terça-feira, 9 de junho de 2015

3836) Escrever em público (10.6.2015)




A experiência de escrever obras literárias é tão distinta de escrever textos narrativos para outros meios (cinema, TV, teatro, etc.) que pode-se muito bem argumentar que são feitas com partes diferentes do cérebro.


Quem faz literatura escreve sozinho. Existem casos de parcerias literárias, em literaturas-de-gênero como policial e ficção científica, mas mesmo estes são uma minoria dentro do quadro geral. 

O trabalho literário é um trabalho de concentração, introspecção, intensa atividade íntima. São numerosos os testemunhos de escritores que falam em trancar a porta, proibir a família de chegar perto, desligar o telefone, isolar-se numa cabana ou num hotel para produzir obras literárias. É uma atividade que tipicamente se dá na solidão, e mesmo os mais extrovertidos dos escritores precisam desse tipo de recolhimento para produzir. 

Muitos têm leitores fiéis (a esposa, o marido, amigos próximos) a quem dão para ler trechos do trabalho à medida que vão ficando prontos, e escutam suas críticas e conselhos. Mas a escrita propriamente dita é no isolamento. 

Carson McCullers tem um livro chamado O Coração é um Caçador Solitário; isso exprime uma faceta essencial da literatura. Só se acessa literariamente o coração, por assim dizer, quando se está a sós.

Escrever para cinema, TV e teatro, contudo, é escrever em público, cercado de gente, mesmo considerando-se os eventuais períodos de isolamento. 

Quem escreve roteiro escreve (em geral, é claro; há todo tipo de exceção – mas me refiro ao formato preferencial adotado no ofício) um texto a ser lido e questionado por parceiros e outras pessoas: “E por que isso? E para que serve aquela cena?  Não entendi esse diálogo!  Essa descrição está errada!”. E por aí vai. 

Roteiro (e peça teatral) não são um produto final, são uma matéria-prima verbal que o autor coloca no papel com sangue, suor e lágrimas, para vê-la ser manuseada, manipulada, esquartejada, recomposta, refeita e transformada por um grupo de indivíduos que podem ser anjinhos-do-Senhor, mas ele vê como carrascos cruéis estraçalhando suas melhores frases, bombardeando suas idéias mais originais.

Se você, amigo, é um escritor introspectivo, cujas melhores idéias ocorrem quando está ouvindo estrelas, fique longe desses ofícios. Sua procura é dentro de você mesmo, e só você vai poder achar o que talvez exista. 

Mas se você não vê nadinha de sagrado numa página escrita, e a encara simplesmente como um meio para chegar a um fim, e, principalmente, se você acredita que meia dúzia de cabeças pensam melhor que uma, até mesmo se essa uma for a sua... Então bata às portas dessas outras nobres artes, e boa sorte.







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