quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

2440) "O novo regionalismo" (30.12.2010)



(Árido Movie)

Fala-se numa crise do regionalismo literário nordestino, como se nas últimas décadas não tivesse aparecido nenhum autor capaz de se comparar com José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz etc. A principal razão para isto é a de sempre: não aparece ninguém parecido porque todo mundo quer escrever parecido com eles, e eles não estavam querendo escrever como ninguém. Isto me lembra a frase de Robert Bresson: “Fulano quer imitar Napoleão e se esquece de que Napoleão não imitava ninguém”.

Um dos problemas do regionalismo literário é tentar obedecer em 2010 a uma temática e uma maneira de escrever que se consolidaram por volta de 1930 ou 1940. O maior símbolo disso é a presença recorrente, ainda hoje, dos “beatos e cangaceiros” como os dois grandes fenômenos de massa do Nordeste. Ora, hoje não existem mais beatos e cangaceiros: existem evangélicos e traficantes de drogas. Esta é a realidade do Nordeste de hoje. Essa mudança histórica não invalida a qualidade de, por exemplo, um filme regionalista como Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas para se saber do Nordeste de hoje é melhor assistir Árido Movie de Lírio Ferreira, que fala numa seita mística baseada na adoração da água e numa fazenda que substituiu o plantio do algodão pelo da maconha. É mais parecido com hoje-em-dia.

O Nordeste de hoje é isto. O que Graciliano & Cia. escreveram continua valendo como documento histórico e como obra literária de valor permanente, mas para fazer um livro sobre retirantes famintos à altura de Vidas Secas precisa ser mais escritor do que Graciliano foi, porque a comparação é hoje inevitável. Por outro lado, o primeiro sujeito talentoso que escrever um grande romance sobre a praga do crack na Zona da Mata não vai ter concorrentes ilustres com quem ser comparado, porque esse romance não existe.

Um caminho interessante que se abre para o regionalismo nordestino é a exploração de elementos místicos e futuristas, recriando um Nordeste diferente dos clichês habituais. Vejo isto em livros como Pequenas Catástrofes do potiguar Pablo Capistrano, da releitura bíblica de W. J. Solha em Relato de Prócula, do visionarismo futurista do cearense Carlos Emílio Corrêa Lima em Ofos e muitos outros que certamente não conheço. O Nordeste de hoje conserva elementos do Nordeste de Zé Lins, Rachel & Cia., mas superpostos a eles estão novos elementos temáticos que só muito lentamente estão sendo incorporados.

Por que? Acho que é porque o escritor nordestino (a começar por mim mesmo) não conhece o Nordeste. Vive num apartamento, indo de carro para o trabalho, fazendo compras no shopping e de noite lendo romances regionalistas de 50 anos atrás. Conhece o Nordeste através dos livros, e não das BRs. Se pegasse uma mochila e passasse seis meses viajando de ônibus pelo interior, se hospedando em dormitórios e comendo prato-feito, voltaria para cada com doze romances prontos para serem escritos.

2439) "O Ulisses alemão" (29.12.2010)



Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Doblin, o romance escolhido pelo escritor Joshua Cohen para ser o equivalente alemão do Ulisses de Joyce, tem seu nome mais conhecido, hoje, por causa do filme dirigido em 1980 por R. W. Fassbinder, um épico com 14 horas de duração feito para a TV mas também exibido em alguns cinemas. A TV Educativa (RJ) o exibiu em fins de semana consecutivos anos na década de 1980, quando tive a chance de ver um ou dois episódios. Sobre o romance de Doblin, Cohen faz este comentário: “Uma narrativa épica e infatigável sobre o ‘demimonde’ berlinense. Recheado de assassinatos, prostitutas, e o assassinato de uma prostituta. Franz Biberkopf, um sujeito de pouca inteligência, é libertado da cadeia para viver na prisão maior que é a República de Weimar. Doblin foi jornalista, psiquiatra e veterano da I Guerra Mundial. Ele germanizou o olho e o ouvido panorâmicos que James Joyce tinha para captar a gíria das ruas, e ao fazê-lo criou um das melhores romances de decadência do seu século”.

Doblin foi uma figura curiosa nas letras alemãs, porque a sua primeira obra de peso foi um romance ambientado na China do século 18, Os Três Saltos de Wang Lun (1915). Em seguida ele se juntou ao grupo expressionista que agia em torno da revista Der Sturm, onde publicou numerosas histórias, mas logo afastou-se deles para seguir uma linha literária mais personalista, da qual Berlin Alexanderplatz é o melhor exemplo. O nazismo o forçou a emigrar da Alemanha para a França em 1936, e nesse período ele publicou sua trilogia amazônica, ambientada na América do Sul: A Terra sem Morte, O Tigre Azul e A Nova Jângal. Com a invasão nazista ficou algum tempo num campo de refugiados na França, até emigrar para os Estados Unidos, de onde voltaria para a Europa após o fim da guerra.

Numa antologia do conto expressionista alemão, Malcolm Green comenta: “A vida de Doblin exibiu um movimento pendular entre polos opostos: quando jovem psiquiatra, ele aspirava à sobriedade e à razão, mas apanhado pelo caos da vida começou a desenvolver um ponto de vista anti-racionalista. O socialista e ‘grande inquisidor do ateísmo’ dos anos 1920 sucumbiu a um misticismo natural que conduziu a sua conversão ao catolicismo quando no exílio, em 1941”. Seu grande épico berlinense é, de suas obras, a mais conhecida, e talvez a que melhor exprime o país em que nasceu.

Berlim é decerto uma das cidades-entroncamento da história européia no século 20. Mesmo antes de se transformar no símbolo da Guerra Fria após a II Guerra Mundial, a cidade foi nos anos 1920 um bazar de decadência social, caos econômico, criatividade artística e fervura política. O movimento Expressionista, por um lado, no cinema e na literatura, produziu obras notáveis. Por outro lado, o teatro e a poesia de Brecht foram pontos altos da arte política do século passado. Há sem dúvida material para um grande romance na medula desse momento histórico.

2438) A matéria dos sonhos (28.12.2010)




Jorge Luis Borges fala, em seu conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de um planeta fantástico em que as coisas são criadas pelo pensamento. Por exemplo: Fulano perde uma caneta no escritório e pede aos colegas que a procurem. Depois, percebe que tinha deixado a caneta em casa, mas esquece de avisar. Um dos amigos, movido pela expectativa de que a caneta está no escritório, encontra-a e entrega ao dono, que agora tem duas canetas idênticas. 

Em outro exemplo, ele fala de uma expedição arqueológica em que os trabalhadores recebem uma descrição prévia dos artefatos que se espera desenterrar ali; eles são encontrados, mas sempre com alguma deficiência, devido aos ruídos de comunicação no processo. Encontram, por exemplo, moedas enferrujadas que têm gravada uma data posterior à da escavação.

Oscar Wilde, que muito influenciou Borges, dizia com razão que é mais frequente a vida imitar a Arte do que o contrário. 

Vejam por exemplo o caso do filme O Falcão Maltês, o clássico do filme policial “noir” dirigido por John Huston. O falcão é uma estátua negra que se diz valer mais de 2 milhões de dólares, e pela qual os indivíduos traem e assassinam uns aos outros durante uma hora e meia. 

Era um filme “B”, estreia do diretor (Huston só tinha trabalhado até então como roteirista). Humphrey Bogart, que interpreta o detetive Sam Spade, fez o filme inteiro usando suas próprias roupas, de tão minguado que era o orçamento. Para o falcão foram confeccionadas algumas estátuas de cobre, outras de resina (mais leves). A fabricação de todas elas juntas custou cerca de 700 dólares. 

Estas estatuetas valem hoje cerca de 2 milhões de dólares, ou seja, exatamente o que o falcão valia no filme (e mais, também, do que o orçamento completo do filme). Por que? Contêm jóias, tesouros? Não: contêm (na frase famosa de Sam Spade que encerra o filme) “a matéria de que os sonhos são feitos”.

Todas as riquezas humanas são riquezas simbólicas. Valem porque acreditamos que valem. Um cheque ou uma nota de 100 reais só valem isto por uma convenção, um acordo tácito. O papel de que são feitos não pode valer tanto. 

Os falcões valem porque o filme tornou-se (indiretamente; não foi feito com este propósito) um enorme comercial despertando nas pessoas o desejo de possuí-los, porque se tornaram símbolos de algo famoso. É o nosso desejo que os torna reais, em primeiro lugar, e depois os torna valiosos.

Uma frase famosa de G. K. Chesterton diz que “os romanos não amavam Roma porque ela era uma grande cidade; ela se tornou uma grande cidade porque eles a amaram”. É o sonho nosso que projetamos nas coisas que as faz crescer de importância e de valor. 

A Bolsa de Valores, p. ex., surgiu de início como uma aferição do valor das empresas, e depois virou um sistema de avaliação que depende mais do estado de espírito de compradores e vendedores (seus sonhos, expectativas e ilusões) do que da solidez da empresa em si.







2437) "Drummond: Sentimental" (26.12.2010)



Um dos traços mais curiosos de Carlos Drummond, que se revela tanto nos seus poemas quanto nos vislumbres de sua vida pessoal (entrevistas, depoimentos de amigos, etc.) é a sua capacidade de oscilar instantaneamente entre o funcionário público sério e o menino travesso, um garoto malicioso com veia sentimental. Só para ficar em dois poetas que lhe foram próximos, não vemos com facilidade essa oscilação em Vinícius de Moraes, que aparentava ser só o menino, nem em João Cabral, que aparentava ser só o funcionário carrancudo. Drummond, não. Num estalar de dedos, o Padre Antonio Vieira se transformava em Carlitos. E vice-versa.

“Sentimental” é um poema de Alguma Poesia (seu livro de estreia, que está completando 80 anos) e revela esse lado menino e romântico que ele se divertia em entremostrar, muitas vezes inserindo um poema nesse tom entre dois outros mais circunspectos. “Ponho-me a escrever o teu nome / com letras de macarrão...” Não sei se os supermercados de hoje ainda vendem o macarrão de letrinhas que me divertiu muito na infância, compondo palavras enfileiradas na toalha da mesa, ou, com maior dificuldade, usando a colher para fazer as letras boiarem em fila, já empapadas e amolecidas, no caldo escuro da sopa de feijão. Descobrir na adolescência que O Maior Poeta Brasileiro também fazia isso me trouxe uma bem-vinda sensação de cumplicidade.

É um poema semiótico sobre as dificuldades do amor transformado em linguagem (“Desgraçadamente falta uma letra / uma letra somente / para acabar teu nome!”, “E há em todas as consciências um cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar’”) e ele reverbera de maneira curiosa num poema posterior de Drummond, incluído em seu livro seguinte (Brejo das Almas). É o poema “As namoradas mineiras”, que mostra um namorado menos romântico, menos sonhador, mais tecnológico e moderno. Esse namorado profissional não enfrenta mais as limitações das letrinhas de macarrão. Ele tem uma namorada em cada um dos 215 municípios mineiros: “Enquanto na Capital um homem indiferente, / frio, desdobrando mapas sobre a mesa, / põe o amor escrevendo no mimeógrafo / a mesma carta para todas as namoradas”. É o contraste entre o artesanato (as letrinhas de macarrão, encontradas e enfileiradas de uma em uma, como nas tipografias manuais do cordel) e o mimeógrafo serializador, a carta-de-amor na era da reprodutibilidade técnica.

No primeiro poema Drummond registra o sonho adolescente do menino que se distrai, brincando de estar apaixonado, durante a ceia. No segundo, imagina a burocratização do amor na vida adulta, o amor do funcionário público, o amor do casamento careta e profissional. O uso da palavra escrita é a ponte entre essas duas fases da vida e duas faces do amor. As letrinhas de macarrão e o mimeógrafo são a face ingênua e a face implacável do Modernismo, um mundo novo que começa com uma aparente liberdade e acaba com massificação

sábado, 25 de dezembro de 2010

2436) Natal 2010 (25.12.2010)


(xilogravura: Lynd Ward)

... e o Natal, sorrateiro, se aproxima
como quem não quer nada, e já querendo;
vem feérico, álacre, metuendo,
amarrado a cetins e prestações.
E o mundo inteiro estende os seus cartões
e mergulha mais fundo no vermelho...
E daí? As vitrines são espelho
do mais fundo desejo encastoado:
o de amar para em troca ser amado
e comprar com presentes um futuro.

Foi-se o tempo em que a noite era de escuro!
Hoje é tudo um Niágara de luz,
e as turbinas de quantas Itaipus
alimentam tamanha Babilônia?...
Na minha treva, brilha só a insônia.
Na minha festa, uma canção: tumulto.
Quando é Natal eu me concedo indulto
e brindo, e canto, e rio, e até abraço.
Esqueça o que escrevi. Faça o que eu faço,
pois é tempo de encontro e ritual.

Dezembro se derrete em água e sal
nas calçadas do Rio, flamejantes,
como os dezembros que vivemos antes
até que chegue o não viver nenhum.
E eu fico aqui, enchendo o meu balloon
com a mesma linha-guia de Teseu
que no dédalo oscuro se atreveu
deixando apenas texto atrás de si;
meu carretel é tudo que escrevi,
uma ponta na mão, outra lá fora.

Olho a janela. Nem sinal de aurora.
Tão somente a bendita escuridão
(toda noite parece a projeção
de um filme que nos rapta e nos define;
a insone madrugada é o ultra-cine
em que o mundo se enxerga refletido
nesse cristal esférico e polido,
a membrana-por-dentro do Universo)
...e cada estrela dá de graça um verso
e assim será por toda eternidade.

Mas da vida eu já vi mais da metade,
e, mais perto do fim que do começo,
trocaria os vinténs do que conheço,
por um salto de volta à estaca-zero.
Vibrar uníssono com o mundo, eu quero.
Seguir sempre pensando, além centúrias.
Venha a vida, suas dores, suas fúrias,
seus desesperos, seu viscoso tédio.
Quero seguir vivendo; meu remédio
é a mesma doença que me esgota.

Do mundo eu não dispenso nem um jota,
um ceitil, um farelo, um grama, um quark.
Quero tudo, o mais punk ou o mais dark,
mas que seja um aval de Estar Aqui.
Quero sempre viver o que não vi,
avançar, bicicleta em corda-bamba,
mergulhar na ladeira que descamba
rumo a tudo (o que inclui o rumo ao nada)
quero a vida, esta veia dilatada,
latejando num só diapasão.

E quanto vai durar meu turbilhão?
Quanto tempo, o meu vórtice antientrópico?
Este esforço tão vão, mesmo ciclópico,
de vencer o duelo com o Ninguém?
Maior do que Solaris era Lem.
Mais complexo que a trama do “Ulisses”
era Joyce, sua dor, suas doidices.
Toda obra de arte é um resíduo
de um tumulto ambulante, um indivíduo,
que passou como passa um redemunho.

Estou vivo. Abro os olhos. Cerro o punho.
Faz um ano somente. O rio passa.
Pouco importa o esforço da barcaça
de tentar contrapor-se à correnteza.
Melhor soltar-se livre que ser presa
ao sonho de remar rumo à nascente.
Logo... estendo o cartão. Compro o presente.
É Natal. Custa nada, ser feliz?
Custa nada, dizer: “É o que eu quis”,
este loop com o verso lá de cima?...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

2435) Por que escrevemos (24.12.2010)




Escrevemos por dinheiro. Somos mercenários? Não vejo por quê. Um bancário iria passar oito horas no caixa, diariamente, só por idealismo ou para dar sua contribuição ao sistema financeiro? Um político se daria a todo aquele nhém-nhém-nhém somente por amor à pátria? 

Todo mundo trabalha por dinheiro: operários, camponeses, professores, balconistas, camelôs, enfermeiros, advogados, taxistas. O X da questão não é “não querer dinheiro”, porque de dinheiro todo mundo precisa. O X é: não fazer nada somente pelo dinheiro, porque isto roça pela prostituição; fazer a mesma coisa em circunstâncias em que não haja dinheiro envolvido; enobrecer e valorizar esse dinheiro. 

Sempre que eu ganho um dinheiro com um texto de cordel, por exemplo, eu me sinto na obrigação de reinvestir um pouco dele (e do meu tempo) no cordel, cuja existência me permitiu ganhá-lo.

Escrevemos por vaidade. Para ver nosso nome no jornal, nossa foto na revista, nossa entrevista na TV. Escrevemos para ser reconhecidos em público; “Olha lá... Aquele é Fulano de Tal. Pense num cara inteligente!”. Quem não gosta disso? Eu gosto, e muito. Não importa o nome que se dê: vaidade, orgulho, amor próprio, auto-estima. Todo mundo precisa, lá num porãozinho bem escuro e íntimo, justificar a própria existência diante de si mesmo. 

Todo mundo precisa dizer: “eu sou o cara que faz tal coisa, e faz bem”. Sem isso ninguém levanta da cama de manhã. Principalmente no inverno, e sabendo que a conta bancária está no vermelho. Escrevemos para podermos dizer: “Ora dane-se, eu sou o Raio da Silibrina, tão pensando o quê?!”

Escrevemos por missão. A missão nos é imposta de fora para dentro ou de cima para baixo, não importa. Nossa missão quem nos dá são os outros, e disso não tem como fugir. A vida é uma combinação de mares e de ventos levando nosso barquinho. Claro que temos velas e temos remos, mas, mandar no vento ou nas ondas? Nem pensar. 

Às vezes pensamos que nossa missão é uma coisa, e a vida nos dá outra, e é nessa outra que descobrimos melhor quem somos. É bom realizar os sonhos, mas é bom também sabermos que podemos realizar coisas com as quais não tínhamos sonhado. Às vezes é até melhor.

Escrevemos por prazer. Nelson Rodrigues dizia que sem sorte ninguém consegue sequer atravessar uma rua. Pois digo eu que sem prazer ninguém sequer conjuga um verbo. O prazer não é constante e contínuo. Escrever é cansativo, desgastante e muitas vezes é como atravessar um deserto. Mas se é o que você gosta de fazer, há sempre a possibilidade de na próxima página ou no próximo parágrafo as coisas se combinarem daquela forma que produz o prazer que buscamos. 

O prazer de fazer bem feito e de acreditar (pelo menos) que nunca na História do mundo alguém pensou a frase brilhante que a gente acabou de digitar. O prazer é sempre possível; basta apenas a gente esquecer o dinheiro, a vaidade, a missão, e não parar de escrever.





2434) O código de Kryptos (23.12.2010)



Já comentei aqui na coluna (“O mistério de Kryptos”, 24.6.2005 - http://tinyurl.com/2924br6) o criptograma esculpido nos jardins do quartel-general da CIA, na Virginia. A Agência encomendou uma obra de arte que “produzisse sentimentos de bem-estar e esperança”, e o vencedor da concorrência foi David Sanborn. A obra contém quatro painéis com textos em código, e desde sua criação, há dez anos, o criptograma virou uma mania entre alguns milhares de malucos no país. Três painéis já foram decifrados e o último, um bloco de 97 caracteres, continua mais impávido do que a Esfinge do Egito.

Um artigo no New York Times (http://tinyurl.com/2bdmx58) comenta este fato, e entrevista Sanborn, o qual começou a dar pequenas dicas para facilitar o esforço de decifração. Ele indicou, por exemplo, que as letras de 64 a 69, que são NYPVTT, significam respectivamente BERLIN. Nada mau para arregaçar as mangas e começar um trabalho! Os três outros textos já decifrados são, respectivamente: 1) um texto dizendo “Entre as sombras sutis e a ausência de luz jazem as nuances da iqlusão” (com este erro de digitação, proposital, para confundir os decifradores; 2) uma brincadeira com a localização geográfica do prédio, dando latitude e longitude; e finalmente 3) um longo trecho do egiptólogo Howard Carter em que ele narra o momento em que abriu a tumba de Tutankhamon.

Os criptogramas têm uma aparência aleatória, mas sabemos com certeza que por trás deles há algo que faz sentido. O primeiro aspecto ecoa nossa perplexidade diante da aleatoriedade do mundo real (desde que estejamos dispostos a vê-lo como ele é). Tudo que existe na Natureza está aqui sem intenção da parte de alguém. O segundo aspecto nos garante a recompensa final de que “isto faz sentido”, e, se não a descoberta desse sentido, pelo menos a convicção de que ele existe.

Nada nos assusta tanto quanto o Acaso em seu estado bruto. Nada nos reconforta tanto quanto a certeza de haver uma resposta. Se alguém me mostra uma sucessão aleatória de letras (JDUEYEEOFUNNDKPAOIGFR) é como se me mostrasse uma foto de Júpiter ou do fundo do mar, ou seja, um lugar que está vedado para mim por toda a eternidade. Mas basta alguém me cochichar: “É uma mensagem cifrada...” e esse pequeno caos se transforma magicamente em algo a um passo de distância. Eu posso. Está ao meu alcance. É só ter as ideias certas e fazer o esforço necessário.

Os cientistas agnósticos se maravilham quando descobrem as regularidades espantosas da Natureza. Na Filosofia da Ciência existe um enorme departamento destinado a mostrar de que maneira a Ordem pode brotar do Caos. Organismos altamente sofisticados podem se desenvolver sem a intervenção de uma Inteligência Superior, apenas com um processo de feedback que incrementa as variações bem sucedidas. É como se jogássemos um bilhão de letras para o alto e ao cair elas formassem sonetos de Camões, romances de Alexandre Dumas, a resposta do Código de Kryptos.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

2433) Cada qual sua auto-ajuda (22.12.2010)




No curto espaço de algumas semanas conversei com duas amigas que estão aderindo aos livros de auto-ajuda. Numa livraria, encontrei com Margarete (nome fictício, para proteger-lhe a identidade) e sentei para um café de meia-hora. Falamos da meteorologia, da vida em geral, e fomos comparar os livros que tínhamos comprado. Ela estava lendo algo que se intitulava (acho) Você não pode parar a chuva. Peguei, constatei a capa, folheei com o polegar e perguntei: “Presta?...” Ela deu uma banguela de dez minutos. Estava comprando o livro para presentear uma amiga; era o quinto exemplar que comprava naquele mês, porque aquele livro tinha mudado sua vida. “Harmonia é a palavra chave”, disse ela, “harmonia com o universo, com o fluir as coisas, com a mudança das estações, harmonia com o tempo. Descobri que eu precisava perder o inconformismo com a realidade. Parar de dar murro em ponta de faca. Fluir com a correnteza, cê tá entendendo? Em vez de nadar, tornar-se uma coisa só com a correnteza”. Foi nessa pisada por um tempão e fiquei olhando para ela. “Claro, Margarete”, falei, “eu acho que cada um tem que encontrar justamente isso: sua harmonia interior”. Ela agarrou minha mão com os olhos brilhando: “Você entendeu tudo!”.

Tempos depois pego o metrô e sento ao lado de Gertrudes, que não via há tempos. Fomos falando uma coisa e outra, até que ela sacou um livro da bolsa. Creio que se chamava A Vida é sua... se você quiser. E ela começou também a pregar para mim as qualidades do livro. Falou que tinha deixado de ser uma pessoa acomodada, passiva, complacente. Que o livro lhe ensinou a criar oportunidades ao invés de esperar que aparecessem; a impor suas próprias condições antes que os outros impusessem as deles; a defender seus interesses numa negociação ao invés de já começar buscando uma solução que conviesse aos dois. “Cada pessoa entra numa disputa pensando 100% em si”, disse ela; “eu entrava pensando 50% em mim e 50% no outro, então estatísticamente estava perdendo pelo placar de 75 a 25%”. Falou que agora “botava pra quebrar” (ela é advogada) e que há seis meses não perdia uma causa.

Vejam só o que é a vida. Porque esta Gertrudes sempre foi (aos meus olhos) a pessoa mais batalhadora e argumentativa que eu já vi; enquanto que Margaret é (sempre foi) uma menina zen, contemplativa, do tipo que fica olhando uma laranja amadurecer. E agora eu encontrava cada uma delas atribuindo a um livro miraculoso um conjunto de qualidades que eu, mero observador imparcial, já via nelas há anos. Imaginei como seria a reação de cada uma delas se lesse o livro da outra; se iriam sentir que aquele outro livro lhes seria benéfico. Pensei depois que existem dois tipos de livros de auto-ajuda: os que mudam nossa vida, quando estamos precisando, e os que simplesmente nos fornecem uma receita, com assinatura ilustre, para um remédio que já tomamos por conta própria desde que botamos o pé no chão do mundo.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

2432) O Homem Bicentenário (21.12.2010)



Este filme de Chris Columbus se baseia na noveleta homônima de Isaac Asimov, que ganhou em 1976 o Prêmio Nebula de ficção científica. É a história de um robô (interpretado por Robin Williams) que ao longo de dois séculos evolui passo a passo até se transformar, se não num ser humano biologicamente idêntico (o que seria quase impossível) pelo menos em alguém tão semelhante a uma pessoa que, nas cenas finais, é assim reconhecido pelo governo. Os numerosos romances e contos de Asimov sobre o “Ciclo dos Robôs” mapeiam essa evolução, começando com os desajeitados robôs de corpo metálico, com aparência de escafandristas, até os andróides com visual humano e interior cibernético. Asimov se serviu disto para fundir suas histórias de robôs com seu outro ciclo, o da “Fundação”, um império galáctico cujos protagonistas humanos (ficamos sabendo depois) eram, em grande parte, meros andróides evoluídos dessa forma.

É interessante notar que o conto de Asimov é de 1976, quando os EUA comemoravam os 200 anos de sua independência, e a palavra “bicentenário” estava por toda parte. Ao invés de comentar os 200 anos transcorridos, Asimov fez uma projeção para os próximos 200 anos. É possível ver na história de Andrew, o robô, um processo de conquista de liberdade, cidadania e direitos humanos que de certo modo ecoa o dos cidadãos norte-americanos após a Independência. A certa altura do filme, o robô (cuja habilidade como artesão o torna milionário, encorajado pelos seus proprietários, uma família liberal) diz que quer comprar sua liberdade. (Como será que se diz “alforria” em inglês?) O patrão lhe diz que ele é livre para fazer o que quiser, e ele retruca que quer um atestado formal de liberdade, explicando: “Milhões de seres humanos morreram para conquistar isso, então deve ser algo muito importante, e eu gostaria de experimentá-lo”.

A noveleta e o filme, portanto, são percorridos por um subtexto político evidente. Um robô é alguém governado de maneira inflexível pelas Três Leis da Robótica, que o obrigam a obedecer os humanos, protegê-los e proteger a si próprio. Já um ser humano é protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, que à época da publicação da noveleta era quase bicentenária também, e que está integrada de forma indissolúvel ao espírito da Revolução Norte-Americana de 1776 e da Revolução Francesa de 1789. Um robô, como um escravo, é alguém que quer deixar de ter apenas deveres para ter também direitos, para ser também um cidadão. Um robô se torna um ser humano não apenas quando conquista tecidos, músculos e glândulas artificiais, mas quando entende, conquista e pratica a cidadania, a liberdade. Até mesmo a contraditória liberdade de, podendo ser imortal, preferir ser como os humanos, sentir dores, envelhecer, morrer. Ele se torna um cidadão por ser, como dizia Edmund Burke ao Parlamento britânico sobre os colonos da América, “incapaz de barganhar a jóia íntima de sua alma”.

domingo, 19 de dezembro de 2010

2431) Drummond: poemas natalinos (19.12.2010)



Fazer poemas sobre o Natal é algo que se espera de qualquer poeta. Um teste de admissão ao Empíreo dos Vates: será que o caro amigo consegue dizer algo de novo sobre um tema tão desgastado? O livro de estreia de Carlos Drummond, Alguma Poesia (cujos leitores comemoram 80 anos de seu lançamento) trazia logo dois. O primeiro, “O que fizeram do Natal”, começa com uma descrição melancólica: “Natal. / O sino longe toca fino. / Não tem neves, não tem gelos.” A descrição do ambiente se prolonga cheia de diminutivos: “coitadinho”, “burrinho”, “estrelinha”, “o deus nuzinho”) certamente ecoando a sensibilidade maternal das beatas e as dimensões do presépio. É somente no final que a guilhotina modernista decapita a cena: “mas as filhas das beatas / e os namorados das filhas, / mas as filhas das beatas / foram dançar black-bottom / nos clubes sem presépio”. Note-se a eficácia da repetição da frase. Quando o poeta repete “mas as filhas das beatas”, é como que considerando a menção aos namorados das filhas uma lembrança repentina e incômoda, e quisesse às pressas retomar o discurso interrompido: “Mas, como eu ia dizendo, as filhas das beatas...” E essa história de dançar black-bottom, seja isto o que for, é Modernismo puro.

O outro poema, talvez um dos mais divertidos de Drummond, é “Papai Noel às avessas”, em que Papai Noel entra de madrugada pela porta dos fundos, examina a casa com olho de profissional, belisca alguma comida na cozinha, rouba os brinquedos das crianças e vai embora com o saco cheio às costas. Como desmistificação do espírito natalino, é uma ótima piada. Como narrativa, é excelente, e poderia ser usado como guia num oficina de roteiro para curta-metragem. Drummond sempre teve um olho cinematográfico e muitos bons momentos de sua poesia são decupagens perfeitas, de cortes precisos, de uma cena visualmente bem concebida.

Há no poema os pequenos detalhes de linguagem com que Drummond dá tapas de luva na poética do século anterior. Veja-se o uso de expressões plebeias (“que nem”, “pegar fogo nas”, ao invés de “atear fogo às”) e de imagens dessacralizadoras para além da mitologia propriamente religiosa (“um presidente da república de celulóide”). Quando o poeta diz que “a eletricidade bateu nas coisas resignadas”, que um galo “comunicou o nascimento de Cristo” e que o luar “abençoava os legumes”, cada expressão destas é uma pequena deseducação imposta ao leitor, como quem diz: “desaprenda o jeito antigo de falar dessas coisas, de pensar nessas efemérides, aquilo não existe mais”.

O Modernismo foi um processo de substituir o olhar romântico pelo olho “esperto” com que Papai Noel localiza um queijo e come. Olho de rato, talvez; mas olho vivo, olho malandro, olho finório, olho irônico. Os poetas parnasianos e simbolistas eram tudo, menos espertos. A esperteza não vem do Empíreo dos Vates nem do Parnaso das Musas, vem das ruas, como veio o Modernismo, e para onde ia a poesia de Drummond.