Livro traduzido é como filme dublado. O Mercado e a Lei os consideram como “a mesma obra” em relação ao original, mas é uma mesma obra em que algo de essencial foi substituído. Mesmo que seja com o consentimento do autor, como em geral é, mesmo que tenha sua aprovação ou até sua participação no processo, é outra coisa.
Quando lemos “Guerra e Paz” em português temos a sensação da presença da Rússia através da história, dos personagens, dos ambientes, mas vemos tudo através do filtro da língua portuguesa-brasileira, que tem sua própria sonoridade, seu próprio ritmo, suas próprias ramificações de significado a partir de cada palavra. Na tradução de uma obra assim, o melhor é que a língua torne-se transparente, invisível, chame o menos possível a atenção para sua brasileiridade, para que o leitor possa ter a ilusão tácita de que está lendo a obra como ela foi escrita em russo. Até que ponto isto é possível? Lemos: “O enorme exército marchava através da estepe”. Tudo OK. Mas a palavra russa para “estepe” deve ser tão intraduzível quanto a palavra “caatinga”, em termos de ressonância social, psicológica, afetiva.
Dizem que Ezra Pound aprendeu português só para ler “Os Lusíadas” no original. Eu já tive vontade de aprender alemão só para ler Brecht e Kafka, dois dos meus autores preferidos, e que, a rigor, nunca li. Não desmereço o ofício dos tradutores. É difícil, ingrato e mal pago. É como ser goleiro: um único erro pode apagar todos os seus acertos. Você trabalha como um galeota, rema dezesseis horas por dia, acorrentado ao convés, e quem chega ao porto é o Autor, para ser recebido com festas. E se ele chegar atrasado, ou em más condições, a culpa é sua.
The book is on the table. O livro é o dicionário Estrangeirês-Português, que os leigos imaginam que é tudo que é necessário para transpor na ordem certa as palavras escritas por Sófocles, Dostoiévski, Confúcio ou Schopenhauer. O problema é que a cada linha de texto descobrimos sempre que não é uma simples questão de saber qual é a palavra nossa que equivale a cada palavra deles. Trata-se de reproduzir nuances de sentimento, modismos de fala, hábitos sociais... Alguém pode me dizer como um inglês traduziria “cafuné” ou um suíço traduziria “pirangueiro”?
A coisa mais chata para um tradutor não é quando ele não acha uma palavra no dicionário. É quando ele acha mas a única maneira de traduzi-la é deixá-la no original e recorrer à famosa “nota ao pé da página”: “Espécie de arbusto da África Setentrional, cujas folhas têm propriedades medicinais...” Não existe aqui, portanto não temos palavra equivalente, e é preciso substituir por uma descrição. O que não se traduz, descreve-se. O mais engraçado é que o tradutor tem uma sensação de derrota quando oferece tais explicações ao leitor; e o leitor (algum leitor) dá um sorrisinho de mofa, pensando com seus botões: “Arrá! Não soube traduzir!” Não, amigos, é pior do que ser goleiro.
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