Estou lendo A Tabela Periódica (1975) de Primo Levi, na ótima tradução de Luiz Sérgio Henriques (Ed. Relume Dumará, 1994). Levi é conhecido por obras em que contou sua passagem pelos campos de concentração nazistas, como Isto é um Homem? (1947).
No primeiro capítulo, “Argônio”, Levi fala dos chamados
gases chamados “nobres”, ou “inertes”, porque não se combinam com nenhum outro
elemento e não interferem nas reações químicas. Ele usa essa metáfora para
falar de seus antepassados, “inclinados à especulação desinteressada, ao
discurso arguto, à discussão elegante, sofística e gratuita”.
No capítulo dois, “Hidrogênio”, ele já está com dezesseis
anos, e conta suas primeiras atividades de laboratório, bem desajeitadas, ao
lado de um colega. Encerra o capítulo contando como uma experiência resultou numa
pequena explosão, por sorte sem maior gravidade:
A mim tremiam-se um pouco as pernas, sentia medo retrospectivo e, ao mesmo tempo, um orgulho tolo por haver confirmado uma hipótese e por haver desencadeado uma força da natureza. Então, era mesmo hidrogênio: o mesmo que queima no sol e nas estrelas e de cuja condensação, em eterno silêncio, se formam os universos.
Todos descrevemos o mundo através de comparações, extraídas de um glossário de idéias e de situações que nos são familiares. No capítulo três, “Zinco”, Levi narra suas experiências com este metal, já na era fascista, e num laboratório burocrático e pedante. O zinco “não é um elemento que puxe muito pela imaginação, (...) é um metal aborrecido.” O trabalho é tedioso, e Levi aproveita para fazer comparações químicas, ao descrever um diretor do laboratório:
Como todos aqueles que exercem funções vicárias, constituía um exemplar humano interessante: quero dizer, como aqueles que representam a Autoridade sem possuí-la em si mesmos, como, por exemplo, os sacristães, os guias de museu, os bedéis, os enfermeiros, os “assistentes” dos advogados e dos tabeliães, os representantes comerciais. Todos eles, em maior ou menor medida, tendem a transfundir a substância humana de seu Principal na própria figura, como ocorre com os cristais pseudomórficos.
Um dos capítulos mais amargos é “Vanádio”, no qual ele
reencontra por acaso, via correspondência profissional, um alemão, seu ex-chefe
na fábrica nazista de borracha em que foi forçado a trabalhar. Levi o reconhece
pelo sobrenome e pela grafia peculiar de um termo químico.
Começa uma troca de cartas entre os dois, agora ambos
cidadãos livres. O ex-nazista lembra-se dele, sim. Reconhece sua parcela de
culpa, alega que poderia ter se comportado de maneira muito pior; e Levi
reflete:
Quase simultaneamente me chegou em casa a carta que esperava, mas não era como a esperava. Não era uma carta modelo, paradigmática: neste ponto, se esta história fosse inventada, poderia referir somente dois tipos de carta: uma carta humilde, calorosa, cristã, de alemão redimido; ou então altiva, soberba, glacial, de nazista impenitente. Ora, esta história não é inventada, e a realidade é sempre mais complexa que a invenção: menos arrumada, mais áspera, menos arredondada. Raramente está contida num só plano.
Quanto a encontrar o mercúrio em estado bruto, não nos custava nada: na caverna, chapinhávamos no mercúrio, que nos gotejava na cabeça e nas costas, e ao voltar para casa tínhamos mercúrio nos bolsos, nas botas e até nas camas; subia-nos à cabeça um pouco a todos nós, tanto que começava a parecer-nos natural trocá-lo pelas mulheres. É verdadeiramente uma substância esquisita: é frio e fugidio, sempre inquieto, mas quando pára é possível nele espelhar-se melhor do que num espelho. Se o fazemos girar num recipiente, continua a girar por quase meia hora. Nele não somente flutua o crucifixo sacrílego de Hendrik, mas também as pedras e até o chumbo. O ouro, não: Maggie fez a experiência com seu anel, mas ele logo submergiu e, quando o repescamos, se fizera de estanho. Em suma, é uma matéria que não me agrada, e eu tinha pressa de concluir o assunto e livrar-me dele.
O carbono é um elemento singular: é o único que sabe ligar-se a si mesmo em longas cadeias estáveis sem grande dispêndio de energia, e para a vida na Terra (a única que até agora conhecemos) se necessita justamente de longas cadeias.
Levi atribui aos seus elementos químicos toda uma gama de desejos, preconceitos, simpatias, intenções. Faz isto com o didatismo de um professor que quer descrever com clareza para os alunos o processo das reações químicas, combinações, etc. E ao mesmo tempo o faz com autoridade de ficcionista, capaz de transformar qualquer coisa, até um átomo, num personagem cuja existência e cujo destino são capazes de nos interessar.
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