quinta-feira, 27 de julho de 2023

4966) A tabela periódica de Primo Levi (27.7.2023)



 
Estou lendo A Tabela Periódica (1975) de Primo Levi, na ótima tradução de Luiz Sérgio Henriques (Ed. Relume Dumará, 1994). Levi é conhecido por obras em que contou sua passagem pelos campos de concentração nazistas, como Isto é um Homem? (1947). 
 
A Tabela Periódica não tem muito a ver com o gênero conhecido como “ficção científica”, mas é sempre mencionado quando se fala em “literatura baseada na Ciência”. E ele é exatamente isto, e brilhantemente isto. 
 
É um livro de memórias, em que o autor conta episódios variados de sua vida. Conta o que lhe aconteceu, reflete sobre o que conta. Inventa pouco (acredito eu). Mas tem o dom da escrita, o dom da contação de histórias, e curiosamente talvez o tenha por ser um cientista, não um literato. Tem a mente clara do cientista, a percepção-de-sutilezas do cientista, a disciplina organizadora do cientista, a consciência permanente dos limites de seu conhecimento – do cientista.
 
Levi é um químico, e adotou aqui uma curiosa “contrainte”. A história é narrada por ordem cronológica, e ele atribui a cada capítulo o nome de um elemento químico, o qual aparece ali ora como fator essencial, ora como metáfora, ora como detalhe secundário mas presente. Não há forçação de barra, não há trapaça. Eu acredito piamente que na vida de um químico os elementos aparecem de forma tão constante e tão variada que dificilmente se encontraria um episódio significativo em sua vida sem que houvesse a menção necessária a um deles. 




No primeiro capítulo, “Argônio”, Levi fala dos chamados gases chamados “nobres”, ou “inertes”, porque não se combinam com nenhum outro elemento e não interferem nas reações químicas. Ele usa essa metáfora para falar de seus antepassados, “inclinados à especulação desinteressada, ao discurso arguto, à discussão elegante, sofística e gratuita”. 
 
No capítulo dois, “Hidrogênio”, ele já está com dezesseis anos, e conta suas primeiras atividades de laboratório, bem desajeitadas, ao lado de um colega. Encerra o capítulo contando como uma experiência resultou numa pequena explosão, por sorte sem maior gravidade: 
 
A mim tremiam-se um pouco as pernas, sentia medo retrospectivo e, ao mesmo tempo, um orgulho tolo por haver confirmado uma hipótese e por haver desencadeado uma força da natureza. Então, era mesmo hidrogênio: o mesmo que queima no sol e nas estrelas e de cuja condensação, em eterno silêncio, se formam os universos. 
 
Todos descrevemos o mundo através de comparações, extraídas de um glossário de idéias e de situações que nos são familiares. No capítulo três, “Zinco”, Levi narra suas experiências com este metal, já na era fascista, e num laboratório burocrático e pedante. O zinco “não é um elemento que puxe muito pela imaginação, (...) é um metal aborrecido.”  O trabalho é tedioso, e Levi aproveita para fazer comparações químicas, ao descrever um diretor do laboratório: 
 
 Como todos aqueles que exercem funções vicárias, constituía um exemplar humano interessante: quero dizer, como aqueles que representam a Autoridade sem possuí-la em si mesmos, como, por exemplo, os sacristães, os guias de museu, os bedéis, os enfermeiros, os “assistentes” dos advogados e dos tabeliães, os representantes comerciais. Todos eles, em maior ou menor medida, tendem a transfundir a substância humana de seu Principal na própria figura, como ocorre com os cristais pseudomórficos.
 
O judeu Levi passa o período entreguerras dando dribles no governo fascista, adere brevemente à Resistência, é preso. A Tabela Periódica toca apenas de leve no seu período em Auschwitz, já dissecado com detalhes no seu livro de maior sucesso, Isto É Um Homem?.




Um dos capítulos mais amargos é “Vanádio”, no qual ele reencontra por acaso, via correspondência profissional, um alemão, seu ex-chefe na fábrica nazista de borracha em que foi forçado a trabalhar. Levi o reconhece pelo sobrenome e pela grafia peculiar de um termo químico. 
 
Começa uma troca de cartas entre os dois, agora ambos cidadãos livres. O ex-nazista lembra-se dele, sim. Reconhece sua parcela de culpa, alega que poderia ter se comportado de maneira muito pior; e Levi reflete: 
 
Quase simultaneamente me chegou em casa a carta que esperava, mas não era como a esperava. Não era uma carta modelo, paradigmática: neste ponto, se esta história fosse inventada, poderia referir somente dois tipos de carta: uma carta humilde, calorosa, cristã, de alemão redimido; ou então altiva, soberba, glacial, de nazista impenitente. Ora, esta história não é inventada, e a realidade é sempre mais complexa que a invenção: menos arrumada, mais áspera, menos arredondada. Raramente está contida num só plano. 
 
É um ponto de vista de cientista, mas também de escritor. De um homem capaz de ver o quanto a ficção romanesca, aparentemente tão libertária em termos de imaginação, obedece tanto a fórmulas quanto a fabricação de vernizes. E onde é sempre mais prudente fazer as coisas conforme se faz há cem anos e há cem anos que dá certo. 
 
Não que falte imaginação ao autor. Alguns capítulos são contos. “Chumbo” é a história de uma terra meio imaginária chamada Thiuda, e uma família de homens que sabem extrair o chumbo das pedras e ganhar dinheiro com seu comércio. “Mercúrio” conta de um capitão de navio semi-exilado com a esposa numa ilha quase deserta onde começam a chegar náufragos misteriosos, inclusive um pretendente a alquimista. Tensões e disputas levam a pequena população a arranjos inesperados, em virtude da descoberta de jazidas de mercúrio: 
 
Quanto a encontrar o mercúrio em estado bruto, não nos custava nada: na caverna, chapinhávamos no mercúrio, que nos gotejava na cabeça e nas costas, e ao voltar para casa tínhamos mercúrio nos bolsos, nas botas e até nas camas; subia-nos à cabeça um pouco a todos nós, tanto que começava a parecer-nos natural trocá-lo pelas mulheres. É verdadeiramente uma substância esquisita: é frio e fugidio, sempre inquieto, mas quando pára é possível nele espelhar-se melhor do que num espelho. Se o fazemos girar num recipiente, continua a girar por quase meia hora. Nele não somente flutua o crucifixo sacrílego de Hendrik, mas também as pedras e até o chumbo. O ouro, não: Maggie fez a experiência com seu anel, mas ele logo submergiu e, quando o repescamos, se fizera de estanho. Em suma, é uma matéria que não me agrada, e eu tinha pressa de concluir o assunto e livrar-me dele. 
 
Também parece ser um conto a pequena narrativa de suspense “Titânio”, sobre a madrugada insone do técnico que faz o possível para controlar uma caldeira prestes a explodir, experimentando este ou aquele procedimento, e sempre com a sensação de que a qualquer momento aquilo tudo voa pelos ares. 



O último capítulo, “Carbono”, é um clássico várias vezes antologizado: a história de um átomo de carbono, cuja importância ele resume com simplicidade: 
 
O carbono é um elemento singular: é o único que sabe ligar-se a si mesmo em longas cadeias estáveis sem grande dispêndio de energia, e para a vida na Terra (a única que até agora conhecemos) se necessita justamente de longas cadeias.
 
Levi passa a descrever toda a trajetória randômica desse átomo, ligando-se a isto e àquilo, passando milhares de anos num lugar, milhões em outro, transferindo-se da terra para um ser vivo e daí à terra novamente... Faz lembrar aquela imagem de Jorge Luís Borges de que ele talvez já tenha respirado um átomo de oxigênio que Shakespeare também respirou, visto que átomos não se desfazem com muita facilidade. 
 
Levi insiste em dizer que não é cientista, pois não completou estudos superiores. Considera-se um técnico (e ganhou a vida como diretor técnico de várias indústrias químicas), mas sua paixão pela ciência e sua honestidade intelectual aparecem em cada frase. Um dos aspectos curiosos do seu estilo é o seu modo criativo de usar a figura de linguagem chamada de “Falácia Patética”, e que consiste em atribuir emoções a seres inanimados, com o fito de emocionar o leitor. 
 
É um recursos que tende facilmente para o melodramático ou o piegas: “As estrelas surgiram timidamente no céu”, “a Natureza está chorando pela tua morte”, “adormeceu embalado pelas carícias amorosas da brisa”... Um antropomorfismo kitsch que Alain Robbe-Grillet demoliu em seu famoso ensaio Por Um Novo Romance (1963).
 
Levi atribui aos seus elementos químicos toda uma gama de desejos, preconceitos, simpatias, intenções. Faz isto com o didatismo de um professor que quer descrever com clareza para os alunos o processo das reações químicas, combinações, etc. E ao mesmo tempo o faz com autoridade de ficcionista, capaz de transformar qualquer coisa, até um átomo, num personagem cuja existência e cujo destino são capazes de nos interessar. 
 





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