quinta-feira, 14 de maio de 2009

1030) Davi e Golias (5.7.2006)



O duelo entre Davi e Golias geralmente é visto como a vitória do pequeno contra o grande, do fraco contra o poderoso. Virou uma metáfora freqüente no futebol, no boxe, etc., e se mistura ao conceito da vitória do pobre contra o rico, do oprimido contra o opressor, etc.

O episódio (no 1o. Livro de Samuel) pode ser visto de outra forma. Davi matou Golias com uma pedra arremessada por uma funda, sem ter que se arriscar entrando no raio de ação das armas do adversário. Sua vitória é simplesmente a vitória do duelista que possui armamento superior, tecnologia superior. É a vitória do mais moderno, que usa a tecnologia de forma eficaz, e com isto reverte uma situação de aparente desvantagem material.

Uma objeção pode ser levantada: a de que a tecnologia do guerreiro filisteu era superior à do pastorzinho israelita. Afinal, a Bíblia descreve com detalhes o capacete, a couraça, as botas e o escudo usados por Golias (todos de cobre), e sua lança de ferro. Era decerto a melhor tecnologia disponível na época, senão Golias não sairia a provocar o exército de Israel, dizendo que se algum israelita o derrotasse os filisteus concordariam em deixar-se escravizar. Por outro lado, a funda de Davi era uma arma tradicional, que naquele tempo já estaria sendo usada há milhares de anos sem modificações. Um pedaço de couro amarrado a duas tiras, e cinco pedrinhas redondas: uma arma de baixa tecnologia, portanto.

Isto recoloca a questão nos seguintes termos: tecnologia superior não é necessariamente a mais recente, a mais cara, a de maior potencial quantitativo. É a tecnologia mais eficaz para uma situação específica. Qualquer pessoa sabe que a tecnologia superior para matar uma barata não é um revólver, é um chinelo. Nos últimos cem anos, vimos inúmeros exemplos de guerrilhas que derrotam exércitos com tecnologia mais poderosa, mas inadequada para o terreno, o clima, a distribuição de forças, etc. Na Bíblia, Davi chega a experimentar, antes do combate, armamento similar ao do gigante, mas desiste: “E Saul vestiu a Davi das suas armas e pôs sobre a sua cabeça um elmo de cobre, e o guarneceu de couraça. Cingido pois Davi com a espada de Saul sobre seus vestidos, começou a ver se poderia andar assim armado: porque não estava acostumado. E disse Davi a Saul: Eu não posso andar assim, porque não tenho uso disso” (I Samuel, 17, 38-39).

A vitória de Davi é a vitória do duelista que consegue evitar o choque em condições que favorecem o adversário e sua tecnologia, e dá um jeito de travar o combate de tal maneira que sua própria tecnologia, aparentemente inferior, revela-se como a única eficaz. Não é uma simples vitória do “pequeno” contra o “grande”, a qual acaba sempre sendo vista em termos meios românticos como uma prova de que os fracos podem derrotar os fortes. É a vitória da tecnologia mais eficaz e do planejamento, e isto tanto pode ser posto em prática pelos pequenos quanto pelos grandes.

1029) Eu defendo Parreira (4.7.2006)


(ilustração: Nei Lima)

Já sei que muita gente vai botar minha cabeça a prêmio por causa disto, mas eu defendo Carlos Alberto Parreira, que sempre achei (e continuo achando) um dos melhores técnicos do Brasil, mesmo discordando, como discordo, de algumas escalações e opções táticas suas nesta Copa. Talvez não seja o técnico ideal para a Seleção, concordo. Parreira é um homem culto, inteligente, ético, emocionalmente equilibrado, e bastam estas características para desqualificá-lo para uma função onde o sujeito precisa de malandragem, habilidade conspiratória nos bastidores, discurso duplo, ética dupla, mentalidade imediatista, talento para impor a própria vontade dando murro na mesa, em vez de argumentando. Concordo: não é a cara de Parreira.

Felipão teria substituído Cafu, Ronaldo, Roberto Carlos, seus heróis do Penta? Duvido muito. Felipão é o tipo emocional, vê o time como uma “família”, e não iria desprestigiar os primogênitos que lhe deram fama. Parreira convocou a geração da Copa das Confederações (Cicinho, Robinho, Gilberto) mas não teve força política para impô-los. Talvez tenha sido vítima de excesso de cautela (um defeito seu), e pensou: “Pois é, quem me garante que os garotos não vão amarelar?” Optou pelos veteranos, e os veteranos esverdearam.

É fácil escalar onze jogadores. O que não é fácil é escalar onze empresas. Um jogador de Seleção (ainda mais a Brasileira!) é uma empresa bem grandinha. É a ponta de um iceberg formado por equipes de trabalho, assessores, empresários, publicitários, gerentes de Banco, empresas associadas em mil projetos beneficentes, de propaganda, educativos, sociais. Por trás de qualquer um dos nossos 23 craques existe, no Brasil e na Europa, um exército de centenas de sujeitos poderosos e influentes para quem o sucesso pessoal do seu sócio, cliente ou patrocinado é mais importante do que o do time em que ele joga. Se pensarmos que grande parte desses interesses tem sede na Europa, dá para entender melhor essa febre de recordes pessoais enquanto a Seleção Brasileira se arrasta em campo.

Toda a beleza do futebol está dentro das quatro linhas. O que existe em volta delas, principalmente numa Copa, é uma história de arrepiar os cabelos de brasileirinhos zé-ninguém como eu e você, caro leitor. É parecido com a história financeira da construção de Brasília. Com as quedas-de-braço diplomáticas que culminaram no Tratado de Versalhes. Com a partilha do Oriente Médio após a II Guerra Mundial. Briga de cachorro grande. A Copa de hoje é o banquete do Capitalismo Tele-Esportivo: patrocínios, direitos de transmissão, contratos de propaganda, expansão de mercados.. É o regabofe dos executivos, enquanto os ronaldos e ronaldinhos de periferia jogam a grande cartada dos seus parcos 15 anos de vida útil. Parreira? Coitado, o único erro dele foi ter aceitado, sabendo que o Brasil não era mais o franco-atirador de 1994, e sim um Titanic cheio de ouro, cercado por uma frota de navios-piratas.

1028) A palavra paradigma (2.7.2006)



Certas palavras têm uma história fácil de traçar. A palavra “maracutaia” era uma expressão antiga e obscura, usada na região de Garanhuns; mas pulou triunfante para as vitrines do Aurélio depois que Luiz Inácio Lula da Silva, candidato a presidente em 1989, usou-a numa entrevista. Como já havia um enorme desgaste (pelo uso freqüente) de termos como negociata, falcatrua, trambique, etc., o vernáculo acolheu de braços abertos a recém-chegada. E quem não se lembra do ex-sindicalista e ex-Ministro do Trabalho Rogério Magri, um Severino Cavalcanti com físico de Schwarzenegger? Um belo dia ele declarou que uma determinada Lei era “imexível”, o que lhe valeu injustas gozações por parte de algumas pessoas, como se a língua brasileira não fosse produto coletivo de gente com o mesmo nível cultural do hercúleo Ministro.

Passei batido e não registrei a data em que a palavra “paradigma” entrou no futebol brasileiro, mas não duvido que tenha sido na década de 1980, e lanço aqui meu palpite triplo sobre o seu inaugurador: Sebastião Lazaroni, Paulo Autuori ou Vanderlei Luxemburgo. Volta e meia lá vem um deles (ou seus seguidores estilísticos, como Oswaldo de Oliveira ou Levir Culpi): “Nosso time precisa mudar de paradigma, porque não está valorizando a posse de bola...” Modelos e atrizes também declaram, peremptórias: “Achei que era a hora de adotar outro paradigma, e pintei o cabelo”.

De minha parte, fui apresentado a este vocábulo no livro de Thomas S. Kuhn A estrutura das revoluções científicas (Ed. Perspectiva, SP, 1982), livro tão genérico que pode ser entendido até por um sujeito sem formação científica como eu. Para Kuhn, paradigma é um conjunto de noções consensualmente aceitas por uma comunidade científica. É a “verdade dos fatos” que vigora naquele momento específico, mas que pode ser substituída, se aparecer uma explicação melhor. Um paradigma geralmente é aceito porque ao surgir responde um número satisfatório de questões que estavam pendentes, e com isto atrai um número expressivo de seguidores. Por outro lado, esta nova situação gera novos problemas, que irão manter os cientistas ocupados pelos anos seguintes, e poderão ser (em tese) solucionados futuramente pelo surgimento de um novo paradigma, mais completo e mais satisfatório. Exemplos clássicos disto são, na astronomia, o paradigma Geocêntrico (o Sol gira em torno da Terra) que vigorou durante séculos, mas quanto mais as observações astronômicas evoluíam mais os cálculos “não batiam”, se ele fosse tomado como ponto de partida. Surgiu então, com Copérnico, o paradigma Heliocêntrico (a Terra gira em torno do Sol), e de um momento para outro todos os cálculos e todas as observações diretas se encaixaram às mil maravilhas.

Um paradigma é o chão onde os cientistas pisam; é a crença fundamental que faz sua atividade ter sentido. Para destruí-lo, é preciso substituí-lo por outro, para que a Ciência não venha a boiar no vácuo do Absurdo.

1027) Alô torcida brasileira (1.7.2006)



Meus informantes na Copa têm me repassado informações contraditórias. Todo jornalista tem suas “fontes”, pessoas que lhe dizem o que está acontecendo, e em cuja opinião, honestidade e discernimento o jornalista confia. Mas, o que acontece quando fontes igualmente confiáveis dão retratos antagônicos de uma situação?

Uma das minhas fontes é o jornalista Bronislaw Korchinski (nome fictício, porque não posso revelar sua verdadeira identidade). Me diz ele: “BT, você devia ter vindo para a Copa. A Alemanha é uma festa. Lembra daqueles velhos tempos dos Encontros da SBPC? Lembra do Festival de Inverno de Ouro Preto, ou do Festival de Verão de Areia? Lembra de Woodstock? Pois é algo parecido, só que em torno do futebol, e com três jogos por dia! Os jogos são de mais-ou-menos para medianos, mas isto é o que menos importa. A grande festa está nas arquibancadas. Gente fantasiada de viking, de Mickey, de totem tribal, de odalisca, de Carlitos, de fantasma... Confraternização étnica, torcidas adversárias vibrando juntas, sem briga, sem agressões. Terminado o jogo, vencedores e vencidos vão beber juntos e cantar músicas dos Beatles em inglês estropiado. Ah, se o futebol no Brasil fosse assim! Sem pancadarias, sem torcidas organizadas, sem bombas, sem assaltos, sem gangs de batedores de carteira e de puxadores de carro... A Copa está me fazendo amar de novo o futebol!”

Grande Bronislaw. Quando li seu email, comecei a procurar o telefone de alguma empresa aérea para ver se ainda tinha passagem para Dortmund ou Hamburgo. Mas na mesma hora apareceu outro email, de outra fonte, a quem chamaremos de Lazslo Dubcek. Diz ele:

“BT, estou enojado. Uma Copa falsificada, e o mais falsificado é a torcida. A coisa mais rara aqui é você encontrar quem saiba o que é um escanteio. Não é uma Copa para torcedores, é uma Copa para turistas endinheirados, mocréias e rapazes alegres que pintam a cara, botam uma peruca em cores berrantes e vão rebolar na arquibancada, e o jogo que se dane. Arrisco-me a dizer que 70% dos que estão aqui nunca tinham sentado antes numa arquibancada de futebol. A melhor prova disso é uma das frases que mais ouvi até agora: 'Eu não sabia que futebol era tão bom! Quando voltar ao Brasil irei ao estádio todo domingo!' Coitados, não sabem o que os espera.

“Mas o pior,” prossegue Lazslo, “é você constatar que quase todos estão aqui através de um trem-da-alegria qualquer. São convidados de Bancos, de empresas multinacionais, de governos locais, de assembléias, de montadoras de carros... Vieram para a Alemanha através de algum tipo de jabá. Uns ganharam boca-livre 24 horas por dia; outros ganharam passagem e hospedagem, ou passagem só de ida (e pela Varig!), mas eu sinceramente não sei dizer quem exprime mais o Brasil de hoje, se são as gangs do Pacaembu ou os vôos-da-alegria da Alemanha.” Como eu também não sei, repasso o problema para os caros leitores.

1026) As entranhas do futebol (30.6.2006)



A revista Caros Amigos de junho traz uma reportagem de capa com Juca Kfouri, jornalista esportivo de São Paulo que, segundo ele próprio, sofre dezenas de processos civis e criminais movidos por pessoas que vão desde Ricardo Teixeira, presidente da CBF, até Marcelinho Carioca, o folclórico craque ex-Corinthians, atualmente no Vasco. Li porque gosto da revista e do entrevistado, mas as matérias de Juca Kfouri sempre me deixam meio deprimido. É que no futebol o que me seduz é a festa das torcidas, a dramaticidade das emoções contraditórias, a beleza dos gols e das jogadas de gênio. Ou seja: a arte e o drama do jogo de bola. Mas Juca Kfouri (que aprecia isto tudo tanto quanto eu) vai mais além. Ele discute a política do futebol.

É como você ter uma Ferrari maravilhosa, que passa na rua, escarlate e longilínea, arrancando fiu-fius da galera, aí você pára e abre o capô, para mostrar como ela funciona. Revela-se, aí, o lado sujo e sórdido do automobilismo: engrenagens rudes e toscas, feitas de um ferro abrutalhado, “meladas de óleo”, tresandando um insuportável fedor de gasolina. A magia e a arte vão para o espaço: estamos diante da dura realidade de como os carros se movem.

Assim é o futebol. Briga de cachorro grande, e a cachorrada não é pouca. Foi-se o tempo em que Nilton Santos, já campeão do mundo pelo Brasil, pegava o ônibus para ir treinar no campo do Botafogo. Vejam bem: não morro de saudades desse tempo. Admiro a simplicidade da geração de Nilton Santos, mas imagino que todos os craques daquela geração gostariam de ter ganho salários mais justos. O problema com o Brasil é a nossa mania de 8-ou-80. O que se vê hoje em dia é uma indústria gigantesca em torno dos nossos boleiros, que são jovens, em geral são pobres, e de repente se vêem diante de verdadeiras fortunas de um dinheiro que não conseguem dimensionar. E o jovem craque, das duas uma: ou é farrista e torra o dinheiro todo em uísque, carro-do-ano e rapariga, ou então é um rapaz honesto, arrimo de família, mas a pressão em seus ombros não é menor, porque tem que dar casa para os pais, casa para os irmãos, pagar os estudos dos sobrinhos, pagar plano médico para algumas dezenas de parentes, montar escolinha para tirar da rua as crianças de sua cidade, e por aí vai.

As seduções são muitas, e o dinheiro que rola é um Amazonas. Sou um crítico feroz dos salários extravagantes do nosso futebol. O Flamengo pagar 80 mil mensais para Obina? Tenha santa paciência. Mas pior ainda é a Máfia dos empresários, dos cartolas, dos dirigentes que levam na mão grande o dinheiro das bilheterias, das negociações escusas de contratos, patrocínios e vendas de jogadores. Juca Kfouri cita o caso de um jogador que ele criticou por se fazer acompanhar de um empresário pouco escrupuloso. O atleta aceitou a crítica e disse: “Eu sei, Juca, mas pra negociar com bandido eu preciso de um que seja tão bandido quanto eles”. Brazil-ziu-ziu!

1025) The book is on the table (29.6.2006)



Livro traduzido é como filme dublado. O Mercado e a Lei os consideram como “a mesma obra” em relação ao original, mas é uma mesma obra em que algo de essencial foi substituído. Mesmo que seja com o consentimento do autor, como em geral é, mesmo que tenha sua aprovação ou até sua participação no processo, é outra coisa.

Quando lemos “Guerra e Paz” em português temos a sensação da presença da Rússia através da história, dos personagens, dos ambientes, mas vemos tudo através do filtro da língua portuguesa-brasileira, que tem sua própria sonoridade, seu próprio ritmo, suas próprias ramificações de significado a partir de cada palavra. Na tradução de uma obra assim, o melhor é que a língua torne-se transparente, invisível, chame o menos possível a atenção para sua brasileiridade, para que o leitor possa ter a ilusão tácita de que está lendo a obra como ela foi escrita em russo. Até que ponto isto é possível? Lemos: “O enorme exército marchava através da estepe”. Tudo OK. Mas a palavra russa para “estepe” deve ser tão intraduzível quanto a palavra “caatinga”, em termos de ressonância social, psicológica, afetiva.

Dizem que Ezra Pound aprendeu português só para ler “Os Lusíadas” no original. Eu já tive vontade de aprender alemão só para ler Brecht e Kafka, dois dos meus autores preferidos, e que, a rigor, nunca li. Não desmereço o ofício dos tradutores. É difícil, ingrato e mal pago. É como ser goleiro: um único erro pode apagar todos os seus acertos. Você trabalha como um galeota, rema dezesseis horas por dia, acorrentado ao convés, e quem chega ao porto é o Autor, para ser recebido com festas. E se ele chegar atrasado, ou em más condições, a culpa é sua.

The book is on the table. O livro é o dicionário Estrangeirês-Português, que os leigos imaginam que é tudo que é necessário para transpor na ordem certa as palavras escritas por Sófocles, Dostoiévski, Confúcio ou Schopenhauer. O problema é que a cada linha de texto descobrimos sempre que não é uma simples questão de saber qual é a palavra nossa que equivale a cada palavra deles. Trata-se de reproduzir nuances de sentimento, modismos de fala, hábitos sociais... Alguém pode me dizer como um inglês traduziria “cafuné” ou um suíço traduziria “pirangueiro”?

A coisa mais chata para um tradutor não é quando ele não acha uma palavra no dicionário. É quando ele acha mas a única maneira de traduzi-la é deixá-la no original e recorrer à famosa “nota ao pé da página”: “Espécie de arbusto da África Setentrional, cujas folhas têm propriedades medicinais...” Não existe aqui, portanto não temos palavra equivalente, e é preciso substituir por uma descrição. O que não se traduz, descreve-se. O mais engraçado é que o tradutor tem uma sensação de derrota quando oferece tais explicações ao leitor; e o leitor (algum leitor) dá um sorrisinho de mofa, pensando com seus botões: “Arrá! Não soube traduzir!” Não, amigos, é pior do que ser goleiro.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

1024) Estética e Matemática (28.6.2006)



Podemos distinguir na Matemática o “processo dinâmico” em que a demonstração de um teorema transcorre ao longo do Tempo, e o “resultado estático” a que ela chega, quando bem sucedida. No primeiro caso, acompanhamos a evolução do raciocínio do matemático como acompanhamos uma história contada por um escritor. Mistérios e problemas vão surgindo e vão sendo satisfatoriamente explicados e resolvidos, até um desfecho final que “amarra” harmoniosamente todos os elementos que nos foram apresentados. Em casos assim, o pensamento matemático compartilha alguns elementos estéticos que encontramos no teatro ou no romance. Por outro lado, o resultado de tais raciocínios resulta muitas vezes numa fórmula abstrata, ou num diagrama geométrico, que ao serem vistos produzem um impacto estético imediato em que os contempla. Neste último caso, tais diagramas já existem num terreno em comum com o das Artes Visuais.

A Geometria, sendo a tradução visual da Matemática, pode nos dar uma satisfação estética parecida com a que nos dão as Artes Plásticas. Não sei se no computador de vocês existem esses protetores-de-tela, ou “screen savers”, em que formas geométricas coloridas vão se desfazendo e recombinando o tempo todo. Quando eu descobri isso quase morro de fome, porque ligava o computador e não conseguia mais trabalhar. Ouso mesmo dizer que o protetor-de-tela (com suas fractais, seus vitrais, seus balés abstracionistas) está se tornando uma Arte Decorativa tão importante para nossa época quanto o foi a arte do Mosaico ou a arte do Bordado em outras épocas. Só neste pequenino trecho da Teoria Estética, caros leitores, tem material bastante para várias teses de Mestrado. Alguém se habilita?

A Geometria expressa relações através de linhas, planos, formas, etc. Essas relações podem ter elementos de Harmonia, Simetria, etc. que encontramos expressos nas Artes Visuais. Alguém dirá que as Artes Visuais são artes porque expressam o modo humano de ver as coisas, ao passo que a Geometria, sendo uma Ciência (ou mais precisamente: uma Linguagem que se aplica às Ciências) é necessariamente impessoal, abstrata, não-humana. Bem, certas áreas da arte moderna são tão abstratas quanto um livro de Euclides. Se você consegue extrair satisfação estética de um quadro de Vasarely ou Mondrian, por que não faria o mesmo folheando um livro sobre Curvas Fractais?

Alguns desses grupos de artistas (Neo-Plasticistas, Abstracionismo Geométrico, ou sei lá como se chamam) têm sido criticados porque seu apego ao jogo rígido de formas estaria desumanizando a Arte. Do lado de cá, me parece que eles estão humanizando a Ciência: transpondo o mundo conceitual e árido das formas para um campo em que elas se contaminam da aura estética das obras (de outros estilos) que as cercam, nos museus, nas galerias, e provam que as criações do intelecto puro também podem ser humanas, e belas.

1023) Brasil x Gana (27.6.2006)



Escrevo estas linhas na noite do domingo, dia 25. Até agora, classificaram-se quatro das oito seleções que irão disputar as quartas-de-final da Copa. Ninguém brilhou. A Argentina, que tinha feito uma partida quase perfeita nos 6x0 sobre Sérvia-Montenegro, jogou mediocremente contra a Holanda, e agora contra o México. A Inglaterra marcou 1x0 no Equador no segundo tempo e levou dois cartões amarelos de tanta cera que fez. O time da Alemanha é uma daquelas divisões Panzer que eles mandam pra Copa de 4 em 4 anos: atropela todo mundo e vai em frente, agora empurrada pela torcida. Portugal bateu a Holanda por 1x0 num jogo emocionante mas feio, cheio de agressões, onde venceu o menos atrapalhado.

Brasil x Gana! Pense num jogo complicado. Já vi seleções olímpicas do Brasil perderem feio para Nigéria, para Camarões. Os times africanos têm tudo que nós temos de bom: a ginga, o drible, a agilidade, a flexibilidade, o improviso, o senso lúdico, a intimidade com a bola resultante de ter jogado com bola de meia, de plástico, de papel, de palha, de pano. Individualmente, os jogadores são espertos, quase todos jogam em times europeus. O que lhes falta é estrutura, tecnologia de treinamento, formação técnica e tática desde a base. O problema das seleções africanas não é dentro de campo, é fora; os times são bons, mas as estruturas... Dá pra tirar pelas nossas, pelas dos clubes profissionais do Brasil inteiro, que em geral são um horror.

Um jogador ganense disse: “Admiramos o futebol brasileiro, mas não temos medo. Muita coisa que o Brasil tem, deve a nós”. E está certo; deve também a Angola, a Moçambique, ao Senegal. Pode ser um jogo excelente, caso o Brasil faça uma escalação parecida com a do último jogo, e caso os ganenses joguem um futebol aberto, ofensivo (o que é provável) e sem violência (o que é difícil, porque batem que dá gosto). Nesta Copa, ninguém sentiu muita falta de Camarões, Nigéria ou Senegal, que já fizeram participações brilhantes em outras vezes. Gana e Costa do Marfim foram boas surpresas: dois times rápidos, habilidosos, com muita força física, talento, objetividade.

Tudo indica um jogo mais bonito e mais emocionante do que os que o Brasil fez até agora. Já enfrentamos o xadrez retrancado da Croácia, a vitalidade taurina dos australianos, a agitação entomológica dos japoneses. Vamos agora ter um teste atraente e difícil: uma escola de futebol semelhante à nossa, uma espécie de versão-beta de nossa própria Seleção, talvez sem os mesmos talentos individuais, mas com a capacidade de, num dia bom, numa daquelas tardes em que tudo dá certo, virar a mesa das expectativas e fazer História.

Se perdermos, vou ficar torcendo por uma final Portugal x Gana. De um lado, a fidalguia ibérico-católica, herdeira de Dom Sebastião e dos navegadores de Sagres. Do outro, a sabedoria milenar negro-tapuia, os jaguares ferozes do deserto. Seria a única maneira de termos o Brasil na final da Copa.

1022) O personagem sem dimensões (25.6.2006)




(ilustração: Diogo Salles)

Quando começa uma novela na TV, eu dou uma espiada no primeiro capítulo para reencontrá-los. E de vez em quando eles voltam. 

O Milionário de Bom Coração. A Jovenzinha Mimada. A Vizinha Fofoqueira. O Gigolô Sem Escrúpulos. O Casal Maduro em Crise. O Ex-Delinqüente Em Busca de Uma Chance. O Burocrata Inflexível. O Biscateiro Boa-Praça. E assim por diante. 

É típico da cultura-de-massas que certos personagens tenham uma dimensão apenas, uma característica, uma fórmula simples que os define logo nas primeiras cenas em que aparecem, e que continuará a defini-los até o final.

Um sujeito que é descrito logo no começo como o Conquistador Inveterado vai ter daí em diante a obrigação de olhar as pernas de toda mulher que passa, fazer fi-fiu, pedir telefone do cachorrinho, sussurrar no cangote da empregada. 

Não haverá nenhuma cena em que ele não seja obrigado a repetir esse conjunto de gestos, para que o espectador não esqueça: está diante de um Conquistador Inveterado. Ele pode ser bombeiro, advogado, surfista ou jogador de futebol, e sua profissão ficará ausente ou subentendida em muitas cenas; mas não o fato de que sua função na história é ser um Conquistador Inveterado. Ou um Marido Banana. Ou um Velho Ranzinza.

Existem dois tipos de espectadores de novelas: o que vê todo dia, e o que vê de vez em quando. Este último costuma perder de vista os personagens, que sempre são muitos, e é bem possível que com a novela há dois ou três meses no ar ele ainda não reconheça todo mundo. 

Isto (creio eu) explica o fato de que as pessoas de uma mesma família se chamem tanto pelos nomes: “Mas Ludmilla, vocês não vão marcar esse casamento nunca?” “Ora, Vanessa, estou esperando Jaime se formar”. É preciso martelar na memória do público distraído que esta aqui é Vanessa, a outra é Ludmila. 

O mesmo se aplica às características psicológicas de um personagem. Se Fulana de Tal está caracterizada como sendo a Solteirona Azeda e Repressora, não faz muito sentido mostrá-la numa cena doce, encorajando a sobrinha a namorar com o padeiro. Porque “contradiz o personagem”.

Personagens podem ter mais de uma dimensão. Fulano é um Burocrata Inflexível, que só pensa no trabalho? Mas ele pode ser também o único sujeito ético da empresa onde trabalha, qualidade positiva que o torna um personagem mais complexo. 

E pode ser além disso um sujeito que tem um hobby meio juvenil, o que o torna simpático por outro lado. E pode ser um cara apaixonado em vão por uma mulher, o que lhe dá uma aura de romantismo e sofrimento. Nada disto contradiz sua “definição”. 

São características que apontam em direções diferentes. Isto enriquece o personagem, porque sabemos intuitivamente que as pessoas de verdade são assim. Mas sutilezas assim só podem ser percebidas e assimiladas por quem se aprofunda na obra; no caso da novela, por quem vê todo dia. Será o medo de perder o público flutuante que impede a novela de ir mais longe?








1021) Matemática e Estética (24.6.2006)



A Ed. José Olympio relançou a Iniciação à Estética de Ariano Suassuna, um volume despretensioso e utilíssimo em que o autor “dá uma geral” nas principais teorias da Estética, de Platão e Aristóteles até Hegel e Bergson. Mesmo lidando com uma matéria tão rarefeita, Suassuna evita o jargão e mantém o discurso num tal nível de acessibilidade que até eu, que tenho uma formação filosófica da ordem do zero-vírgula, fico com a sensação de ter entendido uma porção de coisas. Pois já dizia Ortega y Gasset: “A clareza é a cortesia do filósofo”.

Alguém dotado da mesma clareza devia escrever um livro intitulado “Iniciação à Estética da Ciência”. Discutem-se os aspectos estéticos das obras de Arte (as quais, é claro, têm outros aspectos além deste: aspecto social, político, comercial, etc.) e ninguém fala no lado estético da Ciência no que tem de mais criativo. O excelente livro A Experiência Matemática de Philip J. Davis e Reuben Hersh tem um capítulo intitulado “A componente estética”, que abre com uma admissão explícita, por parte de Aristóteles, de que todos os elementos que caracterizam o Belo na Arte também estão presentes nas ciências matemáticas. Reuben e Hersh lamentam a pouca discussão formal destes aspectos, embora eles façam parte da atividade teórica e prática dos matemáticos, e os comparam aos móveis coloniais norte-americanos: não existe nenhuma codificação teórica do seu estilo, não obstante eles seguiam uma tradição estética passada de pessoa para pessoa.

Dizem eles: “Têm sido feitas tentativas para decompor a estética matemática em suas componentes – alternâncias de tensão e repouso, expectativas alcançadas, a surpresa de perceber relações insuspeitadas e unidades, prazer visual sensual, prazer na justaposição do simples e do complexo, da liberdade e das existências, e, naturalmente, nos elementos familiares da arte, harmonia, equilíbrio, contraste, etc.” Pode-se distinguir a existência de aspectos estáticos e dinâmicos na Matemática. Quando Reuben & Hersh usam termos como “expectativa”, “surpresa”, “alternâncias de tensão e repouso”, claramente estão considerando a Matemática como um processo que se desenrola no Tempo (como seriam na arte o teatro ou a música) e não simplesmente um objeto estático que pode fornecer uma impressão instantânea (como uma escultura ou uma pintura), ainda que um exame mais prolongado possa revelar novos detalhes ou novas relações.

Não podemos mostrar um segundo de uma sinfonia ou de uma canção, para dar uma idéia do que é a obra. A música ocorre no Tempo, e é impossível apreendê-la num relance. Por outro lado, uma pintura possui uma “totalidade instantânea”. Podemos apreender num vislumbre o conjunto da obra, mesmo que seja o teto da Capela Sistina. Eu imagino que certas fórmulas matemáticas, como E=mc2, têm essa beleza instantânea, mesmo que para apreender essa beleza exista um processo subentendido, processo que precisa ser esmiuçado ao longo do tempo.