terça-feira, 27 de janeiro de 2015

3721) "O Pedestre" (27.1.2015)



Reza a lenda que alguns anos atrás Bob Dylan foi fazer um show numa cidade tamanho médio qualquer. Chegou na véspera, instalou-se no hotel, e ao anoitecer saiu sozinho para dar uma volta no quarteirão. 

Era um desses bairros pacatos, casinhas simples, com gramados sem cercas etc. e tal.  Ele saiu pelas calçadas, gozando o sabor e o prazer do anonimato (coisa que não é pra qualquer um), até que um carro da polícia parou e os agentes desceram empunhando lanternas e armas. Mandaram que erguesse os braços.  Alguém tinha visto um homem desconhecido, de casaco e chapéu, rondando as casas; calafrios de alarma percorreram aquelas vulneráveis medulas suburbanas.  

A rádio patrulha foi chamada, e não adiantou dizer “Sou Bob Dylan, o roqueiro.”  E daí?  Os policiais eram jovens, nunca tinham ouvido falar.  Ele levou o resto daquela noite para desmanchar o mal entendido.

S. J. Perelman, escritor e humorista norte-americano, trabalhou em Hollywood.  Numa entrevista à Paris Review, falou desse período, quando o repórter lhe perguntou sobre William Faulkner, que também mamou nas tetas do Bezerro de Ouro, por mais equívoca que seja esta metáfora. 

Perelman disse: “Às vezes, num domingo de manhã, ele passava caminhando em frente à casa em que eu morei, em Beverly Hills. Eu reparava nele somente porque o simples fato de sair andando, naquela área, o caracterizava como um excêntrico.  E ele acabou se metendo em complicações.  Um carro da patrulha o deteve uma vez e o fez passar um mau pedaço. A polícia estava convencida de que ele era olheiro de alguma quadrilha que roubava jóias, e estava sondando as residências elegantes.”

Um dos primeiros contos de Ray Bradbury que li foi “O Pedestre” (1951), incluído no livro Os Frutos Dourados do Sol. Nele, um homem sai caminhando à noitinha, no ano de 2053, por uma cidade onde todo mundo está trancado em casa, vendo TV. Estão desertas as calçadas. Um carro da polícia o aborda.  Ele diz que não fez nada demais, está apenas caminhando.  A polícia ordena que ele entre, e o leva consigo. “Para onde?”, pergunta ele. E a resposta: “Para o Centro Psiquiátrico de Pesquisa de Tendências Regressivas”.

O que é a ficção científica?  É a literatura que prevê o futuro?  Não.  É a literatura que olha o presente, vê o presente em movimento, vê o presente como uma forma que se avoluma, cresce, toma conta do mundo.  Presente e futuro são pontos diferentes de uma única curva. A beleza da FC é quando ela, usando apenas dois pontos, nos faz sentir a força da curva, a grandeza da curva, a ameaça terrível guardada em cada curva que se ergue à nossa frente bela como um tsunami.




domingo, 25 de janeiro de 2015

3720) A primeira geladeira (25.1.2015)



A primeira geladeira lá de casa foi comprada quando eu teria uns sete anos; lembro a época porque foi quando a gente morava na rua Miguel Couto, em frente aos antigos armazéns de algodão de Araújo Rique, onde depois funcionou a Cavesa. (Nem sei o que existe ali agora.)  

Depois de um período de vacas magras, meu pai começou a se equilibrar financeiramente; acho que foi quando começou a trabalhar como secretário na Federação das Indústrias.  A geladeira foi anunciada aos quatro ventos, aguardada com avidez, festejada com algazarra quando foi desembarcada da camionete e carregada pelos brucutus para a sala, com todos nós pulando em volta.

A primeira epifania foi quando os carregadores se retiraram e minha mãe plugou a tomada na parede. Toquei aquela superfície externa e a senti vibrando, zumbindo, ronronando como um bicho vivo.  

A primeira decepção foi quando a abri e constatei que estava vazia.  Minha expectativa era abri-la e ver lá dentro tudo que eu via nas fotografias: bandejas de maçãs, pernis, tortas, pudins, saladas de frutas, e refrigerantes, muitos refrigerantes.  Minha mãe explicou que a loja vendia só a geladeira, e como sou um cara prático aceitei o argumento, mas, toda vez que eu abria aquela porta e olhava, ela me parecia uma boca sem dentes.

Tinham nos prometido que nunca mais teríamos que comprar picolé ao picolezeiro que passava na calçada, porque fabricaríamos nossos próprios picolés.  Nova decepção quando vi minha mãe preparando refresco de laranja e derramando naquelas caçambas de alumínio, porque eu figurava o picolé completo, comprido, enrolado num papel úmido e espetado num palito – e em vez disso o que era preparado diante dos meus olhos eram aqueles cubos tortos e pálidos, que pareciam com icterícia.  Sem falar na demora, que fazia Dona Cleuza ralhar: “Se você enfiar o dedo mais uma vez nessa caçamba eu tiro-lhe o couro com uma surra de chicote!” 


A luz interna era outro mistério, porque sempre que abríamos a porta ela estava acesa.  Dilema filosófico: a luz permanecia acesa quando a geladeira estava fechada?  Precisei de algumas dezenas de abridas-e-fechadas-de-porta (clandestinas, pra não ir dormir com o couro quente) para perceber o artifício do botãozinho interno que a porta pressionava ao se fechar.  

Mas os picolés eram picolés mesmo, daqueles de doer no dente quando mastigados.  E acima de tudo tínhamos aquela sensação orgulhosa de estar adentrando a Modernidade, de respirar o ar condicionado da civilização. Quando Brasília começou a ser construída, aquele projeto cibernético e ciência-ficcional me pareceu uma mera expansão da nossa geladeira, um eco distante da chegada triunfal do nosso Futuro.




sábado, 24 de janeiro de 2015

3719) Sim, General (24.1.2015)


“Se tem uma coisa que eu não suporto, seja em quartel, seja em campo de batalha, é aquele sujeito da mentalidade que eu chamo Sim General.  É o cara que você diz: “Vá lá no meu alojamento e traga meu sapato marrom com cadarço amarelo”, ele pergunta: “O esquerdo ou o direito, General?”.  Não adianta querer dar um tiro nele. Não resolve.  Diga: “Os dois” e vá cuidar da vida. O mundo onde vive esse pessoal todo cheio de pruridos de especificidade é um mundo de infinitas pulgas, infinitos carrapichos.  Um mundo de muito cabelo branco e pouco sossego.

“No começo da guerra, quando estávamos passando-no-rodo as democracias vizinhas, tudo eram flores, tudo cheirava a fumaça comemorativa. Mas agora não.  Cada telegrama que é rasgado, aberto, erguido e lido por doze pares de olhos traz uma notícia pior que a anterior. O inimigo fecha o cerco, com tropas que pontilham a silhueta da colina como um mostrador de relógio.

“Nem sei se estou operando dentro das minhas prerrogativas militares e jurídicas, mas espero que sim, porque é apenas o mais desinteressado dos ideais que me move.  Mas tomo a iniciativa de denunciar: Quem nos destinou a nós, para o sacrifício?  Foram os políticos, meros civis, ainda menos preparados do que nós militares, mesmo admitindo que a maioria de nós passou de ano em ano pelo-pau-do-canto. Graças ao protecionismo deste ou daquele grupo, passamos, estamos aqui, e de repente querem que justamente nós ganhemos a guerra que eles declararam e ficaram assoprando as unhas nos seus gabinetes.  Me parece uma grande injustiça contra nossa geração. Na verdade nunca quisemos invadir ninguém, bombardear ninguém, dominar o planeta. Queríamos apenas um emprego com plano de carreira bem estabelecido e aumentos acima da inflação.

“E eis-me cercados de tecnocratas. Digo: “Bem, então amanhã vamos desembarcar na praia deles.” E os sim-general querem saber detalhes, miudezas: a que horas, com quantos homens, por que lado...  Eu os despacho da tenda aos pontapés.  Sou um general! Os técnicos são eles!  Eles que decidam essas picuinhas!  Já não basta a responsabilidade nossa?  Quem é que presta contas ao Estado Maior, ao Chefe Supremo das Forças Armadas?  (Que de quatro em quatro anos periga ser uma mulher ou um negro, ainda por cima!) Somos nós.  Não me perguntem detalhes: hora do desembarque, alvos da artilharia, cobertura aérea.. São minúcias técnicas, não venham a mim, perguntem aos técnicos. Eu é que corro o risco maior de todos, o de entrar para a História como “o General que perdeu uma batalha praticamente ganha”. E tudo que eu queria era um pijama e meia dúzia de medalhas.”




sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

3718) Humberto Teixeira 100 anos (23.1.2015)



No dia 5 de janeiro passado foi comemorado o centenário de nascimento de Humberto Teixeira (1915-1979), o primeiro grande parceiro de Luiz Gonzaga, a quem coube criar o baião junto com o sanfoneiro do Exu.  

Humberto foi uma figura muito diferente de Gonzaga.  Trouxe para o baião o lado literário, urbano e culto, enquanto Gonzaga forneceu o talento telúrico. 

Nascido no Iguatu (CE), teve formação musical desde a infância, tocando flauta e bandolim.  

Ao contrário do que se imagina, não era apenas “o letrista de Gonzagão”. Também compunha melodias, e sem dúvida há muitas parcerias dos dois em que ele fez o principal da letra e da música, e Gonzaga contribuiu com arranjo, floreios, refrão, etc.  Em qualquer parceria musical existem diferentes proporções da participação de cada um, não é aquela coisa mecânica de “A faz a letra e B faz a música”.

Estudando em Fortaleza, Humberto participou de grupos musicais e chegou até a acompanhar filmes mudos ao vivo, como se fazia na época.  

Já no Rio, largou estudos de medicina e formou-se em Direito. Foi vendedor de óculos rayban, foi agente de restaurante, foi telefonista.  Enquanto isso, compunha por conta própria. 

Já tinha mais de 100 músicas editadas quando, através do seu cunhado Lauro Maia (também cearense e compositor), conheceu Gonzaga; a história da criação e do sucesso do baião já é conhecida de todos.

Humberto queixava-se da historiografia da MPB, que, passava direto das canções românticas dos anos 1940 para a Bossa Nova dos anos 1950 sem mencionar que nesse intervalo houve dez anos em que só tocava baião no Brasil. 

Foi deputado federal pelo Ceará, mas ele mesmo dizia: “Política é um negócio que você tem que usar de muitas éticas, e a minha ética é uma só”.  Trabalhou muito pela implantação dos direitos autorais e pela divulgação da música brasileira no exterior, criando caravanas que percorreram muitos países. 

A parceria com Gonzaga foi interrompida porque naquele tempo (vejam só) era proibido registrar músicas de parceiros que pertencessem a entidades arrecadadoras diferentes. Quando Gonzaga foi para a SBACEM, Humberto decidiu permanecer fiel à UBC e a dupla se desfez. 

Ainda assim, não saíram perdendo: Gonzaga engatou a parceria com Zédantas, e Humberto passou a assinar sozinho suas músicas, a começar pelo baião “Kalu”, gravado por Dalva de Oliveira, Yves Montand, Edith Piaf e mais umas 60 gravações mundo afora.  

Vale a pena procurar o filme O Homem Que Engarrafava Nuvens, de Lírio Ferreira e o livro Humberto Teixeira, voz e pensamento (Banco do Nordeste, Fortaleza, 2006) para conhecer melhor esse poeta que fez História.









quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

3717) A filosofia num gesto (22.1.2015)




(ilustração: Saul Steinberg)

“Quem quiser que fale em Isaque Nilton ou em Arquimedes, tá ligado? Pra mim o grande gênio da humanidade é o caba que sabe fazer uma coisa completa. O ruim é explicar, prum caba que não sabe, o que é uma coisa completa. Eu tive um professor, minto, uma professora, que falou uma vez sobre a importância da filosofia. Ela disse que a importância da filosofia era explicar cada coisa de uma maneira que nunca mais coubesse outra explicação. Aquilo bateu.

“Passou-se.  Anos depois estou eu na Europa, bolsista com bolsa atrasada, pagando aquele mico de pedir pra colega europeu pra ir jantar na casa deles.  Europeu é um povo travadão.  Todo europeu fala com a gente por trás duma parede de vidro à prova de bala. Se você diz que tá sem jantar há três dias ele subentende logo que é desde Cristóvão Colombo, manja como é? Aí entorta a boca e diz na língua dele: “Então bora lá”. Aí bota um prato só pra você e fica sentado ali, fumando e olhando como é que um brasileiro come, tá ligado?

“Por isso eu não esqueço minha lição de filosofia. Um nego véio que era porteiro do prédio da tal Faculdade. Era um cara de cabelo meio branco, de um daquele países subdesenvolvidos da África, um cara legal.  Quando rolou essa situação ele me levou lá no quartinho dele e providenciou uma macarronada.  Acendeu uma estaca do tamanho do meu braço e ficou baforando enquanto escorria o macarrão.  Ralou um queijo gelado, duro que só tijolo, deu uns sopapos no fundo dum ketchup do tempo de Colombo, sentou na mesa comigo e a gente começou a comer.

“Meu irmão, eu percebi, eu fiquei olhando o jeito como o cara cravava o garfo no macarrão, como ele erguia aquela moita enorme de macarrão, e de baixo dela subia aquela lufada de fumaça, e ele parava o braço com o garfo erguido, deixava aquilo se dissipar, aí abaixava a garfada de macarrão de volta no prato, largava ela ali, cravava outra garfada noutro ponto, voltava a erguê-la suspensa, e liberava outra nuvem de fumaça, esfriando o interior daquela espécie de turfa. 

“E nesse instante, véio, foi muito, muito maneiro! Eu percebi que um cara pode ser negão e proleta, outro pode ser doidão e drogadaço, outro retardado e bugado de nascença, mas esse cara pode saber o que está fazendo, e fazer com arte.  Só de olhar o cara fazendo aquilo eu entendi a natureza da filosofia e isso redefiniu minha vida.  Parei de pensar em tudo e comecei a pensar somente na coisa de cada instante, aprendi a deixar o mundo lá fora. Não sei se foi o tamãe da fome, mas a filosofia desembarcou em mim naquela hora.  Larguei o curso naquela noite.  Minto: meu curso aconteceu naquela noite. O resto foi aeroporto e correr pro abraço.”





quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

3716) As Duas Éticas (21.1.2015)



(manuscrito de Max Weber)

Entre tantas discussões sobre fatos recentes, encontrei neste blog (http://tinyurl.com/mhqodkc) uma menção muito útil a dois conceitos de ética propostos por Max Weber, um velho conhecido dos meus tempos de Ciências Sociais na universidade (curso que nunca concluí: falaram mais alto o cinema, a cantoria de viola e a boemia). 

Weber distinguia dois tipos de ética, que ele chamava de “Ética da Convicção” e “Ética da Responsabilidade”. 

Na Ética da Convicção, o indivíduo se disciplina a agir de acordo com suas convicções, não importa quais as consequências. Suas convicções (ou princípios) são o que ele tem de mais importante, aquilo que o define, e é preciso sempre agir de forma coerente com eles. 

Os humoristas do Charlie Hebdo, por exemplo, comportavam-se dessa forma, mesmo sabendo que estavam há tempos ameaçados de morte.  Não transigiam.  Essa ética comporta uma boa medida de coragem pessoal, e também uma certa medida de desdém pela própria sorte.  O sujeito movido por ela é geralmente o tipo que “dá murro em ponta de faca” (para permanecer fiel aos seus ideais), é o cara que “não abre nem prum trem carregado de pólvora com um doido fumando em cima” (como diz Zelito Nunes).

Na Ética da Responsabilidade, por outro lado, o sujeito considera as consequências dos seus atos e admite desobedecer aos próprios princípios se for para evitar um mal maior.  O valor de suas ações não é medido em função da coerência íntima de suas idéias, mas do resultado objetivo de suas escolhas, ou seja, o que vai acontecer se ele agir assim ou assado. 

Quem se guia por essa ética costuma ser é um negociador mais flexível, que em circunstâncias diferentes pode assumir posições diferentes, mesmo ao preço de ser taxado de incoerente ou de infiel aos seus próprios valores.  É o caso, por exemplo, do indivíduo que admite mentir para salvar uma vida, ou sacrificar sua honra pessoal visando um benefício coletivo. Para esses, “fazer a coisa certa” importa mais do que ser impecavelmente fiel a si mesmo.

Weber dizia que “a vida é uma série de decisões cruciais através das quais a alma escolhe seu próprio destino”, e achava que a distância entre as duas posturas não é tão abismal quanto parece; que talvez seja possível conciliar as duas atitudes num comportamento único e coerente. 

É a velha dicotomia entre o comportamento Técnico (seguir inflexivelmente a letra-da-lei) e o comportamento Político (fazer arranjos, jeitinhos e conchambranças desde que para uma finalidade nobre).  Não existe fórmula mágica, mas ao analisar as ações de alguém vale a pena indagar qual dessas éticas ele tinha mente ao tomar suas decisões.





terça-feira, 20 de janeiro de 2015

3715) "No Sertão onde eu vivia" (20.1.2015)



Diz-se que a crônica é um gênero literário tipicamente brasileiro e sempre são invocados os nomes de Rubem Braga, Fernando Sabino, Luís Fernando Verissimo, além de outros, hoje menos lidos, como Carlos Eduardo Novaes ou Henrique Pongetti.  O que nem sempre se comenta é que dentro do gênero crônica existem subgêneros, e um deles é a crônica rural, que se confunde com a anedota e o “cáuso”.

No Sertão Onde Eu Vivia de Zelito Nunes (Recife, editora do autor, 2014) é um bom exemplo da crônica que, ao invés de descrever os mil e um aspectos da rica e multiforme vida urbana descreve os mil e um aspectos da rica e multiforme vida rural.  Digo assim para combater o conceito equivocado de que a vida urbana é de uma multiplicidade inesgotável de tipos humanos, interações sociais, formas de comportamento, demonstrações de humor, inteligência, presença de espírito, etc., e que a vida rural é uma pasmaceira uniforme ao som de mugidos de gado.

Ledo engano. Sem falar em Leonardo Mota etc., aqui mesmo na Paraíba tivemos o inesgotável José Cavalcanti e seus livrinhos recheados de tipos populares e linguagem pitoresca. A vida nos sítios, fazendas e vilarejos do interior pode, sim, ser tão rica e variada quanto a vida que fervilha em torno do Mercado Modelo ou na Praia de Copacabana. Precisa apenas de gente com olhos e ouvidos atentos, excelente memória, e capacidade para colocar no papel esses episódios que, também no interior, mal cabem no estreito espaço das 24 horas de um dia.

Zelito Nunes, nascido em Monteiro e radicado no Recife, tem uma série de coletâneas de crônicas nessa veia (uma delas, Folha de Boldo: Notícias de Cachaceiros, em parceria com Jessier Quirino), retratando a vida do Cariri e do Pajeú.  Seria, mal comparando, a mesma riqueza de tipos (só que no meio rural) que encontramos na Zona Norte carioca da Rua dos Artistas e Transversais de Aldir Blanc. Além dos versos de cantadores que anota há décadas, Zelito Nunes conta histórias de camelôs, fazendeiros, vaqueiros, confusões entre bêbos e donos de bodegas, soldados de polícia, arruaceiros.  Aventuras mirabolantes ou desastradas vividas por gente com um parafuso a menos na cabeça e uma vida mais interessante do que a nossa. Sem falar nas recordações de uma infância vivida na fazenda, como a história da cabra com medo de lanterna elétrica ou o dia em que ele fugiu de casa e ninguém da família percebeu.  São memórias de uma vida rústica e aventurosa, evocada nesta sextilha de Manoel Filó: “Namorar em Mundo Novo / todas as noites eu ia / voltava de madrugada / quando o sono me tangia / molhando a barra da calça / na rama da melancia.”




domingo, 18 de janeiro de 2015

3714) Dicas de literatos (18.1.2015)



(Susan Sontag)

Parece que cada escritor deixa, antes de morrer, um documento em que repassa para as gerações futuras as lições que aprendeu durante a vida. Sou um leitor atento de qualquer matéria que se intitule “Dicas Literárias” ou “Conselhos de um Escritor Profissional”. Não porque imagine descobrir ali a meia dúzia de fórmulas mágicas que irão me tirar dos meus próprios atoleiros: por definição, um atoleiro literário é um lugar de onde só se sai sozinho.  Mas me consola pensar que os lamaçais onde encalho já foram visitados por gente melhor do que eu.

Nem todo conselho de escritor se refere a sintaxe ou estilo.  Um dos mais úteis que conheço é o da desconhecida (para mim) Helen Dunmore: “Um problema num texto geralmente fica mais claro se você faz uma longa caminhada.”  É uma grande verdade, embora estilisticamente confusa, pois ela devia ter dito: “Sua mente fica mais apta a resolver problemas de texto se estiver recebendo a irrigação sanguínea e os hormônios positivos que uma boa caminhada costuma produzir.”  Chico Buarque diz que costuma compor suas letras cantarolando mentalmente enquanto caminha, e a prova é que as letras dele são tão boas quanto as minhas.

Escrever é na verdade uma tarefa complexa, que levou Susan Sontag a dizer que ela é exercida por quatro “pessoinhas” que temos dentro de nós: 1) o maluco ou obcecado; 2) o idiota; 3) o estilista; 4) o crítico. Segundo ela, o maluco fornece o material, o idiota o executa, o estilista fornece o bom gosto e o crítico fornece a inteligência.  Ela chega a aduzir que, na falta do 3 e do 4, mesmos os dois primeiros são capazes de produzir um texto publicável.

Samuel Delany diz: “A boa escrita é clara. A escrita talentosa é energética.  A boa escrita evita os erros. A escrita talentosa faz com que aconteçam coisas na mente do leitor, coisa vívidas, poderosas, coisas que a escrita meramente boa, que se detém nos aspectos de claridade e de lógica, não consegue produzir.” 

Ou seja: não basta a correção, o “seguir o Manual”.  É preciso injetar na escrita uma energia extra, uma descarga além-da-conta de força criativa. Isso não significa, de modo algum, uma superabundância de palavras ou de efeitos. Às vezes, basta uma frase com grande concentração de sentido para produzir um efeito que seria diluído, por um escritor menos hábil, em um parágrafo inteiro de redundâncias. A escrita energética brota muitas vezes de conflitos entre as palavras, de um texto cheio de elementos contraditórios ou inusitados, que faça o leitor pensar, que obrigue o leitor a uma parceria, que produza na mente do leitor um efeito de excitação semelhante ao que ele teria fazendo uma longa caminhada.




sábado, 17 de janeiro de 2015

3713) Revolucionários (17.1.2015)




(ilustração: Pierre-Adrien Sollier)

Eu tenho um amigo meu que é contra a Revolução Francesa.  Seu propósito na vida é provar que aquilo foi um equívoco gigantesco, uma catástrofe.  Está com uns 45 anos e dedica todas as horas vagas (é bancário) ao estudo da RF e à publicação de textos minuciosos, cheios de notas de rodapé, provando por a+b que... O que ele prova?  Não entendi até hoje, porque tudo que sei daquela conflagração aprendi no curso ginasial.  Depois, só me lembrei dela no filme Scaramouche e nos romances do Pimpinela Escarlate.

Nada pode demover Danilo (nome dele) da sua campanha.  Ontem estávamos em turma, tomando cerveja, falando de França e de humorismo, e no primeiro remanso da conversa ele se virou pra mim e disse: “Você já leu A História da Guilhotina, de Kershaw?”.  Eu não sou homem de dar o braço a torcer, e driblei a questão: “Tenho, mas não li ainda.”  Ele agarrou o mote como quem agarra uma bola de beisebol tacada rumo à torcida: “Este é o problema, as pessoas não se informam.  Ficam repetindo clichês feito papagaios, e não vão às fontes primárias.”

Aí entrou no discurso de sempre, que todo revolucionário na verdade só quer derrubar o rei pra sentar no trono, que todas as revoluções terminam do mesmo jeito, Robespierre era um paranóico, Danton um bunda-mole, e que isso que aquilo; nem Lecomte de Lisle escapava, porque para ele a Marselhesa era “um dos poemas mais sanguinolentos e totalitários já escritos”, só se salvava por causa da melodia, e olhe lá, porque o Hino Nacional Brasileiro, visivelmente plagiado dela, a tinha estragado para sempre.

Diga-se, por justiça, que ele também condenava com veemência a Revolução Americana (“Thomas Jefferson era um escravocrata, um demagogo, pior do que Joaquim Nabuco!”), a Revolução Russa (“uma quadrilha de barbudos fedendo a vodka, invadindo os palácios mais bonitos da Europa!”) e a Revolução Mexicana (“essa nem intelectuais teve, era só povo e carnificina”).  Mas a nêmese dela era a Francesa, e todo este relato é para chegar num dos seus axiomas.

Diz Danilo que quem sobe ao Poder pelo sangue só pode ser apeado dele pelo sangue. E que a conquista sangrenta mancha indelevelmente esse Poder, porque o ser humano é como aqueles tigres mansos criados em cativeiro, alimentados com uma chã-de-dentro qualquer, e que quando sentem o cheiro de sangue humano eriçam os bigodes e espetam as orelhas.  Políticos e militares são como tigres, diz ele. Subir ao trono matando desperta neles uma memória primordial de quando nossos tataravôs cortavam gargantas sem prestar contas ao Judiciário. Sentem-se não apenas capazes de tudo, mas dispostos a tudo para se manter ali. “Son jour de gloire est arrivé.”


sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

3712) "Leandro, Vida e Obra" (16.1.2015)



Já me bati muito aqui nesta coluna por biografias de autores importantes, não para saber fofocas da vida pessoal deles, mas para entender melhor seu processo de formação literária, suas leituras e assimilações (prefiro este termo a “influências”), o ambiente cultural onde viveram, as idéias com que interagiram.  

E também o modo como passaram (quando foi o caso) de autor diletante para autor profissional.  Como lidaram com as reações (boas ou más) de editores e leitores, da crítica, da censura, dos colegas.  Como encararam seu eventual sucesso ou fracasso.  

Uma biografia criteriosa e bem pesquisada nos ajuda a ver como os acidentes de percurso foram dando forma ao jorro de criação do autor, assim como o terreno e as pedras dão forma à correnteza de um rio.

Arievaldo Vianna produziu agora a biografia Leandro Gomes de Barros – vida e obra, publicação conjunta das editoras Queima-Bucha (Mossoró) e Fundação Sintaf (Fortaleza). 

Pode não ser a primeira biografia do criador da Literatura de Cordel, mas é a primeira que encontro, e seu grande mérito é o levantamento de dados pessoais de Leandro, através de documentação bem fundamentada.  O trabalho solitário e por-conta-própria do autor o levou aos descendentes do poeta, principalmente a sua sobrinha-bisneta Cristina Nóbrega, que deu acesso a uma documentação preciosa.

Arievaldo traça a cronologia básica da vida de Leandro, nascido em Pombal (1865), criado em Teixeira até os 15 anos, e depois indo para o Grande Recife, onde ficou até sua morte em 1918. Sem forçar a barra, ele mostra os aspectos autobiográficos dos seus folhetos, inclusive um interessante paralelo entre o anti-clericalismo do seu personagem mais famoso, Cancão de Fogo, e a difícil relação de Leandro, garoto, com seu tutor e tio pelo lado materno, o padre Vicente Xavier de Farias.

O livro tem fotos e reproduções de documentos, citações precisas dos versos de Leandro, e aborda suas relações com outros criadores do cordel como Chagas Batista e João Martins de Athayde.  

A história editorial dos seus folhetos (que Ruth Terra havia abordado em Memórias de Lutas, Ed. Global, 1983) é um tema fascinante, e difícil de reconstituir depois de mais de um século.  

O livro de Arievaldo tem tudo para ser encorpado com novas informações e análises em edições futuras, visto que pesquisas dessa natureza nunca se esgotam. No ano do sesquicentenário do nascimento de Leandro, este livro dá o pontapé inicial para as comemorações de uma explosão da cultura nordestina que só teria paralelo meio século depois, nos anos 1940, com a criação do baião por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.