionante como as redes sociais, a de Zuckerberg principalmente, instilam nas pessoas esse espírito tribunalício. Cada um se senta em sua cadeira de mogno, de espaldar alto, vestido de preto, tendo na cabeça aquela ridículas perucas século 17 dos juízes ingleses, com um martelo na mão e uma tropa de guardas de prontidão. Abre o feice e começa a esquadrinhar as postagens, em busca de alguém a quem condenar.

Se você se indigna contra alguma coisa (gays espancados, mulheres assediadas, índios perseguidos, professores demitidos, empregadas exploradas), de nada adianta: o Juiz vai acusá-lo de indignação seletiva, porque denunciar um mal é sempre calar sobre todos os outros. (Toda indignação é seletiva. Não se pode ter conhecimento de todas as injustiças do mundo, nem indignar-se na mesma medida com uma dúzia delas, se forem tudo de que temos conhecimento.)

O tribunal do Facebook está desenvolvendo com uma rapidez impressionante, neste país (em outros também, provavelmente) a nossa capacidade de apontar o dedo, de julgar, de condenar, de castigar. Estamos ficando como aqueles puritanos da Nova Inglaterra que queimavam bruxas. Estamos nos transformando naquelas pessoas que investigam malfeitos e castigam malfeitores, não porque tenham amor e dedicação a algum Bem superior, mas porque amam o castigo em si, amam castigar, amam vigiar e punir. Cui bono? A quem beneficia esse estado de coisas? 

A grande tática dos regimes totalitários em sua fase de ascensão – que é o que parece estar acontecendo aqui – é a de desunir a população, jogar grupo contra grupo, vizinho contra vizinho, cidade contra cidade, região contra região, profissão contra profissão, raça contra raça, fé contra fé. Enquanto nós, os massacrados pela lavagem cerebral, estamos cuspindo baba venenosa uns contra os outros, eles vão construindo seu muro, um tijolinho jurídico por dia, uma parede legislativa por semana. O tribunal do Facebook julga, achincalha, ridiculariza, fofoca, produz mentiras e calúnias compartilhadas aos milhões, entra dia, sai dia. Cui bono?





4055) Queremos a censura (20.2.2016)




(ilustração: Rubem Grilo)


Estão se multiplicando, principalmente nos EUA, os pedidos para que o Estado ou as autoridades locais exerçam algum tipo de censura sobre livros e textos em geral, para proteger a estabilidade emocional nos leitores. Um artigo de Isabel Lucas (aqui: http://tinyurl.com/zuth66b) cita vários exemplos. Obras clássicas como as “Metamorfoses” de Ovídio, a peça “Lisístrata” de Aristófanes e outras são tidas como ofensivas por estudantes conservadores. Eles pedem que os livros sejam eliminados das bibliotecas ou que pelo menos “surjam com uma advertência na capa, chamando a atenção para o ‘perigo’ para o ‘bem-estar mental’ que representam os seus conteúdos, potencialmente causadores de sofrimento, trauma ou angústia’”. Segundo o artigo, humoristas como Jerry Seinfeld estão se recusando a dar espetáculos nas universidades, alegando que os estudantes “não são capazes de suportar uma piada”.

A mania chega a extremos surrealistas. Estudantes de Direito de Harvard pediram que não fosse ensinada a lei sobre estupro, alegando que a visão desta palavra poderia reacender o trauma em estudantes que pudessem ter sido vítimas desse tipo de abuso. (Essa paranoia de negação traz à mente imagens como o avestruz que enterra a cabeça na areia diante do perigo ou o marido traído que manda tirar da sala o sofá onde a traição foi flagrada.) Para a psiquiatra Manuela Correia, “estamos diante de uma excessiva psiquiatrização da sociedade”. Os ditames protetores da psiquiatria tomam o lugar da religião, a quem cabia, até certa época, esse tipo de controle. Isso seria indício de uma infantilização da sociedade, diz ela: uma “sociedade que não consegue lidar com o medo ou a pluralidade da linguagem”.

Se a pessoa é incapaz de suportar a mera visão da palavra “estupro” (tendo sido ou não estuprada), tem todo o direito de evitá-la, é claro. Todo mundo tem fobias ou angústias. Mas nesse caso, por que diabo vai estudar Direito? Não seria melhor estudar algo mais distanciado da realidade social, algo que não a obrigasse a refletir sobre o mundo, a convivência, o atrito ideológico do dia-a-dia? Outro detalhe que inquieta é que para muitos desses espíritos defensivos não basta evitarem os temas, querem que os temas sejam proibidos inclusive para os que não têm trauma nenhum e querem se informar sobre os tais assuntos. É uma regressão emocional perigosa. São pessoas a quem o mundo de hoje assusta (e acreditem, amigos, assusta a todos nós) e preferem fazer de conta que o mundo não existe, preferem refugiar-se numa bolha de segurança fictícia que nem uma ditadura militar seria capaz de manter intacta por muito tempo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

4054) Gosto e qualidade (19.2.2016)



Uma vez, no Cineclube de Campina Grande, preparamos uma lista dos melhores filmes do primeiro semestre. Todos líamos a crítica cinematográfica dos jornais da Paraíba, de Pernambuco, Rio e São Paulo. Sabíamos quem eram os diretores endeusados e quem eram os execrados, quem eram os gênios imprevisíveis e quem eram os “artesãos competentes” (termo levemente depreciativo).

Um filme que me causou uma impressão muito forte na época foi O Diário de Anne Frank de George Stevens, com Millie Perkins no papel da garota judia cuja família se esconde num sótão de Amsterdam durante mais de um ano mas acaba sendo descoberta pelos nazistas. Ao mesmo tempo, fiquei fascinado por Jules et Jim de Truffaut, que ente outros méritos enriqueceu meu conceito de beleza feminina ao me deparar com a anti-hollywoodiana Jeanne Moreau. Não hesitei, e na minha lista cravei palpite duplo. Indiquei o filme de Stevens como “Melhor Filme do Semestre Pelo Meu Gosto” e o de Truffaut como “Melhor Filme do Semestre, Cinematograficamente”. Achei que as duas obras não estavam “disputando a mesma Liga”, como dizem os norte-americanos.

Li há pouco um artigo de Jerry Fodor sobre ópera, onde ele diz: “Se você é apreciador de ópera, é bem possível que seja um admirador de Puccini. Mas provavelmente você acha que não deveria sê-lo. O gosto por Puccini é algo que é desaprovado inclusive pelos que o compartilham. Como se supõe que preferência pessoal e avaliação crítica devem coincidir, numa sensibilidade artística bem fundamentada, as óperas de Puccini colocam um pequeno mais genuíno paradoxo crítico.”

Nosso gosto pessoal e a opinião dos críticos coincidem apenas de vez em quando. A expressão “gosto não se discute”, para mim, revela um desejo de não querer conhecer a opinião dos críticos, de não querer discutir e aprimorar conceitos. Não se trata, na verdade, de gostar, e sim de perceber. Eu leio os críticos para tentar enxergar o que eles enxergam nos filmes, e decidir se aquilo me serve ou não. Leio para ser capaz de perceber melhor; para não ficar trancafiado no meu modo de ver de hoje.

Se eu gosto da ópera de Puccini é problema só meu, mas se a crítica oficial não gosta, é problema de todos. Em qualquer cultura há um saber oficial que, certo ou errado, é levado em conta na convivência social. Confrontar nossos gostos e porquês com os da crítica oficial não é obrigação de ninguém, mas é necessário para quem quer aprender a perceber melhor. Não basta, neste caso, dizer que A é bom ou B é ruim. É preciso começar a discutir a sério o que é arte, o que é música, o que é ópera, etc. Ninguém é obrigado a fazer isso, mas só evolui quem faz.




4053) Dicionário Aldebarã XII (18.2.2016)


(ilustração: Charles Demuth)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Karyang”: reunião de amigos para relembrar fatos ocorridos muito tempo atrás. “Vuvitos”: xícaras para café ou chá, cujo fundo se eleva à medida que há menos líquido nela. “Arnantrim”: a disposição peculiar dos vasos de plantas numa casa, nas áreas que em alguma hora do dia ou época do ano estarão sendo banhadas pelo sol. “Dalhassa”: escudo quadrado de combate, imantado, capaz de capturar armas inimigas.

“Satonima”: pequena sanfona com poucas teclas, que só consegue tocar meia dúzia de músicas, conhecidas por todos. “Balâmias”: cantigas saudosas onde cada improvisador principia dizendo o nome de sua terra natal e depois tentando encaixar versos com o maior número possível de rimas para ele. “Triamondes”: uma complexa hierarquia de favores mutuamente devidos, que em algumas aldeias chega a ter mais importância do que os laços de parentesco.

“Luhrvins”: sucos de frutas, de cores e densidades diferentes, que são misturados nas jarras e nos copos, visando efeitos cromáticos. “Andigoom”: o uso de bandeiras com símbolos coloridos, hasteadas junto à porteira de entradas das fazendas, para passar recados aos vizinhos. “Gundrillans”: espécie de besouros de carapaça colorida que se movem muito lentamente e são colocados nas paredes para formar desenhos ornamentais que se modificam aos poucos.

“Gampras”: movimentos de dança tradicionais, complexos, que em festas familiares cada dançarino tem que executar no centro de uma roda, acompanhando qualquer música tocada. “Klidudu”: estilo de decoração caseira envolvendo objetos aleatórios arrumados em volta de uma lâmpada que, quando acesa, projeta na parede formas ou palavras feitas das sombras. “Viniloy”: servidores públicos presentes em cada bairro para dirimir questões legais entre as pessoas, através de hipnose coletiva.

“Renevins”: pequenas serpentes domésticas, inofensivas, inteligentes, que ajudam na limpeza de lugares estreitos e de difícil acesso. “Lumlums”: hélices colocadas em pontos estratégicos da casa (janela, portas, clarabóias) para captar as correntes de ar e redistribuí-las, melhorando a ventilação interna. “Abôndis”: testes escolares onde, na hora que toca o recreio, cada aluno só tem direito de sair e brincar se der a resposta certa a uma pergunta feita de improviso pelo professor.




terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

4052) O romance policial francês (17.2.2016)





Meu conhecimento de romances policiais “noir” escritos em francês é tão escasso que posso até completar a caixa com Albert Camus e Boris Vian para dar sustança. Mas existe um espírito, sim. Existe um feixe de rimas, bem visível, entre um certo tipo de romance policial popular norte-americano e um certo tipo de cinema/literatura jovem, urbana, anticonvencional e meio fatalista francesa. 

Não foi apenas Baudelaire que salvou Edgar Allan Poe, os cineastas da nouvelle-vague valorizaram as ações de Cornell Woolrich (La Mariée était en noir, La Syrène du Misssissipi) e de outros romancistas pulp.

Truffaut filmou também David Goodis (Tirez sur le pianiste) e o filmou a sério, muito mais envolvido do que por exemplo Godard, que em Bande à part até descreve crimes e mortes violentas, mas muito mais distanciadamente. 

Truffaut tem um talento saudável para o melodrama, enquanto o cinema de Godard sempre foi uma junção do stand-up com o PowerPoint. (Isto é um elogio.) 

Truffaut é da escola emocionalista do seu mestre Hitchcock, notório manipulador de platéias. Talvez mais ingênuo, ele, e Hitchcock meio cínico. Aliás, Hitchcock já tinha adaptado a Janela indiscreta de Woolrich, inclusive melhorando em muito o conto original. 

Cinema (francês) urbano, de vanguarda, e os heróis são todos bandidos, desde um cara à margem da lei por negligência existencial, como o Belmondo de Acossado, até os pequenos delinquentes de Os incompreendidos

O jeito bandidão dos norte-americanos se misturou aos genes de Rocambole, espalhados pelas demolições de Paris. Paris é a cidade que já esteve nas mãos de maior número de foras-da-lei incapturáveis, desde Fantômas, o arqui-criminoso, até o rei dos ladrões de casaca, Arsène Lupin.

Lupin, o herói de Maurice Leblanc, segue ao longo de mais de vinte livros uma trajetória que o leva de assaltante a detetive, de terror dos banqueiros e dos colecionadores de arte a colaborador da polícia na caça a um mal maior. 

Lupin não apenas se disfarça de vez em quando de policial, ele torna-se policial de fato. Seus golpes nunca são sangrentos (Lupin desmascara, expõe, ri, galhofa, moteja – mas não mata). 

Rocambole, o herói folhetinesco de Ponson du Terrail, é bandido nos primeiros quatro livros e policial nos outros quatro. Mas trata-se menos de um livro de gênero do que um livro de época. 

Os folhetins de Balzac iam para o lado social, os de Verne para o lado aventureiro-científico, os de Ponson para o melodrama policial, com sociedades secretas como “O Clube dos Valetes de Copas” e lutas contra thugs indianos estrangulando bandidos em Paris. Uma história policial francesa pode ser reconhecida mesmo sem assinatura.







segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

4051) Expressões paraibanas (16.2.2016)




São expressões tipicamente paraibanas, ou de Campina Grande. Não sei até onde se estendem pelo resto do Nordeste. Mostram o grau de inventividade da nossa linguagem diária, uma linguagem de imagens fortes, sem preocupação de verossimilhança mas com impacto imediato.
 
“Se fosse uma cobra, tinha me mordido!”. Usa-se quando se está procurando algum objeto e então se percebe que ele estava bem próximo, ao alcance da mão.

“Isto aqui tem dois “v”: vai e volta”. Advertência muito comum ao se emprestar um objeto qualquer, deixando claro que é para ser devolvido.

“Rouba até pano de pereba”. Diz-se do ladrão compulsivo, ou completamente sem escrúpulos.  “Olha, você tenha cuidado quando andar aqui na vizinhança, porque esse pessoal daqui rouba até pano de pereba.”  “Pano de pereba” é aquele pano com que os mendigos envolvem e protegem as feridas que têm no corpo: ou seja, a última coisa que a alguém ocorreria roubar.

“Felicidade que...” Equivale, precisamente, a: “Ainda bem que...”, “felizmente que...”, e deve ser uma forma abreviada de algo como “A felicidade [=sorte] dele foi que...”  Ex.: “Vocês souberam?  O carro de Fulano capotou ontem na estrada.  Felicidade que vinha outro carro atrás, e as pessoas socorreram eles.” “Houve um começo de incêndio no armazém, ontem de noite.  Felicidade que um vizinho viu a fumaça e telefonou pros bombeiros.”  Há uma variante mais próxima da linguagem comum:  “Por felicidade, eles tinham levado as coisas de valor para outro lugar, os ladrões só levaram umas bobagens.”

“O remédio de um doido é outro na porta”. Quando alguém começa a se portar de maneira extravagante, a melhor maneira de lidar com ele é usando a mesma tática. 

“É um só, como a roupa de Jesus”. Diz-se de algo que nunca varia.  "Faz seis meses que eu cobro esse dinheiro, e a conversa de Fulano é uma só, como a roupa de Jesus – mês que vem eu pago, mês que vem eu pago..."  Já vi cantadores de viola dizerem de algum colega: “A cantiga de Fulano é como a roupa de Jesus, é uma só, a vida toda”. Há duas explicações para essa idéia: 1) A roupa de Cristo não tinha costuras, era feita numa única peça (daí vem a expressão "clâmide (túnica) inconsútil (não costurada)”, usada por Emilio de Menezes num soneto famoso); 2) A roupa de Jesus foi a mesma desde a infância até a idade adulta – a acreditar nesta versão, a túnica teria aumentado de tamanho, por licença poética ou autorização divina, à medida que ele foi crescendo. Penso que a primeira idéia tem alguma origem clássica ou lendária, e que a segunda brotou por confusão das pessoas sobre o conceito de que "a roupa era uma coisa só". 





domingo, 14 de fevereiro de 2016

4050) Doce pássaro (14.2.2016)



Doce pássaro da juventude, comido no espeto à beira de uma fogueira de acampamento de praia, eu com a pele inflada de bolhas dolorosas, antes daquela noite de insônia-à-milanesa em que pensei a frase “ninguém desliga o mar”. Ribaçã salgada e suculenta, mordida com fome no balcão da Rodoviária velha, antes do copo espumante e gelado da décima saideira da noite. O corvo eterno, leit-motiv de madrugadas e firmamento, e o abutre que numa lenda alternativa era devorado todo dia pelo fígado de Prometeu.

A juventude é pássaro porque voa, porque logo se faz passar? Outra leitura possível é: a juventude não é algo que somos, é algo que de vez em quando pousa em nós, quando lhe dá na veneta, e vai embora mal erguemos os olhos. Todo sujeito tem o direito de sentir-se jovem uma vez por década, como acontece com certas torcidas de futebol. Doces pássaros, salgados pássaros, crocantes frangos à passarinho, desbastados por incisivos cuidadosos, vasculhando em cada minicâmara e desvão no meio de tantos ossinhos, pela carne, a tenra carne, a carne enquanto está quente e tem tanto a nos dar. 

Sweet bird of youth, é o nome do filme baseado na peça de Tennessee Williams. Por que a juventude é um pássaro?  “Happiness runs”, canta Mary Hopkin, a mesma que fez sucesso cantando que “bons tempos foram aqueles” (“Those were the days”). Uma cena que eu vi uma vez no trabalho, o diretor dizendo: “Olha, pessoal, nós temos exatamente a quantidade de película necessária para esse último take, são trinta e poucos segundos, vamos ensaiar direitinho, porque é uma só, sem poder errar.” Pense em trinta segundos pra passar voando. Pois mesmo assim é a juventude da gente. O tempo em que a gente é perigoso, e não existe um tempo melhor do que esse.

É um pouco como tibungar em piscina: você pula, segue-se um absurdo, e daqui a pouco você volta a ser você mesmo lá adiante, vivinho da silva. A mocidade passa rápido. É interessante que a juventude não lamente a perda da infância, pelo menos no mundo da poética pop, mas a maturidade lamente tanto a perda da juventude.  Os Rolling Stones (erodidos, sugados, reciclados por uma Ultra Ciência a serviço das empresas-de-tour) já fizeram rockzinhos adolescentes para umas quatro gerações sucessivas de jovens britânicos, que dificilmente não serão expostos a essa banda em algum momento da sua vida social. Você não pode fazer a juventude durar eternamente. Acho que se dermos um balanço bibliográfico serão bem poucas as histórias em que alguém aceita a imortalidade sem exigir que seja acompanhada de aparência jovem. Ninguém quer viver mil anos ao preço de envelhecer mil anos.



sábado, 13 de fevereiro de 2016

4049) Pedras de Roseta (13.2.2016)



No blog da London Review of Books, o redator comenta a publicação de parte da tradução chinesa de Finnegans Wake de Joyce (o livro deverá sair em 3 partes). A tradução foi feita por Daí Congrong, uma heroína. É de se imaginar como terá ficado em mandarim este famoso trecho, logo na abertura: “The fall (bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!) of a once wallstrait oldparr is retaled early in bed and later on life down through all christian minstrelsy.’

Que tipo de conhecimento de uma obra literária pode ter uma pessoa que não pôde ler o original, mas conheceu várias traduções diferentes?  A leitura de cem traduções de um só poema, como li na coletânea O Soneto de Arvers, teria ainda mais impacto se a língua original fosse indecifrável. Em francês, ainda dá pra checar.  Francês é, em nossa cultura, uma língua meio transparente, dá pra avistar alguma coisa através dela, pela sua ubiquidade na imprensa, na moda, na propaganda, nas artes. Dá para, meio pedestrianamente, comparar um soneto em francês e sua tradução brasileira. Todo mundo que estudou nos colégios onde eu estudei arranha um francês suficiente para entender os títulos das faixas de um disco de Françoise Hardy. Mas alemão, russo e chinês (pelo menos para mim) são um muro de berlim, uma cortina de ferro e uma muralha da china. Como posso afirmar que já li alguma coisa de Brecht, de Maiakóvsky ou de Lao Tsé? 

E no entanto li, sim. Alguma coisa passa numa tradução. Se não o glossário das palavras, pelo menos o dicionário das coisas. O que depender de visualização de imagens, ou do jogo de idéias, ou até um jogo de palavras que podem ser substituídas por outras totalmente diferentes na tradução, porque não é delas que se trata. Tudo que puder ser lido pode ser traduzido. (A ordem nesta frase pode ser qualquer uma, porque toda leitura é tradução.)

Claudio Weber Abramo organizou para a Editora Hedra (2011) uma edição crítica com traduções de “The Raven”, o poema de Edgar Allan Poe, em português, espanhol, francês e italiano. A cada versão que lemos desaparece um detalhe e reaparecem dez outros. O poema fica indo e voltando. O poema é algo que a gente reencontra em qualquer língua que consiga ler com fluência. É feito de palavras, mas não são as palavras em si, ou não poderia pular de língua em língua. É algo que é construído a partir das palavras. É ele que faz algo às palavras, ele as engata e modula e dá estrutura e cria uma frase que nenhuma palavra daquelas entende por inteiro. É tudo que sobrevive às traduções, paráfrases, imitações, transcrições defeituosas.





quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

4048) T. S. Eliot e o romance policial (12.2.2016)



É um lugar comum dos estudos críticos sobre o romance policial invocar os nomes ilustres que a ele se dedicaram, que lhe deram uma importância maior do que a que lhes era atribuída pelos críticos de sua época. Nomes como W. H. Auden, Jorge Luís Borges, Vladimir Nabokov, Guimarães Rosa e muitos outros eram leitores atentos de histórias de detetive. A esta lista veio se somar T. S. Eliot. De acordo com um artigo de Paul Grimstad em The New Yorker (http://tinyurl.com/zgsssq5), a publicação de The Complete Prose of T. S. Eliot, pela Johns Hopkins University Press, recuperou um grande número de resenhas que ele publicou anonimamente no jornal The Criterion, em 1927. O sisudo poeta não apenas comenta os livros que lia, como cede à tentação de propor regras para esse tipo de literatura.

Não deixa de ser curiosa a adição do seu nome a essa lista. Eliot era o mais inglês dos norte-americanos. Essa dupla filiação espiritual e literária está presente também em grandes nomes do romance detetivesco, com Raymond Chandler e John Dickson Carr à frente, norte-americanos que viveram na Inglaterra. O fato dos ingleses verem essa literatura com respeito deve pesar. Chandler sempre se queixou de que nos EUA era visto como um simples autor de histórias de detetive, ao passo que na Inglaterra era tratado de igual para igual por romancistas de primeira linha.

Foi Eliot quem considerou The Moonstone (1868) de Wilkie Collins “o primeiro, o mais longo e o melhor romance de detetive inglês”. Para ele, “a personalidade e as motivações do criminoso deveriam ser normais”, e a história não deveria “basear-se nem em fenômenos ocultos nem em descobertas feitas por cientistas solitários”. Eliot, como a maior parte dos bons autores policiais da época, defendia o fair play, ou seja, o autor deveria indicar ao leitor as principais pistas que revelavam a identidade do criminoso e o método usado para praticar o crime. É bom lembrar que na chamada Era de Ouro do romance policial (as décadas de 1920-1930) o enorme sucesso do gênero atraiu para ele autores que não tinham o menor escrúpulo de puxar o tapete de baixo dos pés do leitor da maneira mais desavergonhada possível.

Por que tanto sucesso? Eliot dizia: “Aqueles que viveram antes da criação de termos como ‘literatura elevada’, ‘romances sensacionalistas’ e ‘ficção detetivesca’ sabem que o melodrama exerce uma perene fascinação sobre o público leitor”. Para ele, um romance policial mal sucedido era o que deixava de satisfazer duas necessidades: “o prazer puramente intelectual de Poe e a completude e abundância de vida que há em Wilkie Collins”.








4047) A Vida e os Tempos de Alma Loser (11.2.2016)



Cap. 1 – De como Alma Loser brotou pronta dos pés à cabeça, aos quinze anos, no Colégio Municipal Lima Barreto, em Conceição da Macuruí (Bahia), onde até então estava disfarçada de Maria Almarina da Rocha, filha de um caminhoneiro e de uma doméstica.

Cap. 2 – De como Alma dizia que essa expressão “doméstica” lhe provocava arrepios de repulsa, e que se tivesse que escolher entre a profissão do pai e a da mãe preferiria mil vezes ser caminhoneira, mesmo correndo o risco de assalto e surra de vez em quando, destino eventual do pai dela.

Cap. 3 – De como nome e personagem nasceram juntos quando Maria Almarina resolveu aceitar o convite para tocar baixo na banda feminina “OB Usado”, arregimentada para participar da festa dos Jogos Estudantis da escola, sob o nome de Las Bambas, é claro, porque o nome oficial enfartaria a diretora, uma chata.

Cap. 4 – De como uma vaia ensurdecedora afugentou do palco a banda, e Alma Loser rasgou furiosa o figurino, arrombou um locker, fugiu com o moleton de alguém e nunca mais a viram, nem no Lima Barreto nem em casa, onde ficou o casal de velhos, que mal deram pela sua falta.

Cap. 5 – De como na capital Alma Loser aprendeu russo com um vizinho de pensão, ascensorista de um hotel todo em ébanos e dourados.

Cap. 6 – De como Alma Loser perdeu vários empregos sucessivos até descobrir que russo no currículo queimava seu filme.

Cap. 7 – De como Alma Loser cruzou por acaso com um primo distante e machista, daqueles que sempre botaram olho ruim pra cima dela, mas família é família, mas como ela agora não era mais família coisa nenhuma, pensou ele, botando um olho bonito, ela ia ver o que é bom pra tosse.

Cap. 8 – De como as coisas não correram bem assim, e Alma Loser aplicou-lhe uma combinação de krav-magá que aprendera com o útil ascensorista e o deixou desacordado para pagar na manhã seguinte os estragos que fizeram na suite do motel.

Cap. 9 – De como Alma Loser juntou as economias, tomou um banho de loja, prendeu o cabelo, e foi admitida como flight attendant (ela detestava “aeromoça”) numa companhia aérea terceirizada.

Cap. 10 – De como um ano e meio depois ela desembarcou em São Petersburgo, seu objetivo desde o início, e lá mesmo queimou o passaporte e caiu na clandestinidade.


Cap. 11 – De como encontramos Alma Loser onze anos depois em Moscou, dona de butique, passaporte ucraniano, gorda como uma baronesa, falando francês, amante de dois políticos de partidos rivais, sendo entrevistada num talk-show da TV local e, indagada sobre o sonho da sua vida, dando um fundo suspiro e respondendo: “Conhecer o Brasil, porque dizem que é um país de homens lindos.”