sábado, 27 de fevereiro de 2016

4062) A fala paraibana (28.2.2016)



(cartunage.blogspot.com.br)


Dias atrás postei aqui um artigo onde comentava algumas expressões que me pareciam totalmente campinenses ou paraibanas. Penso nelas assim porque foi em Campina que as ouvi pela primeira vez, e muito pouco em outros lugares. Muitos leitores, de outros Estados, demonstraram conhecê-las há muito tempo, tê-las como típicas de sua região de origem. Serão brasileiras por inteiro? Serão uma compreensível assimilação da fala nordestina, a região que mais exporta falantes para o resto do Brasil? Não dá pra saber, mas aqui vão outros exemplos do meu Dicionário da Fala Paraibana.

“Andar de urubu baleado”: Um andar oscilante, sestroso e artificial, com as pernas meio arqueadas, usados por "playboys" de subúrbio ou por malandros de zona. "De vez em quando a gente está por ali, tomando uma cervejinha, aí de repente chega Fulano, com aquele andar de urubu baleado, usando óculos escuros de noite e mastigando um palito."  Variante: “Andar de urubu cangueiro”.

“Dar ponto”: Aprovar. “Ih, rapaz, dei ponto a essa sua camisa! Muito bonita!”  “Dei ponto à atitude de Fulano, eu não esperava outra coisa dele”.  Também se usa, no sentido passivo, “ganhar” e “perder ponto”.  “Fulano ganhou ponto comigo depois daquele discurso que ele fez”.  “Tome cuidado, que toda vez que você faz uma besteira como essa você está perdendo ponto com a família de sua noiva.” Equivalentes: “Dar valor”, “Dar o maior valor”.

“Salvou-se uma alma!”: Exclamação irônica que se usa quando acontece um fato inusitado, geralmente uma boa ação praticada pela pessoa menos provável.  “Minha gente... Salvou-se uma alma! Olha Fulano pagando uma conta!”  A origem é a crença popular de que cada vez que alguém na Terra pratica uma ação nobre, uma alma do Purgatório recebe anistia e sobe ao Paraíso.

“Todo penso é torto”: Usa-se para bloquear a argumentação de alguém que começa dizendo "Eu pensei que..." ou "Eu penso que..."  “-- Eu pensei que era melhor a gente marcar uma reunião pra discutir o assunto.  -- Todo penso é torto! Daqui que a gente faça a reunião, a coisa já está fora de controle.”  "Penso" é uma contração irregular, equivalente a "pendido", cambaio, coisa que está em desnível, pendendo para um lado:  "Essa mesa ficou pensa, o sr. vai ter que diminuir um pouco os pés deste lado."   O sentido imediato da frase é: "Aquilo que é apenas pensado é imperfeito."

“Roer a corda”: O mesmo que “bater pino”, voltar atrás, desistir ou “furar” na hora H.  “Já estava tudo pronto pra gente viajar, mas na última hora Fulano roeu a corda e a gente ficou sem carro”.  Tem ligação com a imagem de um animal amarrado que rói a corda que o prende, e foge.






sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

4061) O Eco do pêndulo (27.2.2016)



No Brasil, Umberto Eco publicou nos anos 1980 um best-seller incontestável (O Nome da Rosa) e depois um anti-best-seller (O Pêndulo de Foucault). A enorme vendagem do primeiro livro, pela Nova Fronteira, deve ter animado a Editora Record a arrebatar os direitos do segundo, que vendeu muito abaixo do esperado. Quase todos os exemplares dos sebos e da Estante Virtual são dessa edição que encalhou, a de 1989. Uma injustiça, pois para mim os dois livros são igualmente bons. (Se o encalhe fosse do primeiro, todo mundo diria: “Mas é claro! Uma história de frades medievais, cheia de termos em latim, quem vai comprar isso?!”).

O Pêndulo é um livro tão complicado e divertido quanto o anterior, com o bônus de ser contemporâneo. Sua sátira fere mais rente o pensamento ocidental, misturando alquimia, teoria da conspiração, mercado editorial, política, melodrama rocambolesco, Cabala, candomblé. Esta última parte pertence ao longo trecho ambientado no Brasil (capítulos 23 a 33). O argumento dos conspiradores que inventam uma conspiração e depois são engolidos por ela seria meio que retomado por Eco em seu último romance, Número Zero (2015). No Nome da Rosa ele tinha homenageado Conan Doyle e Borges; no Pêndulo, dá para sentir o espírito de Dumas, de Fantomas e da revista Planeta.

O romance é o que John Clute descreve como uma Fantasia da História, uma narrativa que revela uma História Secreta do Mundo. A erudição que Eco derrama nele não é nem excessiva nem extemporânea, porque o tema da obra é justamente a proliferação de interpretações místicas, mirabolantes e paranóicas que vêm atordoando o mundo ocidental desde o Renascimento. O romance segue a estrutura rígida e arbitrária dos “sephiroth” da Cabala, mas pelas suas fendas faz brotar uma jângal indisciplinada de teorias fantasiosas, hipóteses herméticas, narrativas ocultas. Eco cita uma ironia de Chesterton, para quem, quando se deixa de acreditar em Deus, não é para acreditar em uma outra coisa, é para sair acreditando em tudo quanto aparece pela frente.

Um dos temas do livro são as “vanity presses”, as edições autofinanciadas por gente que tem dinheiro bastante para publicar por conta própria as coisas sem pé nem cabeça que escreve. Isso resulta numa proliferação de informação insensata, e é de certa forma uma prefiguração da Internet de hoje, onde qualquer teoria escalafobética encontra crentes e seguidores, e onde basta um computador e um pouco de sorte para encontrar um milhão de espíritos desarvorados capazes de acreditar numa fantasia que criamos por brincadeira ou por delírio fabulatório. O Pêndulo é o livro mais profético do autor.





quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

4060) Um Eco aberto (26.2.2016)



O recentemente falecido autor de O Nome da Rosa tem sido saudado na imprensa como um “Homem Renascentista”, igualmente capaz e talentoso em numerosas atividades complexas, daquelas que em muitos casos basta apenas uma para ocupar pelo resto da vida um intelecto robusto. Eu diria que Umberto Eco pertenceu a um tipo de intelectual contemporâneo que herdou o humanismo iluminista moderno mas sempre soube manter um olho atento para atividades ou temas considerados menores. Não é todo “Renaissance Man” que escreve sobre programas de TV, sobre orixás ou sobre torcidas de futebol. Os livros técnicos de Eco são opacos para mim (tentei ler 200 vezes A Estrutura Ausente) mas nos seus escritos para o leitor comum (como eu) ele é uma perfeita ilustração da máxima de Isaac Asimov, de que quem pensa com clareza consegue escrever com clareza.

Eco, daqui de onde o leio e observo, é um desses intelectuais de ampla erudição que não perderam o senso de humor, o interesse pelas coisas pequenas ou banais, a vocação lúdica, a capacidade fabulatória. São capazes de rir com as banalidades do cotidiano; mas não é o riso “blasé” e cínico de tantos pseudo-intelectuais de hoje, que se acham superiores ao seu próprio país ou mesmo ao mundo inteiro. Para os intelectuais, o mundo é uma fonte de diversão, de indignação, de prazer, de medo, de mistério. Vejo muito do seu espírito em Raymond Queneau, diretor editorial da coleção “Pléiade”, romancista (Zazie no Metrô), poeta, letrista de MPF (música popular francesa), matemático amador, ex-surrealista, amante dos trocadilhos e dos jogos verbais. Vejo-o em Julio Cortázar, capaz de construir pirâmides como O Jogo da Amarelinha e ao mesmo tempo de criar seus “almanaques” de microtextos e as divertidas Histórias de Cronópios e de Famas.

Outro que corre na mesma raia é Ítalo Calvino, leitor de vasta cultura, compilador de folclore (Fábulas Italianas), autor de romances metalinguísticos ou fantásticos, ensaísta literário capaz de reunir no mesmo texto profundidade de visão e clareza cristalina de exposição (Seis Propostas Para o  Próximo Milênio).  Ou então o também semiólogo Roland Barthes, cuja obra conheço menos, mas que influenciou o começo da carreira semiológica de Eco, com suas Mitologias. Barthes é dono de um humor mais contido e mais austero, mas sua percepção emotiva dos conflitos humanos, expressa com riqueza de filigranas mentais em Fragmentos do Discurso Amoroso, mostra (como Eco) que o verdadeiro intelectual é capaz de enxergar o que todo mundo viu e não percebeu, e ao dizê-lo pela primeira vez fazer aquilo parecer uma verdade eterna.





quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

4059) Eco, o humorista (25.2.2016)



Obituários recentes de Umberto Eco louvam o romancista, o semiólogo, o medievalista. Sem forçar muito a barra poderíamos louvar o humorista também. Eco escreveu numerosos textos de humor, textos destinados a extrair do leitor não a gargalhada, mas a risada, a risada de admiração, de incredulidade, de malícia, de susto, qualquer uma.  O humor produz uma reviravolta nas idéias (seja na lógica, seja na imaginação, seja na pulsão emocional) e puxa o tapete do leitor, fá-lo traçar no ar um zás-trás, e a risada é sua queda no chão. Um bom exemplo do humor de Eco é o seu texto sobre editores explicando por que recusaram obras como a Bíblia, a Recherche de Proust ou O Processo de Kafka.

No seu O Segundo Diário Mínimo (Record, 1994, trad. Sérgio Flaksman) Eco propõe os “Anagramas a Posteriori”, teste que consiste em baralhar as letras de um mesmo nome várias vezes, e “interpretar” os resultados, fazendo uma descrição cabível do personagem correspondente. Um calidoscópio de letras. O nome “Umberto Eco” é anagramado por Mário Giusti, que sugere exemplos como “Bruce O’Moet (nacionalista irlandês exilado em Reims no século XIX, fundador com Paul Chandon de uma célebre cave de champanhes)” ou “Toro Ecumbe (campeão sul-americano dos meio-pesados em 1953)” ou até “Buc Meteoro (personagem de histórias em quadrinhos dos anos 30)”. Os exemplos são numerosos e impagáveis. O jogo (proposto por Giusti) é encampado por Eco e por outros amigos, vira um torneio lúdico coletivo.

Não é humor narrativo, é humor enunciativo. No caso, com um ludismo verbal que proporciona ao autor a chance de desenvolver redes de associações verbais semiconscientes deflagradas pela junção de nomes próprios que trazem alusões étnicas, ou históricas, ou regionalistas, etc.  Isso é útil para quem, como romancista, tem que em cada obra inventar dezenas de nomes de personagens, nomes que podem até ser exóticos, mas precisam ser sempre nomes aceitáveis como de pessoas reais, no universo descrito.

Chamar o detetive de O Nome da Rosa de William de Baskerville não é apenas um alô-de-chapéu ao mito sherlockiano, é também trazer à cena Shakespeare, suas chacinas anunciadas, suas autoimolações. Dois autores popularíssimos, dois mitos ingleses cortando-se em cruz. Outros exemplos igualmente alusivos talvez passem batidos a boa parte dos leitores que não lhes conhecem as referências. A quantidade de imaginação e de esforço presente nessa brincadeira dos anagramas nos faz ver em Eco um espécie de Guimarães Rosa. Rosa tinha esse mesmo foco, e nenhum nome nas suas histórias deixa de trazer uma camada oculta de associações de idéias.




terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

4058) A depressão (24.2.2016)



(David Foster Wallace)

Uma obra literária pode levar ao suicídio uma pessoa depressiva? O caso mais famoso, ao que eu saiba, foi Os sofrimentos do jovem Werther (1774) de J. W. Goethe. É uma das grandes obras do romantismo alemão, um livro escrito aos 24 anos onde Goethe, reza a lenda, descarregou sua tristeza por uma paixão que não deu certo. O livro aparentemente provocou uma onda de suicídios de leitores jovens que se identificaram com o protagonista, um rapaz que se mata porque sua amada casou com outro.

Males de amores, contudo, raramente causam depressão. Ela pode ser deflagrada por problemas psicológicos profundos ou por desequilíbrio químico do organismo (neste caso é comum o tratamento pelo uso de remédios). Um caso recente de suicídio literário foi o de David Foster Wallace, o autor de A Piada Infinita (“Infinite Jest”). Wallace sofria de depressão desde jovem, e usava medicamentos. Já famoso, com mais de 40 anos, seu médico sugeriu interromper o tratamento ou tomar outra medicação. Ele o fez. Não deu certo, e a depressão voltou com tudo. Ele voltou ao remédio antigo – e este não fez mais efeito. Um dia a esposa deu uma saída rápida, e ao voltar encontrou Wallace enforcado no porão, com os cachorros da casa parados em volta, olhando.

Disse ele certa vez, sobre o problema: “É o motivo pelo qual quero morrer. (...)  É como se não fosse capaz de encontrar nada fora dessa sensação e por isso não sei que nome lhe posso dar. É mais horror que tristeza. É mais horror. É como se uma coisa horrorosa estivesse prestes a acontecer, a coisa mais horrível que se possa imaginar, não, pior do que se possa imaginar porque há também a sensação de que é preciso fazer qualquer coisa de imediato para se deter aquilo, mas não se sabe o que se deve fazer e de repente está acontecendo, durante o tempo todo, está prestes a acontecer e ao mesmo tempo está acontecendo.”

Essas coisas podem acontecer num contexto explicável (problemas pessoais, financeiros, de saúde, etc.) ou inexplicável (os ataques de pânico que acometem pessoas sadias e sem problema algum). A bebida e as drogas acabam sendo válvulas de escape para alguns. Parece óbvio que não resolvem o problema, e sim o agravam, pois a euforia momentânea do barato tem como reverso a rebordosa do dia seguinte. Toda pessoa deveria ter uma atividade, uma prática qualquer capaz de fazer frente a essas quedas terríveis na areia movediça do nada-vale-a-pena. Artistas muitas vezes fazem de sua arte um salva-vidas precário que os ajuda a manter-se à tona. Nem sempre funciona, mas quando funciona acaba sendo a única coisa que segura um sujeito do lado de cá até que passe a tempestade.






segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

4057) Cinco mal-entendidos (23.2.2016)



A lojinha de velhos vinis e CDs era larga mas atravancada, abafada, de teto baixo. Prateleiras e balcões cheios de velharias. Aqui e acolá, uma preciosidade. Uma mocinha bonita começou a passar lá de vez em quando, aparentemente quando saía do escritório para almoçar. Ficava mexendo nos vinis de jazz. Lauro, o dono da loja, fantasiou nela uma intelectual que lia poesia em inglês e sabia escolher vinhos. Um dia ela foi para o balcão de axé e lá se deteve. Ele não resistiu e foi perguntar se ela gostava daquilo. “Não,” disse a moça, “é que hoje o ventilador está virado pra cá.”

Paulo Jatobá, sertanejo, soldador, 47 anos, irrompeu furibundo num bar e fuzilou com cinco tiros seu vizinho Nestor Sá, 61 anos, aposentado, conhecido como Nestor Merdinha, o qual havia entreouvido numa conversa doméstica a esposa recente do dito Paulo, Marilinha da Silva, 20 anos, afirmar que era virgem, e saiu depreciando tanto o caráter da madame quanto a virilidade do esposo, por não ter entendido que se tratava meramente de uma comparação zodiacal entre donas-de-casa ociosas.

O pai leva o filho a um evento de mangás, RPGs, quadrinhos, com dezenas de estandes, milhares de pessoas, numa balbúrdia indescritível. A certa altura o garoto volta para junto dele, puxa sua camisa, excitado: “Pai, me dá cinco e cinquenta!”. Ele dá uma nota de dez, manda guardar o troco, volta a conversar com os amigos. Daí a pouco olha e vê o garoto num estande afastado, com expressão arrasada, quase chorando. Vai até lá e vê a vendedora segurando um álbum imenso, quase 500 páginas, e explicando ao guri: “São cento e cinquenta...”

A piriguete, em plena viagem turística acompanhando turnê da banda de forró Abaixa Que Eu Levanto, entra no hotel, pega a chave na recepção, sai batendo com os saltos altos no piso, rebolando dentro do shortinho. Entra no elevador, fala com autoridade para o ascensorista gordo e cinquentão: “Vamos para o quarto, por favor.” Ele responde: “Pois não, senhora. Em que andar fica?...”

César estava recebendo duas primas distantes, irmãs, que vieram passar férias com os pais dele. Mesmo tímido, levou as duas a um filme bem mulherzinha, depois a um terraço à beira mar para tomar cerveja e pendurar a conta até onde a vista desse. Apaixonou-se de imediato por uma delas. A certa altura (a música era ensurdecedora) criou coragem, aproximou-se do ouvido da outra e gritou: “Diga a sua irmã que ela é muito linda!”. Ela, também gritando: “O quêee?” Ele: “Muito liiinda!”. Ela deu um sorriso brejeiro, correu os dedos sobre o decote, ergueu os olhos para ele sem mexer a cabeça e disse: “Esperei tanto por isto...”





domingo, 21 de fevereiro de 2016

4056) O Tribunal do Facebook (21.2.2016)



Há uma frase clássica, que não sei se é ainda em latim ou já em italiano, que diz: “Cui bono?”. Significa: “Beneficia a quem? A quem favorece? A quem interessa?” Tudo no mundo, no meio das relações sociais, traz vantagens para Fulano ou para Sicrano. Na literatura policial surge de vez em quando essa perguntinha básica. O sr. Fulano dos Anzóis foi morto por pessoa ou pessoas desconhecidas. A quem beneficiou essa morte?

Sempre que uma coisa começa a acontecer repetidamente, com força, com insistência, eu me pergunto: “Cui bono?” Vejam, p. ex., o Tribunal do Facebook. É impressionante como as redes sociais, a de Zuckerberg principalmente, instilam nas pessoas esse espírito tribunalício. Cada um se senta em sua cadeira de mogno, de espaldar alto, vestido de preto, tendo na cabeça aquela ridículas perucas século 17 dos juízes ingleses, com um martelo na mão e uma tropa de guardas de prontidão. Abre o feice e começa a esquadrinhar as postagens, em busca de alguém a quem condenar.

Se você se indigna contra alguma coisa (gays espancados, mulheres assediadas, índios perseguidos, professores demitidos, empregadas exploradas), de nada adianta: o Juiz vai acusá-lo de indignação seletiva, porque denunciar um mal é sempre calar sobre todos os outros. (Toda indignação é seletiva. Não se pode ter conhecimento de todas as injustiças do mundo, nem indignar-se na mesma medida com uma dúzia delas, se forem tudo de que temos conhecimento.)

O tribunal do Facebook está desenvolvendo com uma rapidez impressionante, neste país (em outros também, provavelmente) a nossa capacidade de apontar o dedo, de julgar, de condenar, de castigar. Estamos ficando como aqueles puritanos da Nova Inglaterra que queimavam bruxas. Estamos nos transformando naquelas pessoas que investigam malfeitos e castigam malfeitores, não porque tenham amor e dedicação a algum Bem superior, mas porque amam o castigo em si, amam castigar, amam vigiar e punir. Cui bono? A quem beneficia esse estado de coisas? 

A grande tática dos regimes totalitários em sua fase de ascensão – que é o que parece estar acontecendo aqui – é a de desunir a população, jogar grupo contra grupo, vizinho contra vizinho, cidade contra cidade, região contra região, profissão contra profissão, raça contra raça, fé contra fé. Enquanto nós, os massacrados pela lavagem cerebral, estamos cuspindo baba venenosa uns contra os outros, eles vão construindo seu muro, um tijolinho jurídico por dia, uma parede legislativa por semana. O tribunal do Facebook julga, achincalha, ridiculariza, fofoca, produz mentiras e calúnias compartilhadas aos milhões, entra dia, sai dia. Cui bono?





4055) Queremos a censura (20.2.2016)




(ilustração: Rubem Grilo)


Estão se multiplicando, principalmente nos EUA, os pedidos para que o Estado ou as autoridades locais exerçam algum tipo de censura sobre livros e textos em geral, para proteger a estabilidade emocional nos leitores. Um artigo de Isabel Lucas (aqui: http://tinyurl.com/zuth66b) cita vários exemplos. Obras clássicas como as “Metamorfoses” de Ovídio, a peça “Lisístrata” de Aristófanes e outras são tidas como ofensivas por estudantes conservadores. Eles pedem que os livros sejam eliminados das bibliotecas ou que pelo menos “surjam com uma advertência na capa, chamando a atenção para o ‘perigo’ para o ‘bem-estar mental’ que representam os seus conteúdos, potencialmente causadores de sofrimento, trauma ou angústia’”. Segundo o artigo, humoristas como Jerry Seinfeld estão se recusando a dar espetáculos nas universidades, alegando que os estudantes “não são capazes de suportar uma piada”.

A mania chega a extremos surrealistas. Estudantes de Direito de Harvard pediram que não fosse ensinada a lei sobre estupro, alegando que a visão desta palavra poderia reacender o trauma em estudantes que pudessem ter sido vítimas desse tipo de abuso. (Essa paranoia de negação traz à mente imagens como o avestruz que enterra a cabeça na areia diante do perigo ou o marido traído que manda tirar da sala o sofá onde a traição foi flagrada.) Para a psiquiatra Manuela Correia, “estamos diante de uma excessiva psiquiatrização da sociedade”. Os ditames protetores da psiquiatria tomam o lugar da religião, a quem cabia, até certa época, esse tipo de controle. Isso seria indício de uma infantilização da sociedade, diz ela: uma “sociedade que não consegue lidar com o medo ou a pluralidade da linguagem”.

Se a pessoa é incapaz de suportar a mera visão da palavra “estupro” (tendo sido ou não estuprada), tem todo o direito de evitá-la, é claro. Todo mundo tem fobias ou angústias. Mas nesse caso, por que diabo vai estudar Direito? Não seria melhor estudar algo mais distanciado da realidade social, algo que não a obrigasse a refletir sobre o mundo, a convivência, o atrito ideológico do dia-a-dia? Outro detalhe que inquieta é que para muitos desses espíritos defensivos não basta evitarem os temas, querem que os temas sejam proibidos inclusive para os que não têm trauma nenhum e querem se informar sobre os tais assuntos. É uma regressão emocional perigosa. São pessoas a quem o mundo de hoje assusta (e acreditem, amigos, assusta a todos nós) e preferem fazer de conta que o mundo não existe, preferem refugiar-se numa bolha de segurança fictícia que nem uma ditadura militar seria capaz de manter intacta por muito tempo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

4054) Gosto e qualidade (19.2.2016)



Uma vez, no Cineclube de Campina Grande, preparamos uma lista dos melhores filmes do primeiro semestre. Todos líamos a crítica cinematográfica dos jornais da Paraíba, de Pernambuco, Rio e São Paulo. Sabíamos quem eram os diretores endeusados e quem eram os execrados, quem eram os gênios imprevisíveis e quem eram os “artesãos competentes” (termo levemente depreciativo).

Um filme que me causou uma impressão muito forte na época foi O Diário de Anne Frank de George Stevens, com Millie Perkins no papel da garota judia cuja família se esconde num sótão de Amsterdam durante mais de um ano mas acaba sendo descoberta pelos nazistas. Ao mesmo tempo, fiquei fascinado por Jules et Jim de Truffaut, que ente outros méritos enriqueceu meu conceito de beleza feminina ao me deparar com a anti-hollywoodiana Jeanne Moreau. Não hesitei, e na minha lista cravei palpite duplo. Indiquei o filme de Stevens como “Melhor Filme do Semestre Pelo Meu Gosto” e o de Truffaut como “Melhor Filme do Semestre, Cinematograficamente”. Achei que as duas obras não estavam “disputando a mesma Liga”, como dizem os norte-americanos.

Li há pouco um artigo de Jerry Fodor sobre ópera, onde ele diz: “Se você é apreciador de ópera, é bem possível que seja um admirador de Puccini. Mas provavelmente você acha que não deveria sê-lo. O gosto por Puccini é algo que é desaprovado inclusive pelos que o compartilham. Como se supõe que preferência pessoal e avaliação crítica devem coincidir, numa sensibilidade artística bem fundamentada, as óperas de Puccini colocam um pequeno mais genuíno paradoxo crítico.”

Nosso gosto pessoal e a opinião dos críticos coincidem apenas de vez em quando. A expressão “gosto não se discute”, para mim, revela um desejo de não querer conhecer a opinião dos críticos, de não querer discutir e aprimorar conceitos. Não se trata, na verdade, de gostar, e sim de perceber. Eu leio os críticos para tentar enxergar o que eles enxergam nos filmes, e decidir se aquilo me serve ou não. Leio para ser capaz de perceber melhor; para não ficar trancafiado no meu modo de ver de hoje.

Se eu gosto da ópera de Puccini é problema só meu, mas se a crítica oficial não gosta, é problema de todos. Em qualquer cultura há um saber oficial que, certo ou errado, é levado em conta na convivência social. Confrontar nossos gostos e porquês com os da crítica oficial não é obrigação de ninguém, mas é necessário para quem quer aprender a perceber melhor. Não basta, neste caso, dizer que A é bom ou B é ruim. É preciso começar a discutir a sério o que é arte, o que é música, o que é ópera, etc. Ninguém é obrigado a fazer isso, mas só evolui quem faz.




4053) Dicionário Aldebarã XII (18.2.2016)


(ilustração: Charles Demuth)

O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos colonizadores terrestres.  Seu vocabulário exprime as características da natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da cultura.  Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno Dicionário Interplanetário de Bolso.

“Karyang”: reunião de amigos para relembrar fatos ocorridos muito tempo atrás. “Vuvitos”: xícaras para café ou chá, cujo fundo se eleva à medida que há menos líquido nela. “Arnantrim”: a disposição peculiar dos vasos de plantas numa casa, nas áreas que em alguma hora do dia ou época do ano estarão sendo banhadas pelo sol. “Dalhassa”: escudo quadrado de combate, imantado, capaz de capturar armas inimigas.

“Satonima”: pequena sanfona com poucas teclas, que só consegue tocar meia dúzia de músicas, conhecidas por todos. “Balâmias”: cantigas saudosas onde cada improvisador principia dizendo o nome de sua terra natal e depois tentando encaixar versos com o maior número possível de rimas para ele. “Triamondes”: uma complexa hierarquia de favores mutuamente devidos, que em algumas aldeias chega a ter mais importância do que os laços de parentesco.

“Luhrvins”: sucos de frutas, de cores e densidades diferentes, que são misturados nas jarras e nos copos, visando efeitos cromáticos. “Andigoom”: o uso de bandeiras com símbolos coloridos, hasteadas junto à porteira de entradas das fazendas, para passar recados aos vizinhos. “Gundrillans”: espécie de besouros de carapaça colorida que se movem muito lentamente e são colocados nas paredes para formar desenhos ornamentais que se modificam aos poucos.

“Gampras”: movimentos de dança tradicionais, complexos, que em festas familiares cada dançarino tem que executar no centro de uma roda, acompanhando qualquer música tocada. “Klidudu”: estilo de decoração caseira envolvendo objetos aleatórios arrumados em volta de uma lâmpada que, quando acesa, projeta na parede formas ou palavras feitas das sombras. “Viniloy”: servidores públicos presentes em cada bairro para dirimir questões legais entre as pessoas, através de hipnose coletiva.

“Renevins”: pequenas serpentes domésticas, inofensivas, inteligentes, que ajudam na limpeza de lugares estreitos e de difícil acesso. “Lumlums”: hélices colocadas em pontos estratégicos da casa (janela, portas, clarabóias) para captar as correntes de ar e redistribuí-las, melhorando a ventilação interna. “Abôndis”: testes escolares onde, na hora que toca o recreio, cada aluno só tem direito de sair e brincar se der a resposta certa a uma pergunta feita de improviso pelo professor.