quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

2438) A matéria dos sonhos (28.12.2010)




Jorge Luis Borges fala, em seu conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de um planeta fantástico em que as coisas são criadas pelo pensamento. Por exemplo: Fulano perde uma caneta no escritório e pede aos colegas que a procurem. Depois, percebe que tinha deixado a caneta em casa, mas esquece de avisar. Um dos amigos, movido pela expectativa de que a caneta está no escritório, encontra-a e entrega ao dono, que agora tem duas canetas idênticas. 

Em outro exemplo, ele fala de uma expedição arqueológica em que os trabalhadores recebem uma descrição prévia dos artefatos que se espera desenterrar ali; eles são encontrados, mas sempre com alguma deficiência, devido aos ruídos de comunicação no processo. Encontram, por exemplo, moedas enferrujadas que têm gravada uma data posterior à da escavação.

Oscar Wilde, que muito influenciou Borges, dizia com razão que é mais frequente a vida imitar a Arte do que o contrário. 

Vejam por exemplo o caso do filme O Falcão Maltês, o clássico do filme policial “noir” dirigido por John Huston. O falcão é uma estátua negra que se diz valer mais de 2 milhões de dólares, e pela qual os indivíduos traem e assassinam uns aos outros durante uma hora e meia. 

Era um filme “B”, estreia do diretor (Huston só tinha trabalhado até então como roteirista). Humphrey Bogart, que interpreta o detetive Sam Spade, fez o filme inteiro usando suas próprias roupas, de tão minguado que era o orçamento. Para o falcão foram confeccionadas algumas estátuas de cobre, outras de resina (mais leves). A fabricação de todas elas juntas custou cerca de 700 dólares. 

Estas estatuetas valem hoje cerca de 2 milhões de dólares, ou seja, exatamente o que o falcão valia no filme (e mais, também, do que o orçamento completo do filme). Por que? Contêm jóias, tesouros? Não: contêm (na frase famosa de Sam Spade que encerra o filme) “a matéria de que os sonhos são feitos”.

Todas as riquezas humanas são riquezas simbólicas. Valem porque acreditamos que valem. Um cheque ou uma nota de 100 reais só valem isto por uma convenção, um acordo tácito. O papel de que são feitos não pode valer tanto. 

Os falcões valem porque o filme tornou-se (indiretamente; não foi feito com este propósito) um enorme comercial despertando nas pessoas o desejo de possuí-los, porque se tornaram símbolos de algo famoso. É o nosso desejo que os torna reais, em primeiro lugar, e depois os torna valiosos.

Uma frase famosa de G. K. Chesterton diz que “os romanos não amavam Roma porque ela era uma grande cidade; ela se tornou uma grande cidade porque eles a amaram”. É o sonho nosso que projetamos nas coisas que as faz crescer de importância e de valor. 

A Bolsa de Valores, p. ex., surgiu de início como uma aferição do valor das empresas, e depois virou um sistema de avaliação que depende mais do estado de espírito de compradores e vendedores (seus sonhos, expectativas e ilusões) do que da solidez da empresa em si.







Um comentário:

Jamil P. disse...

Gosto muito da poesia que permeia todo esse texto. Das ideias também!

Curiosidade banal: a primeira vez que vi esse filme, quase desisti de vê-lo. Fui com minha ex-namorada à Blockbuster e não sabíamos bem o que alugar. No meio da caça a algum filme assistível, deparei-me com um DVD que trazia na capa ou a foto do Bogart ou uma parecida com essa que ilustra o post. Pensei "opa, é esse mesmo!", pois sou muito fã do ator. Bom, na hora de passar no caixa, a funcionária perguntou-nos "Ok, vocês vão levar então 'O Falcão Maltes' né?" Eu "o quê??" Ela "O Falcão Maltes", senhor. Eu "Ah, tá, vai esse mesmo."