domingo, 6 de agosto de 2023

4969) O Nonsense Metafísico (6.8.2023)




(Philip K. Dick) 
 
O nome “ficção científica” foi, é e será uma fonte permanente de mal entendidos para pessoas que se acercam pela primeira vez dessa literatura à procura, por exemplo, de histórias aplicadamente submissas às leis científicas, ao método científico, ao jeito-de-pensar científico. Existem, sim, mas me atrevo a dizer que são minoria. 
 
Elas estão situadas naquele terreno impreciso que em inglês é chamado de “hard science fiction”. Algumas pessoas traduzem por “ficção científica dura” ou “FC dura”, mas eu acho isso muito ao pé da letra. Prefiro traduzir por “FC pesada”, pois acho que sugere melhor o peso da informação científica necessária. Esse rótulo designa as histórias onde a verossimilhança científica é obedecida tintim por tintim. 
 
Em contraposição, temos as histórias de “soft science fiction” que traduzo por “FC leve”. Existe nessas histórias uma referência a ciência e tecnologia, que as distancia da mera narrativa fantástica ou da fantasia. Os elementos mais comuns são viagens interplanetárias, contatos com alienígenas, espaçinaves, máquinas do tempo... Uma certa parafernália tecnológica, mas as histórias não resistiriam a uma sabantina científica rigorosa. 
 
Meus próprios contos geralmente são assim. Se a história se passa noutro planeta que não a Terra, e as pessoas andam ao ar livre, respirando sem cilindros de oxigênio, não me pergunte qual a composição química da atmosfera; não é disto que o livro trata. É outro planeta porque preciso colocar ali coisas que não poderiam existir na Terra, mas imagino que o sol de lá, a atmosfera e outros elementos são análogos aos da Terra. 
 
Quem deu um drible muito eficaz nesse problema foi (entre outros) Ursula Le Guin, quando postulou a existência dos Hainish, uma raça super-evoluída que “plantou” uma espécie humana (a nossa) em vários planetas semelhantes, por toda a galáxia, para ver como se desenvolvem. Somos apenas uma entre várias espécies humanas parecidas, em planetas parecidos.
 
O peso do termo “científico” no rótulo da FC gera discussões intermináveis. “Mas isto não é científico!” brada alguém ao ler um livro em que um personagem, na Terra, dialoga com um lodo viscoso de Ganimede, capaz de ler pensamentos. 
 
Virando-se, Chuck viu um lodo viscoso e amarelo de Ganimede, que tinha se espremido silenciosamente pela fresta embaixo da porta e agora estava se recompondo numa pilha de pequenos globos, a aparência normal de seu corpo físico.
 
– Eu moro no conapt em frente ao seu – declarou o lodo.
 
– Entre os terrestres existe o costume de bater na porta antes de entrar – disse Chuck.


 
Este é um trecho de Clans of the Alphane Moon (1964) de Philip K. Dick. Um leitor que exija rigor e verossimilhança científica numa história fica compreensivelmente chocado ao ler uma cena assim – para não falar no resto do livro, igualmente surreal. A literatura de Dick tem essa fisionomia cartunesca, parece mais (em certos momentos) com um desenho animado do que com um filme com atores. Os alienígenas têm as aparências físicas mais extravagantes, e no entanto pensam como pessoas, comunicam-se como pessoas.
 
Em Now Wait for Last Year (1966), o protagonista, Eric Sweetscent, usa uma droga que lhe permite viajar no tempo, e vai parar num futuro próximo em que a Terra está invadida pelos Reegs, uma raça alienígena. Nesta cena, Eric vai a uma indústria química para comprar mais droga, e se depara com um deles:
 
Era um organismo totalmente sem olhos; ele pensou, ao ver aquilo, em frutas que havia encontrado quando era criança, peras demasiado maduras caídas na relva, cobertas por uma camada fervilhante de criaturinhas amarelas, atraídas pelo odor adocicado da putrefação. Aquele ser era vagamente esférico. Tinha atado seu corpo a arreios, no entanto, que se afundavam tortuosamente por ele todo; sem dúvida precisava daquilo pra se lomocover no ambiente terestre. Mas ele ficou imaginando se esse esforço valeria a pena.
 
– Ele é mesmo um viajante no Tempo? – perguntou o homem enquanto contava o dinheiro no caixa, fazendo um gesto com a cabeça na direção de Eric.
 
O organismo esférico, enfiado nos seus arreios de plástico, disse por meio de seu sistema mecânico de áudio:
 
– Sim, sr. Taubman, ele é mesmo. – A coisa flutuou na direção de Eric, então se deteve, quase meio metro acima do solo, enquanto produzia um ruído de sucção, como se estivesse sugando fluidos através de tubos artificiais.
 
– Esse cara aí – disse Taubman a Eric, indicando o organismo esférico, - é de Betelgeuse. O nome dele é Willy K. É um dos nossos melhores químicos.
 
 
Escritores como Philip K. Dick fazem um malabarismo constante com vários tipos de verossimilhança. A verossimilhança científica é a primeira que vai pro espaço, mesmo que ele se dê o trabalho de mencionar um vago “sistema mecânico de áudio” que ajuda na comunicação. O que importa, contudo, é que tanto o lodo viscoso de Ganimede quanto o Reeg esférico e sem olhos entram na história com verossimilhança dramática (porque rapidamente se encaixam no enredo, assumem funções claras e ativas) quanto verossimilhança psicológica (suas reações diante de tudo são reações puramente humanas – o autor poderia tê-los encaixado como dois seres humanos quaisquer). 
 
Aceitamos esses alienígenas de aparência espantosa porque eles se comportam exatamente como humanos. É o mesmo processo que nos faz aceitar o Pato Donald e o rato Mickey metendo-se em aventuras, morando em casas, dirigindo automóveis,fazendo refeições à mesa, tal como qualquer humano. Se as ações e o modo de pensar são humanamente reconhecíveis, o leitor logo se esquece de sua aparência física porque no contexto ela serve apenas, no caso dos livros de Dick, para dar um verniz superficial de exotismo. 
 
Dick era um escritor meio alucinatório, que lia carradas de pulp fiction mas queria discutir problemas metafísicos. O que é a realidade externa, e o que é a realidade percebida pela mente? O que é um ser humano, e o que é uma máquina? As drogas aumentam ou diminuem a nossa percepção da realidade? Que tipo de compromisso ético temos com seres iguais a nós, ou diferentes de nós? 
 
Seus romances são um tipo particular de literatura absurdista, usando os elementos externos da ficção científica que ele tanto gostava de ler, e para cujo mercado produzia suas histórias. Ele praticava um Nonsense Metafísico, datilografando histórias à velocidade de uma rajada de metralhadora, produzindo uma espécie de “escrita automática” diferente da que os Surrealistas franceses preconizavam. Um jeito de escrever praticado por muitos autores de pulp fiction. Histórias concebidas em torno das imagens mais delirantes, e desenvolvidas meio de improviso, sem planejamento, quase como se o Inconsciente do autor estivesse batucando diretamente no teclado. 
 
Chamar esse gênero de “ficção científica” dá uma ênfase desproporcional à presença da Ciência, o que faz muitos leigos se decepcionarem com alguns livros, justamente porque queriam algo mais respeitoso com a Ciência. 
 
Muito mais adequado é o termo alemão para essa literatura: “wissenschaftlich-fantastischen Erzählungen”. Narrativas científico-fantásticas. Porque a Ciência é uma referência que pode estar ora próxima ora distante, mas a FC é uma literatura da imaginação e vai muito além do realismo literário tradicional, mesmo que valendo-se de suas estruturas. 
 

 
 
 




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