quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

3717) A filosofia num gesto (22.1.2015)




(ilustração: Saul Steinberg)

“Quem quiser que fale em Isaque Nilton ou em Arquimedes, tá ligado? Pra mim o grande gênio da humanidade é o caba que sabe fazer uma coisa completa. O ruim é explicar, prum caba que não sabe, o que é uma coisa completa. Eu tive um professor, minto, uma professora, que falou uma vez sobre a importância da filosofia. Ela disse que a importância da filosofia era explicar cada coisa de uma maneira que nunca mais coubesse outra explicação. Aquilo bateu.

“Passou-se.  Anos depois estou eu na Europa, bolsista com bolsa atrasada, pagando aquele mico de pedir pra colega europeu pra ir jantar na casa deles.  Europeu é um povo travadão.  Todo europeu fala com a gente por trás duma parede de vidro à prova de bala. Se você diz que tá sem jantar há três dias ele subentende logo que é desde Cristóvão Colombo, manja como é? Aí entorta a boca e diz na língua dele: “Então bora lá”. Aí bota um prato só pra você e fica sentado ali, fumando e olhando como é que um brasileiro come, tá ligado?

“Por isso eu não esqueço minha lição de filosofia. Um nego véio que era porteiro do prédio da tal Faculdade. Era um cara de cabelo meio branco, de um daquele países subdesenvolvidos da África, um cara legal.  Quando rolou essa situação ele me levou lá no quartinho dele e providenciou uma macarronada.  Acendeu uma estaca do tamanho do meu braço e ficou baforando enquanto escorria o macarrão.  Ralou um queijo gelado, duro que só tijolo, deu uns sopapos no fundo dum ketchup do tempo de Colombo, sentou na mesa comigo e a gente começou a comer.

“Meu irmão, eu percebi, eu fiquei olhando o jeito como o cara cravava o garfo no macarrão, como ele erguia aquela moita enorme de macarrão, e de baixo dela subia aquela lufada de fumaça, e ele parava o braço com o garfo erguido, deixava aquilo se dissipar, aí abaixava a garfada de macarrão de volta no prato, largava ela ali, cravava outra garfada noutro ponto, voltava a erguê-la suspensa, e liberava outra nuvem de fumaça, esfriando o interior daquela espécie de turfa. 

“E nesse instante, véio, foi muito, muito maneiro! Eu percebi que um cara pode ser negão e proleta, outro pode ser doidão e drogadaço, outro retardado e bugado de nascença, mas esse cara pode saber o que está fazendo, e fazer com arte.  Só de olhar o cara fazendo aquilo eu entendi a natureza da filosofia e isso redefiniu minha vida.  Parei de pensar em tudo e comecei a pensar somente na coisa de cada instante, aprendi a deixar o mundo lá fora. Não sei se foi o tamãe da fome, mas a filosofia desembarcou em mim naquela hora.  Larguei o curso naquela noite.  Minto: meu curso aconteceu naquela noite. O resto foi aeroporto e correr pro abraço.”





Um comentário:

Carmelo Ribeiro disse...

Beleza de texto.