terça-feira, 9 de junho de 2015

3836) Escrever em público (10.6.2015)




A experiência de escrever obras literárias é tão distinta de escrever textos narrativos para outros meios (cinema, TV, teatro, etc.) que pode-se muito bem argumentar que são feitas com partes diferentes do cérebro.


Quem faz literatura escreve sozinho. Existem casos de parcerias literárias, em literaturas-de-gênero como policial e ficção científica, mas mesmo estes são uma minoria dentro do quadro geral. 

O trabalho literário é um trabalho de concentração, introspecção, intensa atividade íntima. São numerosos os testemunhos de escritores que falam em trancar a porta, proibir a família de chegar perto, desligar o telefone, isolar-se numa cabana ou num hotel para produzir obras literárias. É uma atividade que tipicamente se dá na solidão, e mesmo os mais extrovertidos dos escritores precisam desse tipo de recolhimento para produzir. 

Muitos têm leitores fiéis (a esposa, o marido, amigos próximos) a quem dão para ler trechos do trabalho à medida que vão ficando prontos, e escutam suas críticas e conselhos. Mas a escrita propriamente dita é no isolamento. 

Carson McCullers tem um livro chamado O Coração é um Caçador Solitário; isso exprime uma faceta essencial da literatura. Só se acessa literariamente o coração, por assim dizer, quando se está a sós.

Escrever para cinema, TV e teatro, contudo, é escrever em público, cercado de gente, mesmo considerando-se os eventuais períodos de isolamento. 

Quem escreve roteiro escreve (em geral, é claro; há todo tipo de exceção – mas me refiro ao formato preferencial adotado no ofício) um texto a ser lido e questionado por parceiros e outras pessoas: “E por que isso? E para que serve aquela cena?  Não entendi esse diálogo!  Essa descrição está errada!”. E por aí vai. 

Roteiro (e peça teatral) não são um produto final, são uma matéria-prima verbal que o autor coloca no papel com sangue, suor e lágrimas, para vê-la ser manuseada, manipulada, esquartejada, recomposta, refeita e transformada por um grupo de indivíduos que podem ser anjinhos-do-Senhor, mas ele vê como carrascos cruéis estraçalhando suas melhores frases, bombardeando suas idéias mais originais.

Se você, amigo, é um escritor introspectivo, cujas melhores idéias ocorrem quando está ouvindo estrelas, fique longe desses ofícios. Sua procura é dentro de você mesmo, e só você vai poder achar o que talvez exista. 

Mas se você não vê nadinha de sagrado numa página escrita, e a encara simplesmente como um meio para chegar a um fim, e, principalmente, se você acredita que meia dúzia de cabeças pensam melhor que uma, até mesmo se essa uma for a sua... Então bata às portas dessas outras nobres artes, e boa sorte.







3835) Palíndromos (9.6.2015)



Falo aqui de vez em quando sobre a arte do palíndromo, a frase que lida ao contrário é a mesma coisa. O exemplo-padrão, que conheço desde guri, é “Roma me tem amor”. 

Fazer palíndromos é uma arte barroca, cuja característica principal é um excesso de complexidade no processo para um excesso de perplexidade com o resultado. 

Uma matéria recente no “Globo” (http://tinyurl.com/pr8b8hu) lista entre os praticantes da Grande Arte o escritor e ator Gregório Duvivier (autor de “Soluço-me sem óculos” e do fescenino “E até cu buceta é”) e o cartunista Laerte (autor de “Rir, o breve verbo rir”). 

A matéria também cita palíndromos de Chico Buarque (“Até Reagan sibarita tira bisnaga ereta”), Millôr Fernandes (“A grama é amarga”), Paulo Henriques Britto (“Ótimo, só eu, que os omito”), Marina Wisnik (“Lá vou eu em meu Eu oval”).

Brincadeira de gente desocupada? Não acho. Acho que é brincadeira de gente ocupada – e doida para achar um pretexto qualquer pra não começar a trabalhar. Para adiar o instante terrível do trabalho, o cara se dedica à invenção de palíndromos. 

Eu diria quase “a descoberta”, em vez de “invenção”, porque um palíndromo tem algo de inevitável: se a palavra “lâmina”, lida ao contrário, dá “animal”, todos os sujeitos que perceberem isso vão fazer palíndromos parecidos. É como se essas frases se formassem a si mesmas, precisando apenas de uma ajudazinha de uma equipe de seres humanos.

A literatura não deixou de perceber as propriedades mágicas de fórmulas tão enigmáticas. 

Osman Lins usou o palíndromo latino “sator arepo tenet opera rotas”, “o lavrador mantém com cuidado a charrua nos sulcos”, como mote gerador de seu romance Avalovara (1973). 

Tim Powers, em Expiration Date (1996) conta sobre caçadores de fantasmas que escrevem palíndromos em folhas de papel para aprisioná-los: os fantasmas começam a ler o palíndromo e ficam indo e voltando, em loop, sem conseguir sair dali.

Fraga, um dos maiores frasistas brasileiros, inaugurou mês passado em Porto Alegre uma exposição de palíndromos (veja aqui: http://tinyurl.com/o6jfsyy), entre os quais façanhas como esta: “Será sol e pane para plano Ícaro. O voo racional para. Pena pelos ares”. 

Ao me avisar, mandou-me este: “Ser avatar: ele duplica fácil. Pude ler a Tavares”. Que eu respondi assim: “A semana à toda: a garfada, Fraga adota-a na mesa”. 

Brincadeira de desocupados? Não, acho que é um exercício de mentes capazes de pequenas proezas em atividades para as quais o Capitalismo, esse vagaroso dinossauro rumo à extinção, não conseguiu conceber recompensas pecuniárias à altura do tempo, do esforço, do talento envolvidos.



domingo, 7 de junho de 2015

3834) A frase de Groucho (7.6.2015)



Groucho Marx foi um dos mais inteligentes e imprevisíveis cômicos do cinema norte-americano. Também do rádio, do teatro, e da TV, mas tudo que vi dele foi no cinema, em filmes absurdistas como Uma noite na Ópera, Uma noite em Casablanca, Animal Crackers, Duck Soup e vários outros. Os Irmãos Marx eram um grupo anárquico: Chico, o espertalhão; Harpo, o mudinho que transformava em qualquer coisa qualquer objeto que houvesse no cenário; e Groucho, o trocadilhista, insultador de senhoras e figurões, aprontador de pequenos esquetes improvisados.  Um filme dos irmãos Marx é uma comédia romântica, ou aventura policial, ou outro gênero, desde que os irmãos (Groucho principalmente) não estejam na cena. No momento em que eles aparecem, subvertem o gênero. Fica o filme querendo ir numa direção e os Marx empurrando-o na direção da bagunça surrealista e irreverente.

Groucho tem um dito famoso: “Jamais entrarei para um clube capaz de me aceitar como sócio”.  É uma das suas frases paradoxais, muito citada; diz-se que ele a enviou num telegrama para um clube de Beverly Hills que o convidou para se associar.  Como se dá com os grandes paradoxos de Oscar Wilde ou de G. K. Chesterton, é uma frase que faz sentido imediato quando a lemos, apesar da aparente contradição.

Dei uma pesquisada a respeito dela, para saber a data, por causa de um conto de Monteiro Lobato que reli por acaso. O conto é “Um homem de consciência”, em Cidades Mortas (1909), a história de João Teodoro, um homem pacato e meio decepcionado com a decadência de sua cidadezinha, Itaoca. Certo dia ele é nomeado delegado, bota os baús em cima de um burro e vai embora, dizendo: “Terra em que João Teodoro chega a delegado eu não moro”.  É a mesma lógica grouchiana, sendo que em 1919 o Marx bigodudo (então com 29 anos) mal estava iniciando sua carreira artística.

Mexe aqui, mexe acolá, encontrei a referência de que John Galsworthy (Prêmio Nobel de Literatura em 1932) teria dito sobre um personagem, na Parte I de The Forsyte Saga: “Ele tinha um desprezo natural por um clube capaz de aceitá-lo como sócio”. É a mesma idéia.  A obra de Galsworthy pode ter influenciado independentemente tanto Groucho quanto o americanófilo Lobato, pois é um famoso conjunto de romances publicados entre 1906 e 1922 (em 1921 já havia uma tradução brasileira, da Ed. José Olympio). Não é absurdo supor que essa frase, curta porém marcante, tenha se grudado na memória do comediante de Hollywood e do autor do “Picapau Amarelo”. Ou – o que é igualmente provável – que este seja um sentimento intuitivo, presente em todos os que sabem o que é não pertencer às classes “diferenciadas”.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

3833) "Sangue de Pantera" (6.6.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 6 de junho, será exibido Sangue de Pantera (1942) de Jacques Tourneur. Este é talvez o mais famoso do ciclo de filmes de terror que o produtor Val Lewton (1904-1951) ajudou a criar na década de 1940, um projeto pessoal dele dentro da produtora RKO. Supervisionando o trabalho de diretores como Jacques Tourneur, Mark Robson, Robert Wise e outros, Lewton definia o estilo geral dos filmes, reescrevia o roteiro, escolhia o elenco. Seu nome é muito citado quando se discute o papel criativo de um produtor, principalmente em filmes B, de baixo orçamento, e até que ponto um produtor que é também um criador (Lewton era romancista, e publicou contos em revistas de pulp fiction da época) pode contribuir para a qualidade de um filme.


Sangue de Pantera recupera um tema antigo do cinema de terror, o de pessoas híbridas de felino, mito cuja versão mais popular é a do lobisomem. O filme conta a história de Irena (Simone Simon), uma mulher de origem sérvia que acredita na lenda do “povo pantera”, que quando sexualmente excitados transformam-se em feras. Isto a leva a resistir a todas as tentativas do incauto norte-americano (Kent Smith) que se apaixona por ela.

Foi o primeiro filme produzido por Lewton em seu projeto de filmes de terror, e o seu enorme sucesso (foi a maior bilheteria da RKO naquele ano) deu ao produtor a carta branca necessária para impor seu estilo sem interferências dos executivos. Lewton produziu entre 1942 e 1946 nove filmes de consistente qualidade em roteiro, fotografia, montagem e interpretação. Sangue de Pantera foi refilmado anos depois por Paul Schrader como A Marca da Pantera, com Nastassia Kinski.

A direção de Jacques Tourneur faz um uso sugestivo da iluminação em preto-e-branco, com luzes e sombras produzindo uma impressão permanente de indecisão, onde não se sabe direito o que está sendo mostrado na tela. Câmera subjetiva, câmera em movimento, cortes bruscos, uso imaginativo de sons e silêncios, tudo isto ajudou a criar um clássico do estilo “não mostrar o monstro”. A violência ocorre geralmente fora da tela, sugerida por uma narrativa indireta, onde pequenos detalhes ganham uma ressonância ameaçadora.  É um clássico do cinema de terror, e muitas vezes citado quando se quer mostrar que um baixo orçamento é um problema que pode ser superado por criatividade.



quinta-feira, 4 de junho de 2015

3832) TV e cultura popular (5.6.2015)



Estive nesta semana em Campina Grande, participando do XII Seminário Os festejos juninos no contexto da folkcomunicação e da cultura popular, promovido pelo Grupo de Pesquisas Comunicação, Cultura e Desenvolvimento, do Departamento de Comunicação Social do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba). Convidado pelo prof. Luís Custódio, meu eterno presidente do Cineclube de Campina Grande, participei da mesa “Cinema brasileiro e manifestações da cultura popular”, juntamente com os professores Rômulo Azevedo (UEPB), Gilvan de Melo Santos (UEPB), João Batista de Brito (UFPB), João Carlos Beltrão (IFPB/ABD-PB), Luís Antonio Mousinho (UFPB) e Sebastião Guilherme Albano da Costa (UFRN).

Minha comunicação se fez em torno de três exemplos da dificuldade de relacionamento entre cinema/TV e cultura popular. Exemplo um: um cineasta viajou ao Alasca para registrar um ritual de uma tribo esquimó, e o tal ritual consistia num xamã cantando uma litania e batendo com uma matraca na perna, durante 8 horas seguidas. “O que devia fazer a equipe?”, perguntava o cineasta. “Filmar e reproduzir as oito horas completas? Filmar apenas uns quinze minutos e explicar à plateia: ‘É isso, durante oito horas’?”

Exemplo dois: uma equipe de TV brasileira viaja para filmar uma romaria religiosa num interior remoto. Por um erro de comunicação a equipe pensou que a romaria aconteceria num dia X, mas ficou sabendo que seria de fato no dia seguinte, quando já estavam com as passagens de volta compradas. Depois de muita negociação, foi possível convencer as pessoas locais a fazerem uma “romaria fake” no dia mais conveniente para a equipe. Que valor tem esse registro? Que respeito a comunidade local ficará tendo pela TV, depois de constatar na carne o grau de “mentira” do que aparece na tela?  Que respeito terá por si mesma, por ter colaborado com a mentira alheia?

Exemplo três: em filmes ou reportagens sobre cantadores de viola, a TV, essa tesoura faminta, costuma cortar pelo meio uma sextilha ou uma décima, para poupar tempo. Interromper um verso de cantador sem mostrar o final é como mostrar a cobrança de um pênalti sem mostrar se a bola entrou ou não. Equipes de cinema e TV em geral têm um profundo desconhecimento sobre as coisas que vão filmar. Têm suas próprias prioridades, preferências, opções. Na verdade, pensam somente no que deve aparecer na tela, não no que acontece diante da câmera. A cultura popular vê essas equipes com uma desconfiança mais do que justificada, porque sabe que está servindo apenas de presunto para o sanduíche alheio.



3831) Histórias proféticas (4.6.2015)



De vez em quando, principalmente no ramo da ficção científica, diz-se que um livro é profético, que adivinhou o futuro. Julio Verne teria adivinhado a invenção do submarino e do cinema (este em O Castelo dos Cárpatos), Isaac Asimov teria profetizado a invenção de automóveis que se guiam sozinhos (e conversam com o motorista), Fulano ou Sicrano teriam antevisto a Internet. (Meu candidato preferido para esta última façanha, é Mark Twain, em 1898; ver aqui: http://tinyurl.com/o43bsdb). Na verdade não é tão simples assim. Verne e Asimov acompanhavam de perto a pesquisa científica e tecnológica dos seus respectivos tempos. Há coisas que sabemos serem possíveis, mas não temos ainda a tecnologia (ou o dinheiro) para fabricá-las. Um escritor pode escrever uma história e pressupor que a tecnologia e o dinheiro já existem.

O mesmo se dá com fatos políticos e históricos. Em 1941, Gil Fox criou uma história em quadrinhos (com desenhos de Lou Fine) para a revista National Comics, descrevendo um ataque a Pearl Harbor, exatamente um mês antes dele acontecer (veja aqui: http://tinyurl.com/pvlcao3). Essa base era a sede da frota naval norte-americana no Pacífico, e seria um alvo natural para qualquer inimigo. Na HQ de Fox, são os alemães que bombardeiam Pearl Harbor, como uma manobra de distração para desviar as atenções de sua verdadeira invasão que ocorre logo depois na Costa Leste. O que faz a HQ de Fox & Fine ser lembrada até hoje é apenas o fato de ter saído apenas um mês antes do ataque japonês, em 7 de dezembro de 1941.

Os japoneses haviam atacado a frota norte-americana no conto de 1914 “Beyond the Spectrum”, de Morgan Robertson, torpedeando navios nas vizinhanças do Havaí e tentando invadir San Francisco. Tido como profético, o conto não faz mais que reproduzir militarmente uma tensão geopolítica que sempre existiu. Robertson (1861-1915), no entanto, é autor de um romance famoso por sua visão profética. Em 1898 ele publicou Futility, em que um navio, o SS Titan, tido como “inafundável”, choca-se com um iceberg numa noite de abril e vai a pique, matando a maioria dos passageiros porque não havia salva-vidas em número suficiente. Os detalhes básicos da história são os mesmos do naufrágio do Titanic, que só veio a ocorrer 14 anos depois. Embora vários detalhes (ver aqui: http://tinyurl.com/c86xo2) justifiquem uma certa perplexidade, acidentes marítimos são relativamente frequentes e semelhantes entre si. Os perigos são os mesmos, os descuidos são parecidos. Nomes pomposos e heróicos também. Coincidências são na verdade convergências de elementos que se repetem.






terça-feira, 2 de junho de 2015

3830) Naquele tempo (3.6.2015)



(Ilustração: Peter Sis)

Naquele tempo, não havia roletas nos ônibus, e o cobrador vinha de banco em banco cobrando a passagem e entregando um ticket minúsculo que ele destacava de um talãozinho. Quando o ônibus estava cheio ele tinha que vir se espremendo entre as pessoas que estavam em pé, cobrando de cada uma.

Naquele tempo, coava-se o café com um coador de cabo de madeira com um círculo de metal que segurava um saco de pano. Depois, jogava-se o pó no lixo e lavava-se o saco de pano, que levava anos para ser trocado (dizia-se que “encorpava o gosto”).

Naquele tempo, se um homem e uma mulher se hospedavam juntos num hotel era preciso apresentar a certidão de casamento.

Naquele tempo, quem comprava um ingresso de cinema podia ver o filme quantas vezes quisesse, bastava não sair da sala de projeção.

Naquele tempo, as passagens aéreas eram no formato de um talão de cheque, com umas 8 ou 10 folhinhas impressas. Depois de emitida, quando se queria mudar a data era preciso ir pessoalmente na loja para que a moça colasse um papelzinho com a data nova sobre a anterior.

Naquele tempo, crianças brincavam com lança-perfume no carnaval, e todo mundo gostava daquele perfume que ardia gelado, e usava máscaras de plástico transparente e colorido para proteger os olhos, porque doía.

Naquele tempo, havia homens nas feiras que carregavam as compras das donas de casa em enormes balaios de vime, na cabeça, protegida pela metade de uma bola-de-futebol de couro com um pano enrolado dentro.

Naquele tempo, quando numa casa qualquer a televisão era ligada, à noite, as janelas ficavam cheias de pessoas que vinham espiar os programas, e eram chamados de “televizinhos”.

Naquele tempo, em dia de eleição, os homens acordavam bem cedo e vestiam seu melhor terno para ir votar.

Naquele tempo, na noite do reveillon, quando chegava a meia-noite desligava-se a eletricidade na cidade inteira durante um ou dois minutos, para assinalar a passagem do ano.

Naquele tempo, quando uma mulher aparecia numa arquibancada num estádio de futebol uma porção de gente vaiava e uma porção de gente aplaudia.

Naquele tempo, quando morria um colega nosso no colégio, nos dias seguintes todo mundo usava um pedaço de pano preto pregado na manga ou no bolso do uniforme.

Naquele tempo, quando uma criança arrancava um dente podia tomar todo o sorvete que quisesse, e quando estava doente ganhava maçãs e uvas verdes, que afora isto só se comia na noite de Natal.

Naquele tempo, quando havia festas nos clubes elegantes, onde a bebida era cara, os rapazes ficavam bebendo cachaça na praça em frente, e só entravam quando já estavam “puxando fogo” (como se dizia naquele tempo).





segunda-feira, 1 de junho de 2015

3829) A estética do fragmento (2.6.2015)



A literatura fantástica tem um subgênero inteiro, ainda mal catalogado, de histórias voltadas para mistérios (de variadas naturezas) envolvendo artefatos, documentos, objetos, móveis, obras de arte, cartas, etc. que por algum motivo estão associados a algum fato extraordinário, e que às vezes são a única pista sobre esse fato. 

Em alguns casos, uma cultura inteira desapareceu e dela ficou apenas um livro, ou um aparelho, ou um monumento. 

Em outros, é um pedaço de um manuscrito, uma relíquia recuperada, como em Um Cântico para Leibowitz de Walter M. Miller. Com esse elemento em mãos, é possível às vezes reconstituir uma história, assim como pegadas e um osso permitem aos cientistas descrever em detalhe um animal e seus hábitos.

Num artigo de Marcio Renato dos Santos na revista paranaense Cândido (#45, abril), é discutido o conceito literário de fragmento, a noção da narrativa fragmentada ou descontínua, que para muitos é uma das marcas do modernismo e de muito que veio depois. 

Essa discussão pode se voltar para a própria estrutura da narrativa, vista não como um fluxo uniforme e contínuo, mas como uma sucessão de flashes, de peças soltas, formando uma espécie de colagem onde a justaposição predomina sobre a sequência. Mas pode se voltar também para a valorização do fragmento em si, do texto que parece ser algo de que se perdeu o começo e o fim, restando apenas um bloco cujos complementos devem ser deduzidos pelo leitor.

O artigo cita Marcelo Coelho, da Folha de São Paulo, que diz: 

“Acho que o interesse pelo fragmento começa com os românticos alemães, Schlegel e Novalis. O interessante é que, provavelmente, os românticos passaram a valorizar esse tipo de coisa quando perceberam a beleza das ruínas arquitetônicas e, especialmente, a beleza misteriosa dos textos gregos e romanos que nos chegaram incompletos.”

Um bom exemplo disso são as citações fragmentárias que Isaac Asimov faz da fabulosa "Enciclopédia Galáctica”, em sua série Fundação, ou as citações que H. P. Lovecraft e seus seguidores fazem do Necronomicon, o lendário códice de magia maligna. 

O fragmento tem a função literária de sugerir o Todo através da Parte, o tubarão através da barbatana. A incompletude é a sua principal força literária. O resíduo tem mais força do que a apresentação (se isso fosse possível) do texto completo da obra – ele nos força a imaginar, a prolongar os contornos do fragmento de maneira a vislumbrar a silhueta da obra completa. Diante do livro completo do Necronomicon, só restaria ao leitor a tarefa passiva de lê-lo. Diante do fragmento, o leitor “escreve” o livro.




sábado, 30 de maio de 2015

3828) Um livro de presente (31.5.2015)



Ganhar livros no aniversário? Beleza! E dar livros no aniversário dos outros pode ser melhor ainda. Presentear livros pressupõe que o aniversariante goste de ler, e que a gente saiba que tipo de livro ele prefere. Já me ocorreu encontrar um livro num sebo, durante uma viagem, comprá-lo, e ficar meses com ele esperando o aniversário de Fulano para fazer-lhe uma surpresa. Pra mim, presentear dessa forma é muito melhor do que passar correndo num shopping, no fim da tarde, para comprar uma coisa qualquer no trajeto para o aniversário de Fulano. Presente não devia ser a obrigação de um dia. Não devia ser, como diz um piadista amigo meu, “o crachá pra entrar na festa”. Devia ser uma coisa de pessoa para pessoa, independente de festa, de data, de compromisso. Entro numa livraria em São Paulo e vejo um livro daquele poeta obscuro que minha amiga Fulana, da Bahia, vive procurando sem achar. Pegar esse livro ali, na hora, pra mandar pra Fulana (mesmo sem aniversário) me parece um gesto de carinho muito melhor do que o “crachá” comprado às pressas.

Como falei, tem que ser um livro personalizado, que tenha a ver com o destinatário. Não vou fazer como outro amigo, que deu de presente à esposa (que nem lia francês) as obras completas de Baudelaire, o poeta preferido dele. Chamo a isso “presente de gringo”. Gringo só faz um favor a você quando sai ganhando alguma coisa com isso. Eu posso não ser fã de Star Trek, mas se meu amigo Sicrano é fã da série e ainda não tem o livro que acabou de sair, por que não levar esse livro para ele?  Presente é pra quem ganha.

Tem outro aspecto interessante no caso mais raro (mas que é o meu) de quem publica os próprios livros. Gosto de dar um livro meu de presente no aniversário de alguém; acho que isso é mais personalizado ainda, porque não é somente algo que eu escolhi, é algo que escrevi, e existe aquela sensação de estar oferecendo metaforicamente um pouco de mim àquela pessoa. Claro que continua a valer a regra do interesse, porque não vou dar um livro de poemas meus a quem não lê poesia, ou de FC a quem não gosta de FC.

E pensando bem, quando damos um livro nosso de presente, esse presente acaba funcionando em mão dupla. Queremos dar aos nossos amigos o prazer de ler um livro nosso, mas queremos também dar a nós mesmos o prazer de contar com a leitura deles. É um presente recíproco, porque dar um livro nosso é pedir em troca a leitura, a atenção, o tempo precioso dos nossos amigos. Queremos seus olhos, sua mente. Um livro presenteado assim é um presente em mão dupla, e às vezes o maior presente que damos a alguém é a leitura do livro que ele nos presenteou.




3827) "O Ladrão de Bagdá" (30.5.2015)




Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 30, será exibido O Ladrão de Bagdá (1940). Há uma certa dificuldade na atribuição de autoria deste filme, que durante a produção passou pela mão de vários diretores, e ora é creditado a um, ora a outro. Michael Powell e William Cameron Menzies são talvez os nomes mais citados, mas também dirigiram cenas Alexander Korda (o produtor), Zoltan Korda (irmão deste, e produtor associado), Ludwig Berger e Tim Whelan.  Feito durante a II Guerra Mundial, o filme teve parte das cenas filmadas na Inglaterra e parte nos EUA. Segundo o saite IMDB, é fácil saber o local onde foram feitas várias cenas: o rígido código moralista do cinema norte-americano da época fez com que o traje das odaliscas fosse mais “composto” nas cenas ali filmadas.

É uma fantasia oriental, a história de um jovem que se apaixona por uma princesa e tem que disputá-la com Jafar, um vizir maldoso (interpretado por Conrad Veidt), e recebe a ajuda de um menino de rua interpretado por Sabu, ator-mirim indiano que fez muito sucesso na época. Muitas situações, personagens e cenas deste filme foram reaproveitados anos depois, como homenagem, no desenho Aladim, da Disney.

Foi um dos filmes que marcaram minha infância, porque o vi numerosas vezes (era reprisado nas matinais de domingo), e existem ecos dele no meu romance A Máquina Voadora (1994). Consta que foi um dos primeiros filmes em que foi usada a trucagem de tela verde, ou “chroma-key”, tendo ganho o Oscar de Melhores Efeitos Visuais naquele ano, além de Fotografia e de Direção de Arte.

Um gênio gigantesco saindo como uma nuvem negra de dentro de uma garrafa, em plena praia; um cavalo com asas, e depois um tapete voador, sobrevoando uma cidade; a batalha do herói com uma aranha gigante no centro da teia; autômatos que se movem, dançam, lutam; são só algumas das imagens marcantes do filme, que é talvez a melhor adaptação das Mil e Uma Noites já feita no cinema. Quando Tzvetan Todorov, em sua classificação do Fantástico, colocou num dos extremos de sua escala o gênero “maravilhoso”, referia-se a estes universos onde todos os prodígios, mesmo os que causam espanto, são considerados naturais, porque o mundo onde acontecem é um mundo feito de prodígios onde não vigora nenhum filtro materialista determinando o que pode ou não acontecer.