sexta-feira, 5 de junho de 2015

3833) "Sangue de Pantera" (6.6.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 6 de junho, será exibido Sangue de Pantera (1942) de Jacques Tourneur. Este é talvez o mais famoso do ciclo de filmes de terror que o produtor Val Lewton (1904-1951) ajudou a criar na década de 1940, um projeto pessoal dele dentro da produtora RKO. Supervisionando o trabalho de diretores como Jacques Tourneur, Mark Robson, Robert Wise e outros, Lewton definia o estilo geral dos filmes, reescrevia o roteiro, escolhia o elenco. Seu nome é muito citado quando se discute o papel criativo de um produtor, principalmente em filmes B, de baixo orçamento, e até que ponto um produtor que é também um criador (Lewton era romancista, e publicou contos em revistas de pulp fiction da época) pode contribuir para a qualidade de um filme.


Sangue de Pantera recupera um tema antigo do cinema de terror, o de pessoas híbridas de felino, mito cuja versão mais popular é a do lobisomem. O filme conta a história de Irena (Simone Simon), uma mulher de origem sérvia que acredita na lenda do “povo pantera”, que quando sexualmente excitados transformam-se em feras. Isto a leva a resistir a todas as tentativas do incauto norte-americano (Kent Smith) que se apaixona por ela.

Foi o primeiro filme produzido por Lewton em seu projeto de filmes de terror, e o seu enorme sucesso (foi a maior bilheteria da RKO naquele ano) deu ao produtor a carta branca necessária para impor seu estilo sem interferências dos executivos. Lewton produziu entre 1942 e 1946 nove filmes de consistente qualidade em roteiro, fotografia, montagem e interpretação. Sangue de Pantera foi refilmado anos depois por Paul Schrader como A Marca da Pantera, com Nastassia Kinski.

A direção de Jacques Tourneur faz um uso sugestivo da iluminação em preto-e-branco, com luzes e sombras produzindo uma impressão permanente de indecisão, onde não se sabe direito o que está sendo mostrado na tela. Câmera subjetiva, câmera em movimento, cortes bruscos, uso imaginativo de sons e silêncios, tudo isto ajudou a criar um clássico do estilo “não mostrar o monstro”. A violência ocorre geralmente fora da tela, sugerida por uma narrativa indireta, onde pequenos detalhes ganham uma ressonância ameaçadora.  É um clássico do cinema de terror, e muitas vezes citado quando se quer mostrar que um baixo orçamento é um problema que pode ser superado por criatividade.



quinta-feira, 4 de junho de 2015

3832) TV e cultura popular (5.6.2015)



Estive nesta semana em Campina Grande, participando do XII Seminário Os festejos juninos no contexto da folkcomunicação e da cultura popular, promovido pelo Grupo de Pesquisas Comunicação, Cultura e Desenvolvimento, do Departamento de Comunicação Social do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba). Convidado pelo prof. Luís Custódio, meu eterno presidente do Cineclube de Campina Grande, participei da mesa “Cinema brasileiro e manifestações da cultura popular”, juntamente com os professores Rômulo Azevedo (UEPB), Gilvan de Melo Santos (UEPB), João Batista de Brito (UFPB), João Carlos Beltrão (IFPB/ABD-PB), Luís Antonio Mousinho (UFPB) e Sebastião Guilherme Albano da Costa (UFRN).

Minha comunicação se fez em torno de três exemplos da dificuldade de relacionamento entre cinema/TV e cultura popular. Exemplo um: um cineasta viajou ao Alasca para registrar um ritual de uma tribo esquimó, e o tal ritual consistia num xamã cantando uma litania e batendo com uma matraca na perna, durante 8 horas seguidas. “O que devia fazer a equipe?”, perguntava o cineasta. “Filmar e reproduzir as oito horas completas? Filmar apenas uns quinze minutos e explicar à plateia: ‘É isso, durante oito horas’?”

Exemplo dois: uma equipe de TV brasileira viaja para filmar uma romaria religiosa num interior remoto. Por um erro de comunicação a equipe pensou que a romaria aconteceria num dia X, mas ficou sabendo que seria de fato no dia seguinte, quando já estavam com as passagens de volta compradas. Depois de muita negociação, foi possível convencer as pessoas locais a fazerem uma “romaria fake” no dia mais conveniente para a equipe. Que valor tem esse registro? Que respeito a comunidade local ficará tendo pela TV, depois de constatar na carne o grau de “mentira” do que aparece na tela?  Que respeito terá por si mesma, por ter colaborado com a mentira alheia?

Exemplo três: em filmes ou reportagens sobre cantadores de viola, a TV, essa tesoura faminta, costuma cortar pelo meio uma sextilha ou uma décima, para poupar tempo. Interromper um verso de cantador sem mostrar o final é como mostrar a cobrança de um pênalti sem mostrar se a bola entrou ou não. Equipes de cinema e TV em geral têm um profundo desconhecimento sobre as coisas que vão filmar. Têm suas próprias prioridades, preferências, opções. Na verdade, pensam somente no que deve aparecer na tela, não no que acontece diante da câmera. A cultura popular vê essas equipes com uma desconfiança mais do que justificada, porque sabe que está servindo apenas de presunto para o sanduíche alheio.



3831) Histórias proféticas (4.6.2015)



De vez em quando, principalmente no ramo da ficção científica, diz-se que um livro é profético, que adivinhou o futuro. Julio Verne teria adivinhado a invenção do submarino e do cinema (este em O Castelo dos Cárpatos), Isaac Asimov teria profetizado a invenção de automóveis que se guiam sozinhos (e conversam com o motorista), Fulano ou Sicrano teriam antevisto a Internet. (Meu candidato preferido para esta última façanha, é Mark Twain, em 1898; ver aqui: http://tinyurl.com/o43bsdb). Na verdade não é tão simples assim. Verne e Asimov acompanhavam de perto a pesquisa científica e tecnológica dos seus respectivos tempos. Há coisas que sabemos serem possíveis, mas não temos ainda a tecnologia (ou o dinheiro) para fabricá-las. Um escritor pode escrever uma história e pressupor que a tecnologia e o dinheiro já existem.

O mesmo se dá com fatos políticos e históricos. Em 1941, Gil Fox criou uma história em quadrinhos (com desenhos de Lou Fine) para a revista National Comics, descrevendo um ataque a Pearl Harbor, exatamente um mês antes dele acontecer (veja aqui: http://tinyurl.com/pvlcao3). Essa base era a sede da frota naval norte-americana no Pacífico, e seria um alvo natural para qualquer inimigo. Na HQ de Fox, são os alemães que bombardeiam Pearl Harbor, como uma manobra de distração para desviar as atenções de sua verdadeira invasão que ocorre logo depois na Costa Leste. O que faz a HQ de Fox & Fine ser lembrada até hoje é apenas o fato de ter saído apenas um mês antes do ataque japonês, em 7 de dezembro de 1941.

Os japoneses haviam atacado a frota norte-americana no conto de 1914 “Beyond the Spectrum”, de Morgan Robertson, torpedeando navios nas vizinhanças do Havaí e tentando invadir San Francisco. Tido como profético, o conto não faz mais que reproduzir militarmente uma tensão geopolítica que sempre existiu. Robertson (1861-1915), no entanto, é autor de um romance famoso por sua visão profética. Em 1898 ele publicou Futility, em que um navio, o SS Titan, tido como “inafundável”, choca-se com um iceberg numa noite de abril e vai a pique, matando a maioria dos passageiros porque não havia salva-vidas em número suficiente. Os detalhes básicos da história são os mesmos do naufrágio do Titanic, que só veio a ocorrer 14 anos depois. Embora vários detalhes (ver aqui: http://tinyurl.com/c86xo2) justifiquem uma certa perplexidade, acidentes marítimos são relativamente frequentes e semelhantes entre si. Os perigos são os mesmos, os descuidos são parecidos. Nomes pomposos e heróicos também. Coincidências são na verdade convergências de elementos que se repetem.






terça-feira, 2 de junho de 2015

3830) Naquele tempo (3.6.2015)



(Ilustração: Peter Sis)

Naquele tempo, não havia roletas nos ônibus, e o cobrador vinha de banco em banco cobrando a passagem e entregando um ticket minúsculo que ele destacava de um talãozinho. Quando o ônibus estava cheio ele tinha que vir se espremendo entre as pessoas que estavam em pé, cobrando de cada uma.

Naquele tempo, coava-se o café com um coador de cabo de madeira com um círculo de metal que segurava um saco de pano. Depois, jogava-se o pó no lixo e lavava-se o saco de pano, que levava anos para ser trocado (dizia-se que “encorpava o gosto”).

Naquele tempo, se um homem e uma mulher se hospedavam juntos num hotel era preciso apresentar a certidão de casamento.

Naquele tempo, quem comprava um ingresso de cinema podia ver o filme quantas vezes quisesse, bastava não sair da sala de projeção.

Naquele tempo, as passagens aéreas eram no formato de um talão de cheque, com umas 8 ou 10 folhinhas impressas. Depois de emitida, quando se queria mudar a data era preciso ir pessoalmente na loja para que a moça colasse um papelzinho com a data nova sobre a anterior.

Naquele tempo, crianças brincavam com lança-perfume no carnaval, e todo mundo gostava daquele perfume que ardia gelado, e usava máscaras de plástico transparente e colorido para proteger os olhos, porque doía.

Naquele tempo, havia homens nas feiras que carregavam as compras das donas de casa em enormes balaios de vime, na cabeça, protegida pela metade de uma bola-de-futebol de couro com um pano enrolado dentro.

Naquele tempo, quando numa casa qualquer a televisão era ligada, à noite, as janelas ficavam cheias de pessoas que vinham espiar os programas, e eram chamados de “televizinhos”.

Naquele tempo, em dia de eleição, os homens acordavam bem cedo e vestiam seu melhor terno para ir votar.

Naquele tempo, na noite do reveillon, quando chegava a meia-noite desligava-se a eletricidade na cidade inteira durante um ou dois minutos, para assinalar a passagem do ano.

Naquele tempo, quando uma mulher aparecia numa arquibancada num estádio de futebol uma porção de gente vaiava e uma porção de gente aplaudia.

Naquele tempo, quando morria um colega nosso no colégio, nos dias seguintes todo mundo usava um pedaço de pano preto pregado na manga ou no bolso do uniforme.

Naquele tempo, quando uma criança arrancava um dente podia tomar todo o sorvete que quisesse, e quando estava doente ganhava maçãs e uvas verdes, que afora isto só se comia na noite de Natal.

Naquele tempo, quando havia festas nos clubes elegantes, onde a bebida era cara, os rapazes ficavam bebendo cachaça na praça em frente, e só entravam quando já estavam “puxando fogo” (como se dizia naquele tempo).





segunda-feira, 1 de junho de 2015

3829) A estética do fragmento (2.6.2015)



A literatura fantástica tem um subgênero inteiro, ainda mal catalogado, de histórias voltadas para mistérios (de variadas naturezas) envolvendo artefatos, documentos, objetos, móveis, obras de arte, cartas, etc. que por algum motivo estão associados a algum fato extraordinário, e que às vezes são a única pista sobre esse fato. 

Em alguns casos, uma cultura inteira desapareceu e dela ficou apenas um livro, ou um aparelho, ou um monumento. 

Em outros, é um pedaço de um manuscrito, uma relíquia recuperada, como em Um Cântico para Leibowitz de Walter M. Miller. Com esse elemento em mãos, é possível às vezes reconstituir uma história, assim como pegadas e um osso permitem aos cientistas descrever em detalhe um animal e seus hábitos.

Num artigo de Marcio Renato dos Santos na revista paranaense Cândido (#45, abril), é discutido o conceito literário de fragmento, a noção da narrativa fragmentada ou descontínua, que para muitos é uma das marcas do modernismo e de muito que veio depois. 

Essa discussão pode se voltar para a própria estrutura da narrativa, vista não como um fluxo uniforme e contínuo, mas como uma sucessão de flashes, de peças soltas, formando uma espécie de colagem onde a justaposição predomina sobre a sequência. Mas pode se voltar também para a valorização do fragmento em si, do texto que parece ser algo de que se perdeu o começo e o fim, restando apenas um bloco cujos complementos devem ser deduzidos pelo leitor.

O artigo cita Marcelo Coelho, da Folha de São Paulo, que diz: 

“Acho que o interesse pelo fragmento começa com os românticos alemães, Schlegel e Novalis. O interessante é que, provavelmente, os românticos passaram a valorizar esse tipo de coisa quando perceberam a beleza das ruínas arquitetônicas e, especialmente, a beleza misteriosa dos textos gregos e romanos que nos chegaram incompletos.”

Um bom exemplo disso são as citações fragmentárias que Isaac Asimov faz da fabulosa "Enciclopédia Galáctica”, em sua série Fundação, ou as citações que H. P. Lovecraft e seus seguidores fazem do Necronomicon, o lendário códice de magia maligna. 

O fragmento tem a função literária de sugerir o Todo através da Parte, o tubarão através da barbatana. A incompletude é a sua principal força literária. O resíduo tem mais força do que a apresentação (se isso fosse possível) do texto completo da obra – ele nos força a imaginar, a prolongar os contornos do fragmento de maneira a vislumbrar a silhueta da obra completa. Diante do livro completo do Necronomicon, só restaria ao leitor a tarefa passiva de lê-lo. Diante do fragmento, o leitor “escreve” o livro.




sábado, 30 de maio de 2015

3828) Um livro de presente (31.5.2015)



Ganhar livros no aniversário? Beleza! E dar livros no aniversário dos outros pode ser melhor ainda. Presentear livros pressupõe que o aniversariante goste de ler, e que a gente saiba que tipo de livro ele prefere. Já me ocorreu encontrar um livro num sebo, durante uma viagem, comprá-lo, e ficar meses com ele esperando o aniversário de Fulano para fazer-lhe uma surpresa. Pra mim, presentear dessa forma é muito melhor do que passar correndo num shopping, no fim da tarde, para comprar uma coisa qualquer no trajeto para o aniversário de Fulano. Presente não devia ser a obrigação de um dia. Não devia ser, como diz um piadista amigo meu, “o crachá pra entrar na festa”. Devia ser uma coisa de pessoa para pessoa, independente de festa, de data, de compromisso. Entro numa livraria em São Paulo e vejo um livro daquele poeta obscuro que minha amiga Fulana, da Bahia, vive procurando sem achar. Pegar esse livro ali, na hora, pra mandar pra Fulana (mesmo sem aniversário) me parece um gesto de carinho muito melhor do que o “crachá” comprado às pressas.

Como falei, tem que ser um livro personalizado, que tenha a ver com o destinatário. Não vou fazer como outro amigo, que deu de presente à esposa (que nem lia francês) as obras completas de Baudelaire, o poeta preferido dele. Chamo a isso “presente de gringo”. Gringo só faz um favor a você quando sai ganhando alguma coisa com isso. Eu posso não ser fã de Star Trek, mas se meu amigo Sicrano é fã da série e ainda não tem o livro que acabou de sair, por que não levar esse livro para ele?  Presente é pra quem ganha.

Tem outro aspecto interessante no caso mais raro (mas que é o meu) de quem publica os próprios livros. Gosto de dar um livro meu de presente no aniversário de alguém; acho que isso é mais personalizado ainda, porque não é somente algo que eu escolhi, é algo que escrevi, e existe aquela sensação de estar oferecendo metaforicamente um pouco de mim àquela pessoa. Claro que continua a valer a regra do interesse, porque não vou dar um livro de poemas meus a quem não lê poesia, ou de FC a quem não gosta de FC.

E pensando bem, quando damos um livro nosso de presente, esse presente acaba funcionando em mão dupla. Queremos dar aos nossos amigos o prazer de ler um livro nosso, mas queremos também dar a nós mesmos o prazer de contar com a leitura deles. É um presente recíproco, porque dar um livro nosso é pedir em troca a leitura, a atenção, o tempo precioso dos nossos amigos. Queremos seus olhos, sua mente. Um livro presenteado assim é um presente em mão dupla, e às vezes o maior presente que damos a alguém é a leitura do livro que ele nos presenteou.




3827) "O Ladrão de Bagdá" (30.5.2015)




Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes nos sábados às 14:00h, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 30, será exibido O Ladrão de Bagdá (1940). Há uma certa dificuldade na atribuição de autoria deste filme, que durante a produção passou pela mão de vários diretores, e ora é creditado a um, ora a outro. Michael Powell e William Cameron Menzies são talvez os nomes mais citados, mas também dirigiram cenas Alexander Korda (o produtor), Zoltan Korda (irmão deste, e produtor associado), Ludwig Berger e Tim Whelan.  Feito durante a II Guerra Mundial, o filme teve parte das cenas filmadas na Inglaterra e parte nos EUA. Segundo o saite IMDB, é fácil saber o local onde foram feitas várias cenas: o rígido código moralista do cinema norte-americano da época fez com que o traje das odaliscas fosse mais “composto” nas cenas ali filmadas.

É uma fantasia oriental, a história de um jovem que se apaixona por uma princesa e tem que disputá-la com Jafar, um vizir maldoso (interpretado por Conrad Veidt), e recebe a ajuda de um menino de rua interpretado por Sabu, ator-mirim indiano que fez muito sucesso na época. Muitas situações, personagens e cenas deste filme foram reaproveitados anos depois, como homenagem, no desenho Aladim, da Disney.

Foi um dos filmes que marcaram minha infância, porque o vi numerosas vezes (era reprisado nas matinais de domingo), e existem ecos dele no meu romance A Máquina Voadora (1994). Consta que foi um dos primeiros filmes em que foi usada a trucagem de tela verde, ou “chroma-key”, tendo ganho o Oscar de Melhores Efeitos Visuais naquele ano, além de Fotografia e de Direção de Arte.

Um gênio gigantesco saindo como uma nuvem negra de dentro de uma garrafa, em plena praia; um cavalo com asas, e depois um tapete voador, sobrevoando uma cidade; a batalha do herói com uma aranha gigante no centro da teia; autômatos que se movem, dançam, lutam; são só algumas das imagens marcantes do filme, que é talvez a melhor adaptação das Mil e Uma Noites já feita no cinema. Quando Tzvetan Todorov, em sua classificação do Fantástico, colocou num dos extremos de sua escala o gênero “maravilhoso”, referia-se a estes universos onde todos os prodígios, mesmo os que causam espanto, são considerados naturais, porque o mundo onde acontecem é um mundo feito de prodígios onde não vigora nenhum filtro materialista determinando o que pode ou não acontecer.




quinta-feira, 28 de maio de 2015

3826) Somos um videogame (29.5.2015)


(ilustração: Julian Garcia)



Escrevi nestes dias sobre o PlayStation Terra, o hiper-mega videogame que é o nosso universo, de acordo com uma teoria de Rich Terrile, cientista da Nasa. Ele diz que o avanço da computação e do processamento de dados leva a crer que um dia criaremos simulações de computador equivalentes a um mundo de verdade. Diz Terrile que o universo, como a computação gráfica, é formado de pixels, minúsculos pontos ou unidades indivisíveis. Há um limite da matéria além do qual não conseguimos observar, o que sugere que mesmo sendo o número de “pixels” do universo um número espantosamente grande, não é infinito, e se não é infinito é computável.

Cada um desses pixels do nosso mundo, diz ele, pode ser definido por coordenadas de tempo, espaço, volume e energia. Ele diz: “Estamos no limiar de um estado em que seremos capazes de criar um universo, uma simulação, e de descobrir que nós também estamos vivendo no interior de uma simulação parecida, que poderia por sua vez produzir mais uma, e assim por diante. Nossos seres simulados poderiam produzir novas simulações. O que me intriga é que, se existe um criador, e no futuro haverá um criador que seremos nós mesmos, isto quer dizer que nós também podemos ter sido criados por alguém. Somos como deuses, e como criaturas de deuses, e tudo é produto nosso.”

A FC brinca com essa idéia há décadas. No conto de Frederik Pohl “The tunnel under the world” (1954, texto aqui no Projeto Gutenberg: http://tinyurl.com/mbvtvfn) o personagem começa a perceber estranhas descontinuidades e repetições no seu dia-a-dia (os famosos “erros da Matrix”), até descobrir que o seu mundo é uma simulação, com pessoas dotadas de pseudo-consciência e pseudo-livre-arbítrio, feitas para testar campanhas publicitárias. (Premissa retomada por Daniel F. Galouye em seu clássico Simulacron-3, de 1964.)

Fernando Pessoa, estudioso dos filósofos gnósticos, fez experiências com essa idéia de uma hierarquia de deuses criando uns aos outros, cada novo deus menor e mais imperfeito do que o que o criou. No soneto 1 do tríptico “No Túmulo de Christian Rosenkreutz”, ele diz:  

“Quando, despertos deste sono, a vida, / soubermos o que somos, e o que foi / essa queda até corpo, essa descida / até à noite que nos a Alma obstrui, // conheceremos pois toda a escondida / verdade do que é tudo que há ou flui? / Não: nem na Alma livre é conhecida… / nem Deus, que nos criou, em Si a inclui. // Deus é o Homem de outro Deus maior: / Adão Supremo, também teve Queda; / também, como foi nosso Criador, // Foi criado, e a Verdade lhe morreu… / de Além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda; / aquém não há no Mundo, Corpo Seu.”




quarta-feira, 27 de maio de 2015

3825) O romance anagrama (28.5.2015)



A literatura experimental exige uma faísca apenas de imaginação – e uma paciência infinita. Certas experiências literárias radicais do nosso tempo se parecem com auto-punições, com castigos que ninguém teria coragem de impor a outras pessoas mas que, um belo dia, um cara resolve impor a si mesmo. Vejam só o caso de Kabe Wilson, artista multimídia britânico. Quatro anos atrás ele estava pensando na arte do anagrama (misturar as letras de uma palavra para obter uma palavra diferente). Wilson pensou: “E se alguém usasse essa técnica com as palavras de um livro? E se alguém pegasse todas as palavras de um livro, inclusive as repetições, e as misturasse para dar origem a outro livro?”.

O resultado está aí: é o romance experimental Of One Woman Or So, cujo texto tem as 37.971 palavras do livro-ensaio de Virginia Woolf A Room of One’s Own (1929), arrumadas noutra ordem e produzindo um livro diferente. Para combinar, o título do livro é um anagrama do título original, as mesmas letras combinadas para formar novas palavras. (Ver aqui: http://tinyurl.com/lv7jux2).

Wilson usou computadores, processadores de texto, tesoura, cola, papel, para se certificar de que não estaria usando a mais, ou a menos, palavras comuns como “the” ou “be”.  Ele usou palavras do original para aludir a autores nossos contemporâneos, como Edward Said, e para inserir no novo livro menções a Harry Potter ou ao time de futebol Manchester United. “O mais difícil de tudo,” diz ele, “é que eu não sabia se ia ser possível ou não, e só poderia descobrir quando chegasse no fim. O meu medo era de compor o livro inteiro e ficar no final com 300 utilizações de uma mesma palavra, sem nenhum lugar para encaixá-las”.

Isso é literatura? Para mim é, apesar de ser uma versão mais complicada da criação literária, que já tem dificuldades de sobra. Mas Kabe Wilson diz: “Eu me vejo mais como um artista plástico do que como um escritor. Era importante ter, no final do processo, alguma coisa que eu pudesse colocar numa exposição”. O livro está exposto em 145 pranchas tamanho grande, com todas as palavras recortadas e coladas em suas novas posições.

Nesta coluna, escrevi dias atrás sobre “Livros interferidos”. Os textos literários (e os livros impressos que lhes dão suporte) estão se tornando uma nova matéria-prima, um novo material bruto. Visto geralmente como o fim de um processo literário, o livro impresso é agora o ponto de partida para um novo processo de criação. Reflexo de uma época de abundância de informação, tecnologias de manipulação do texto a custo zero, atitude de ambígua veneração para com as obras canônicas.



terça-feira, 26 de maio de 2015

3824) PlayStation Terra (27.5.2015)



(O 13o. andar)

Bato nessa tecla há trinta anos. O mundo em que vivemos não existe, ou pelo menos não existe como imaginamos. O planeta Terra; a humanidade e a histórias de suas civilizações; a cidade em que vivemos; as pessoas que conhecemos; a nossa vida no dia a dia – tudo isso não passa de uma simulação. Nossa consciência foi ativada artificialmente por seres mais poderosos do que somos capazes de imaginar.  E eles nos acompanham com o interesse (e o tédio eventual) de quem joga um videogame ou de quem roda no computador uma simulação para avaliar processos e resultados.

Essa idéia familiar à geração “Matrix” surgiu para mim quando li o romance Simulacron-3 de Daniel F. Galouye (adaptado para o cinema como O 13º. Andar, de Josef Risnak, 1999).  A FC explorou de mil maneiras este tema do indivíduo que descobre que seu mundo não é real, é uma simulação feita em computador, e que ele próprio não existe, é apenas o resultado de um conjunto de instruções.

Agora, Rich Terrile (cientista do Centro de Computação Evolucionária e Design Automativo, no Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa) sugere que esse gigantesco projeto simulatório não é obra de alienígenas, mas de pessoas do futuro (aqui: http://tinyurl.com/cpmoqgs). Diz ele: “A cada 6 ou 8 anos surge uma nova versão do PlayStation. Nossa expectativa é de que em 30 anos uma versão, que deverá ser PlayStation 7, será capaz de computar cerca de 10 mil vidas humanas simultaneamente, em tempo real, ou uma vida humana completa em cerca de uma hora. Quantos PlayStation há no mundo? Uns 100 milhões. Pense em 100 milhões de consoles, cada um contendo 10 mil humanos. Conceitualmente, teremos mais humanos vivendo em PlayStations do que os humanos de carne e osso que existem hoje na Terra”.

Terrile ecoa uma frase famosa de Philip K. Dick ao dizer que a realidade não está toda pronta ao mesmo tempo, mas em forma potencial, e só se concretiza quando alguém a observa (como a Física Quântica tem demonstrado em relação ao mundo sub-atômico). Terrile compara o mundo a um jogo como a cidade de Grand Theft Auto IV: Liberty City, que seria um milhão de vezes maior que a capacidade do console, se existisse toda ao mesmo tempo. Acontece que cada trecho da cidade só aparece quando o jogador vai para lá – é como um cenário escuro e um ator andando, sob o facho de um holofote. O que não está sendo iluminado pelo holofote deixa de existir, até ser iluminado novamente. Cada um de nós viveria no seu circulozinho de luz, que se tornaria mais real, mais encorpado, quando muitos interagissem na mesma área. Talvez o nosso presente seja o passatempo sádico dos nossos tataranetos do futuro.