1.
O poema é superior à letra de música porque é independente, auto-suficiente: ele diz tudo sozinho. Aqueles versos ali são a totalidade da obra, a totalidade de significantes. Não é preciso recorrer a nenhuma outra estrutura senão aquela estrutura verbal ali presente.
Já a letra de música é superior ao poema porque é parte de uma estrutura maior, e precisa dar conta de aspectos que o poema ignora: as subidas e descidas da melodia, as pausas para ceder vez aos “comentários” instrumentais, a emissão vocal do intérprete... Quem faz uma letra tem que pensar em muitíssimo mais coisas do que quem faz um poema.
2.
O poema é um sistema fechado, que independe do contexto.
Claro que sua leitura pode ser “contaminada” pelo que haja à sua volta: outros poemas numa antologia, por exemplo, ou outros textos numa página de revista. Mas isto é uma contaminação inevitável a qualquer texto; em princípio pode-se dizer que um poema é um produto final, e tudo que tem a dizer está em suas próprias palavras. O poema só pode ser interpretado pelo leitor.
Já uma letra de música é um sistema aberto, um produto intermediário, e muito do que ela pode dizer depende de cada reinterpretação de cada pessoa que cantar aquela canção. Uma letra de música é interpretada pelo cantor, e só depois pelo “leitor” (o ouvinte).
3.
O poema ocorre no espaço, ele está impresso e fixo na página que lhe dá suporte. Ele é lido ao longo do tempo, mas existe uma região específica do espaço onde ele se situa, que é a página.
Já a letra de música existe no tempo, só existe no momento em que está sendo cantada, mesmo que pareça estar transcrita no encarte ou numa revista. Aquilo que vai impresso no encarte não é, na verdade, a letra da música: é um texto referencial que ajuda a acompanhá-la, porque uma letra de música, por definição, é um conjunto de sons, e não um conjunto de sinais gráficos impressos.
4.
Um poema é feito exclusivamente de palavras, mesmo que o autor recorra a artifícios visuais (caligramas, variação de tipologias, etc.) para produzir efeitos estéticos.
Já a letra de música é feita exclusivamente de sons, mesmo que a grande maioria desses sons reproduza palavras reconhecíveis.
São obras de naturezas diferentes mas muito próximas uma da outra, o que dá origem às confusões inevitáveis que ocorrem sempre que tentamos julgar alguma coisa de acordo com os critérios de uma outra coisa que lhe está próxima.
5.
Alguns poemas podem funcionar como letras de música, e algumas letras de música podem ser lidas como poemas, mas isto só ocorre em um número limitado de casos.
Um poema pode ser enriquecido pelas sonoridades típicas da música, e uma letra de música pode ser valorizada pela transcrição impressa de seu texto verbal.
Os dois não são concorrentes. São caminhos paralelos, abertos para quem quer se expressar através da Palavra, mas ambos exigem tanta dedicação que na maioria das vezes quem sabe fazer um não sabe fazer o outro.
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