segunda-feira, 1 de junho de 2015

3829) A estética do fragmento (2.6.2015)



A literatura fantástica tem um subgênero inteiro, ainda mal catalogado, de histórias voltadas para mistérios (de variadas naturezas) envolvendo artefatos, documentos, objetos, móveis, obras de arte, cartas, etc. que por algum motivo estão associados a algum fato extraordinário, e que às vezes são a única pista sobre esse fato. 

Em alguns casos, uma cultura inteira desapareceu e dela ficou apenas um livro, ou um aparelho, ou um monumento. 

Em outros, é um pedaço de um manuscrito, uma relíquia recuperada, como em Um Cântico para Leibowitz de Walter M. Miller. Com esse elemento em mãos, é possível às vezes reconstituir uma história, assim como pegadas e um osso permitem aos cientistas descrever em detalhe um animal e seus hábitos.

Num artigo de Marcio Renato dos Santos na revista paranaense Cândido (#45, abril), é discutido o conceito literário de fragmento, a noção da narrativa fragmentada ou descontínua, que para muitos é uma das marcas do modernismo e de muito que veio depois. 

Essa discussão pode se voltar para a própria estrutura da narrativa, vista não como um fluxo uniforme e contínuo, mas como uma sucessão de flashes, de peças soltas, formando uma espécie de colagem onde a justaposição predomina sobre a sequência. Mas pode se voltar também para a valorização do fragmento em si, do texto que parece ser algo de que se perdeu o começo e o fim, restando apenas um bloco cujos complementos devem ser deduzidos pelo leitor.

O artigo cita Marcelo Coelho, da Folha de São Paulo, que diz: 

“Acho que o interesse pelo fragmento começa com os românticos alemães, Schlegel e Novalis. O interessante é que, provavelmente, os românticos passaram a valorizar esse tipo de coisa quando perceberam a beleza das ruínas arquitetônicas e, especialmente, a beleza misteriosa dos textos gregos e romanos que nos chegaram incompletos.”

Um bom exemplo disso são as citações fragmentárias que Isaac Asimov faz da fabulosa "Enciclopédia Galáctica”, em sua série Fundação, ou as citações que H. P. Lovecraft e seus seguidores fazem do Necronomicon, o lendário códice de magia maligna. 

O fragmento tem a função literária de sugerir o Todo através da Parte, o tubarão através da barbatana. A incompletude é a sua principal força literária. O resíduo tem mais força do que a apresentação (se isso fosse possível) do texto completo da obra – ele nos força a imaginar, a prolongar os contornos do fragmento de maneira a vislumbrar a silhueta da obra completa. Diante do livro completo do Necronomicon, só restaria ao leitor a tarefa passiva de lê-lo. Diante do fragmento, o leitor “escreve” o livro.




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