segunda-feira, 6 de abril de 2015

3781) "Guardiões da Galáxia" (7.4.2015)



Advertência necessária: gosto de quadrinhos mas não distingo sequer entre a Marvel e a DC Comics, que no mundo das HQs são como a Microsoft e a Apple. 

Não presto atenção às guerras editoriais e corporativas, e quando ouço as palavras “Batman”, “Superman”, “Homem Aranha”, o que me vem à mente não é a fisionomia atual do herói, é uma compostagem de tudo que li e vi sobre eles nos últimos cinquenta anos.

Guardiões da Galáxia (2014) de James Gunn é um filme que resulta disso, de uma compostagem de tipos e situações conhecidos, rearranjados como os pedregulhos de um calidoscópio, de forma a produzir uma falsa impressão de ordem. 

A ficção científica é nesse universo apenas um eco distante, uma espécie de ruído de fundo. O cinema de heróis é um almoxarifado cenográfico onde se vão buscar personagens já prontos, dos quais basta trocar o nome, o ator e a roupa, e aí estão de novo Han Solo e Chewbacca e Indiana Jones e Hulk e outros, sem necessidade de pagar direitos. 

É um filme de ação interplanetária para o público infanto-juvenil – qualquer filme que tenha um guaxinim-falante pilotando uma espaçonave é infanto-juvenil, e ponto final. Sua relação com a FC é a mesma de certas histórias de Carl Barks estreladas pelo Pato Donald e seus sobrinhos.

Assistir esses filmes de ação ininterrupta (que eu, pelo menos, assisto com prazer) é como assistir as “Videocassetadas do Faustão”: ficamos olhando porque a fórmula nos garante que de dez em dez segundos alguma coisa movimentada vai acontecer. Essa promessa é cumprida em Guardiões da Galáxia, que é uma mistura de gincana, trem-fantasma, desfile no sambódromo, Keystone Cops e (como se tornou obrigatório na FC pós-George Lucas) duelos de aviõezinhos da I Guerra Mundial.

Entender a história não é possível, nem necessário, porque todas essas histórias giram em torno de um objeto fácil de reconhecer (neste caso “o Orbe”, uma esfera de metal com propriedades borgianas) que pode ser tomado, furtado, escondido, roubado, prestidigitado de mil maneiras. (Queria ver um filme desses cujo McGuffin fosse do tamanho de uma pirâmide.) 

É sempre arriscado emitir opiniões desdenhosas sobre franquias que têm fãs, porque todo fã é um talibãzinho em defesa dos produtos que adquire. Na verdade não sou fã de ninguém, sou fã das mitologias do nosso tempo, que botam no bolso as mitologias gregas ou nórdicas, pelo menos nos quesitos som, fúria e valores-de-produção. Assim como os gregos criaram o Monte Olimpo à sua imagem e semelhança, criamos nós Gotham City, Metropolis e essas galáxias tão parecidas com o mundo corporativo, manipulativo, cruel e bem assalariado que as imaginou.




sábado, 4 de abril de 2015

3780) Caminhos do insólito (5.4.2015)



Participei dias atrás do VI Encontro Nacional “O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional”, realizado na Uerj (Rio de Janeiro), sob a coordenação do Prof. Flávio Garcia, numa mesa que contou com as presenças de Júlio França e Flávio Carneiro.  Os “encontros do insólito” na Uerj são um importante evento acadêmico de discussões sobre a literatura fantástica, tendo gerado inclusive uma série de livros reunindo as conferências e palestras dos participantes, num arco temático que inclui Murilo Rubião, literatura gótica, Mia Couto, realismo mágico, Borges, ficção científica e por aí vai. Juntamente com o Congresso de Literatura Fantástica (CLIF) organizado pelo Prof. André de Sena na UFPE (Recife), é um dos eventos acadêmicos mais importantes no estudo do que é variadamente chamado de “literatura não-mimética”, “literatura anti-científica”, “literatura meta-consensual”, “literatura da imaginação”... O Fantástico é como Tebas, a cidade das cem portas: qualquer uma lhe dá acesso.

O Fantástico tem mil facetas, porque são mil os pontos de vista que o examinam. O Fantástico (que em suas franjas se confunde com o estranho, o bizarro, o grotesco, o maravilhoso, o absurdo, etc.) é um curto-circuito na narrativa realista de ficção, uma fórmula que exerce um efeito tão poderoso sobre quem a cultiva. Nossa noção de realidade é construída pelas camadas sucessivas de narrativas que nos são impostas ou oferecidas ao longo da vida. Mesmo as narrativas que não aceitamos (as narrativas religiosas ou políticas de interpretação-do-mundo, p. ex.) exercem um certo poder sobre nós, produzem uma inflexão qualquer em nossa maneira de ver as coisas.

No caso da ficção, o Fantástico produz, na experiência da leitura, um choque de estranhamento, de paradoxo, de crise interpretativa. Ler uma história é crer nela pelo menos no nível palavra-a-palavra: “Certa manhã, depois de uma noite de sonhos inquietos...”  Vamos acreditando em tudo à medida que lemos, porque esse é o mecanismo inevitável da literatura, e nesse acreditar transpomos sem perceber um limite onde começam a suceder coisas que relutamos em aceitar.  O Fantástico não envolve apenas uma negação instintiva dos fatos narrados (“não, isso não pode acontecer na vida real!”), mas um retratar-se, uma negação da própria crença momentânea que tivemos no instante de leitura da frase. É a nossa própria voz interior, como leitores, que nos “diz” (porque está lendo e entendendo) o fato bizarro e insólito, o fato inacreditável.  É um debate entre o Eu que leu e por um segundo acreditou e o Eu que se ergueu, vigilante, e proibiu que ele acreditasse.



sexta-feira, 3 de abril de 2015

3779) Fim dos tempos (4.4.2015)


(ilustração: Saul Steinberg)

Um dia ainda vamos lembrar dos tempos difíceis de hoje e sentir saudades deles, e vamos chamá-los, com nostalgia, “o tempo em que tínhamos tudo”.  Porque já estaremos num tempo em que vai ser mais importante ter uma arma e munição à cabeceira do que comida no refrigerador.  A humanidade gosta de correr riscos, ou se não gosta pelo menos dá essa impressão, a julgar pelos riscos desnecessários que corre. Um futuro tipo Mad Max 2 não é mais impossível do que um futuro sem guerras, e ainda existe tanta gente que luta por um mundo sem guerras. “Pobrema”, diria o coronel Galdino, “é que guerra engorda mais o putufu”.

Se a vida é de fato um sonho, como queria o poeta, talvez não seja o sonho de algum redator de Hollywood, e sim o pesadelo de algum professor de filosofia lituano da década de 1930. Em seu mundo paralelo, ele usou, para descrever o mundo industrial pós-moderno, a expressão “cobra que se devora a si mesma deixando apenas matéria negativa em seu lugar”. A imagem o deixou tão fascinado que ele foi o primeiro humano em mais de dois séculos a dar uma guinada na História pela mera intensidade de um pensamento. O mundo em que vivemos é o que ele vem pensando desde então, numa dimensão onde não existe morte.

O parágrafo acima é a sugestão para um começo de conto fantástico, mas seria possível torná-lo mais FC. Digamos que essa imagem mitogeométrica foi divulgada por um grupo de cientistas em experimentos quânticos, e foi ela que sugeriu, a certa altura, a formulação relativamente simples de algum abstruso entrelaçamento infratômico. A descoberta desencadeou, entre outros efeitos medianos, a criação de um videogame simulacrônico onde cada um de nós é apenas um algoritmo ensinado a pensar como cada um de nós. Nós, a Terra, nosso universo, somos um videogame para alienígenas ociosos e com uma dimensão a mais que nós.  Jogam conosco com a mesma sede de rejuvenescimento que fazia os deuses do Olimpo descerem aos bailes rurais da Grécia.

O Universo é um “Show de Truman” onde Truman somos sete bilhões de inadvertidos, quebrando a cabeça com os problemas daqui, esquentando o sangue com as patifarias daqui, perdendo o sono por causa das incertezas daqui. E o tempo todo, como naqueles contos do tempo do romantismo, “era tudo um sonho”. Tudo um jogo, não menos honroso que um xadrez, não menos desfrutável do que se fosse um futebol. O mundo não é real? Que seja, mas cada hipótese do Real é um conjunto de regras. É só tê-las em mente e aplicá-las a uma pseudo-existência qualquer. O jogo é para ser jogado, a vida é para ser vivida, mesmo que a gente descubra que é de mentira.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

3778) Trilogia Comando Sul (3.4.2015)



Um dos projetos de tradução em que estou envolvido desde o ano passado é o da trilogia Southern Reach (“Comando Sul”), de Jeff VanderMeer, que está sendo publicada no Brasil pela Editora Intrínseca. O primeiro volume, Aniquilação (“Annihilation”) já saiu. No momento, estou finalizando a tradução do segundo volume, Autoridade (“Authority”). O terceiro, Aceitação (“Acceptance”) deverá sair no fim deste ano ou começo do ano que vem, mas por questões de cronograma talvez venha a ser traduzido por outra pessoa.

O primeiro livro é o diário de uma bióloga (os personagens não recebem nomes) membro de uma expedição à Área X, uma região misteriosa que, há mais de trinta anos, foi isolada do mundo por uma barreira invisível, com apenas um pequeno portal por onde os EUA (isto se dá mais ou menos no litoral da Flórida) enviam expedições sucessivas para investigar. As expedições são às vezes exterminadas com violência por forças desconhecidas, ou então seus membros se matam uns aos outros, ou voltam todos incólumes mas desmemoriados, incapazes de dizer algo útil sobre o que viram, e morrem rapidamente de um tipo raro de câncer.

Não vi nas entrevistas de VanderMeer nenhuma referência ao cinema de Andrey Tarkovsky, mas sua trilogia me lembra em primeiro lugar o filme Stalker (sobre uma área igualmente misteriosa e inacessível, bloqueada pelo governo, e que produz em quem a invade uma espécie de estado alterado de consciência) e a certa altura também Solaris (um ambiente que produz réplicas semi-conscientes de pessoas reais).  Mas o foco de VanderMeer muda no segundo livro. Autoridade ocorre fora da Área X, nas instalações do Comando Sul, a agência do governo (ligada à CIA) a quem cabe investigar o mistério. O novo protagonista, Controle, é o chefe recém-nomeado das investigações, perdido num labirinto kafkeano de burocracia e conspirações políticas, enquanto tenta fazer sentido dos fatos espantosos daquela área onde surgem “anomalias topográficas” (uma torre invertida, entrando de chão adentro, etc.) e onde pessoas e animais parecem sofrer mutações espantosas e aceleradas.

VanderMeer tem uma prosa rica e precisa, principalmente no primeiro livro, que é mais enxuto e mais evocativo. Sua obra (City of Saints and Madmen, Secret Life, etc.) sempre se destacou por se voltar para a biologia, a botânica, a oceanografia; é uma FC do planeta Terra, ou de planetas semelhantes à Terra em sua biodiversidade bizarra. Sua trilogia mostra um mistério científico espantoso relegado a segundo plano (de verbas, orçamento, pessoal, etc.) num mundo caótico, consumido pelo terrorismo e pela crise econômica.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

3777) A literatura da fome (2.4.2015)



Contos de fadas não são contos onde fadas aparecem. Os contos populares ou folclóricos, como os que foram recolhidos pelos Irmãos Grimm na Alemanha, e entre nós por Câmara Cascudo, Sílvio Romero e muitos outros, podem ter alguns perfis que não têm nada a ver com o “feérico” ou com o propriamente maravilhoso. 

Numa entrevista conjunta com Neil Gaiman concedida à revista Locus (2002), Gene Wolfe fala sobre os livros de “bad boys”, histórias sobre garotos que aprontavam, como Tom Sawyer. Ele comenta: 

“Os garotos modernos não conseguem imaginar que houve um tempo em que a maioria dos garotos vivia perpetuamente faminta. Eles acordavam com fome e iam dormir com fome.”

Muita da ação incessante de algumas novelas picarescas se deve ao fato de que o pícaro está mesmo se acabando de fome, e por isto as histórias onde atua são tão animadas.  Devido à fome ele vai à luta, sofre golpes, aplica golpes, corre riscos, trai concorrentes, sacaneia quem o ajudou, tudo porque a fome assassina que sente toma precedência sobre tudo. 

Neil Gaiman, pegando a deixa de Wolfe, completou:

“’João e Maria’ (‘Hansel e Gretel’) conta a história de uma família durante uma grande fome coletiva, quando eles não tinham comida bastante para duas crianças e dois adultos, e lamentavelmente iam ter que se livrar das crianças. É a respeito de duas crianças esfomeadas na floresta que praticamente tropeçam nessa casa feita de pão de gengibre. A trilha que eles deixam é devorada por pássaros famintos, e eles mesmos não demoram a ser apanhados por uma mulher que vê neles uma refeição em potencial. É uma história sobre fome.”

Por isso que tantos milagres desses contos, inclusive os do cordel, têm a ver com comida. 

Em seu Diário da Guerra do Porco (1969) Bioy Casares fala de um personagem que dorme à noite na casa de outra pessoa, e diz que de manhã, “como nos contos de fada, havia uma mesa posta à sua espera”. 

A mesa posta por mãos invisíveis diante do aventureiro que entra sem licença num castelo ou mansão; a toalha mágica que basta ser sacudida e estendida para se cobrir instantaneamente de vinhos e vitualhas. A garrafa que nunca se esgota, o prato que magicamente se renova.  

Para encerrar as histórias havia até a fórmula tradicional: 

“E o príncipe casou com a princesa, deram uma festa maravilhosa, eu fui, e quando voltei trouxe uns doces e uns salgadinhos para vocês, mas quando fui atravessar o rio escorreguei numa pedra, e caiu tudo na água e o rio levou!”  

A comida é mágica, é sagrada, é trazida por um pássaro para uma torre ou derrubada por um gremlin nas águas do rio, mas é sempre uma coisa encantada em si.







3776) A política pavloviana (1.4.2015)



E assim, como quem não quer nada, chegamos a um repertório de memes variado, irresistível, capaz de produzir, numa multidão  bem estudada, reações previsíveis. Na política, p. ex., termos como “tucanalha” e “petralha” são repetidos por todos aqueles a quem interessa transformar palavras como estas em detonadores da violência irracional em A ou B. É um processo de adestramento, como aquele a que se submetem os pitbulls e outros cães de guarda: atacar sem pensar, assim que receber o estímulo longamente treinado.

Quando fornecemos a grupos em disputa não apenas motivos para que se odeiem, mas também lhes damos um vocabulário de ódio (insultos que deverão dizer, insultos que aprenderão a detectar no discurso alheio, comparações pejorativas, clichês comportamentais, etc), basta ficar observando à distância e introduzindo na redes os memes necessários, nos pontos nevrálgicos (saites mais visitados, postadores mais seguidos), sempre que for preciso. E ficou provado que é possível reger, ao longo de alguns dias, o som e a fúria de milhões de pessoas que não se conhecem umas às outras e que julgam ser dotadas de livre arbítrio.

As táticas repetem algumas do tempo da república velha: inventar apelidos, nomezinhos ofensivos ou desdenhosos, palavras tão odiadas que se tornem tabu, que se tornem senha, password, pronta para detonar em qualquer ocasião. É muito útil saber que um indivíduo vai do zero ao crime em menos de um minuto, se a palavra que ele foi adestrado para odiar for pronunciada. Chamar os adversários na política de petralha ou de tucanalha não é muito diferente de tratá-los no futebol por mulamba ou bambis. O que importa é que o nome de achincalhe seja usado e repetido até virar um meme, um mantra, um gatilho em forma de sons pronto para disparar ao mais discreto sinal do dedo de alguém.

As pessoas não questionam. Acham que aquilo se deve à raça com que sempre souberam defender suas opiniões, ao fato de que elas estão certas e as outras erradas, etc. e tal. Pessoas que não cultivam a Razão auto-questionadora sempre têm desculpas para o que fazem, por menos deliberado ou consciente que pareça ter sido. Não sabem que estão sofrendo implantes mentais às custas apenas de mera repetição do meme com variações de contexto. Impossível ouvir a frase 73 sem dar a resposta 73, impossível ver a imagem 49 sem ter a reação 49. Tudo é imposto ao estilo rajada de chumbo, o que bater bateu, não dá para prever comportamentos individuais, mas num universo quantitativo na casa das dezenas de milhões dá uma segurança razoável para que o efeito desejado seja atingido.




segunda-feira, 30 de março de 2015

3775) A lista da Cinemateca (31.3.2015)



A Cinemateca Francesa programou para o período entre 18 de março e 18 de maio deste ano uma mostra com um panorama do cinema brasileiro, desde as origens até hoje (aqui: http://tinyurl.com/pepqo5v). São 72 títulos, e uma mostra tão ampla dificilmente deixaria de mostrar alguns dos chamados filmes inevitáveis, desde pioneiros como Mário Peixoto e Humberto Mauro, passando pela chanchada carioca, a Vera Cruz paulista, o Cinema Novo, o cinema marginal, o documentário, a “Retomada”, etc.  Deixo aos diretores o chororô de “deixaram Fulano de fora”. Alguém sempre vai ficar de fora. 

Em matéria de cinema nordestino (o que inclui conteúdo, não só origem de produção) temos além dos ciclos de cangaço, etc., filmes como Cinema, aspirina e urubus de Marcelo Gomes, Cabra marcado para morrer de Eduardo Coutinho e O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho.  Devo lembrar também A hora da estrela de Suzana Amaral, que revelou a paraibana Marcélia Cartaxo.  O que me surpreendeu foi o grande número de filmes marginais do tempo do chamado “cinema udigrudi”, inclusive títulos obscuros como Hitler 3o. Mundo de José Agrippino de Paula e Os Monstros de Babalu de Elizeu Visconti, ao lado de outros mais estudados pela crítica, como os de Julio Bressane (Matou a família e foi ao cinema, etc.), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha, etc.) e outros.

Me surpreendeu também a inclusão de filmes de Zé do Caixão.  Enquanto o cinema udigrudi, com sua sujeira narrativa, seu niilismo político e seu deboche cruel me parecem até corresponder a um certo gosto da crítica francesa, sempre achei que Zé do Caixão nunca teria por lá a mesma recepção que tem nos EUA, onde há um certo culto em torno de “Coffin Joe” e sua filmografia. A mostra parece ter sido organizada pelos pesquisadores ligados à Cinémathèque. É sempre útil estudar o modo como os outros nos estudam. O “recorte”, como se diz, já é uma forma de crítica, uma tentativa de organizar diferentes tipos de prioridade.

A crítica francesa já foi acusada como responsável por muitos cacoetes do Cinema Novo; aquilo que os franceses elogiavam num ano era repetido por muita gente nos filmes do ano seguinte. O que tanto pode ser uma coisa ruim como uma coisa boa, porque o que vale, sempre, é o resultado na tela. Acontece também com os EUA: muitas coisas boas produzidas lá eram esnobadas na terra natal e foram os franceses que souberam lhes dar valor. De Edgar Allan Poe ao jazz, muita coisa norte-americana só ganhou a estatura que tem hoje depois que os franceses assinaram embaixo. O olho francês sobre o nosso cinema pode continuar a ser uma influência positiva.


domingo, 29 de março de 2015

3774) Contos curtíssimos (29.3.2015)



(Hemingway bebê)

Sempre que falo aqui em contos curtíssimos, contos-relâmpago num mínimo de texto, cito o exemplo de Hemingway.  Numa mesa do famoso restaurante Algonquin, em Nova York, escritores debatiam para ver quem escrevia o conto mais curto, e Hemingway rabiscou num guardanapo de papel as famosas seis palavras: “For sale. Baby shoes. Never worn” (“Vende-se. Sapatos de bebê. Sem uso.”)

Textos tão compactos criam uma rede interna de relações, como um ideograma. Por que alguém venderia um par de sapatos de bebê?  E por que nunca foram usados? A explicação mais imediata é de que alguém começou a preparar um enxoval de bebê e depois desistiu, porque o bebê foi perdido. Há um pequeno drama humano nessas palavras.  E mais ainda quando, para além do realismo da situação, atentamos para a sutileza de que o “autor” do texto, certamente, são os pais da criança, e que o último detalhe (“sem uso”) é o mais doloroso, mas valoriza o produto à venda. 

A emoção está presente através da secura da linguagem. Basta sugeri-la, sem exprimi-la diretamente.

O saite Open Culture (aqui: http://tinyurl.com/kkoa6kz) afirma que o texto não é de Hemingway. Já existia em 1906, numa coluna de jornal chamada “Terse Tales of the Town”, um texto dizendo: “For sale, baby carriage, never been used. Apply at this office”.  Depois dessa data há várias versões, algumas se referindo a sapatos de bebê, outras a um carrinho. Há inclusive uma tirinha de quadrinhos de 1927 indicando-a como “o maior conto curto do mundo”.  (Não transcrevo todos os exemplos aqui, por falta de espaço.)  Tudo indica que Hemingway, se é que a aposta no Algonquin é verdadeira, se baseou mais na memória do que na imaginação, e de alguma forma conhecia esses exemplos mais antigos.
Isso mostra o quanto, na cultura digital, é fácil pegar um mentiroso. Já escrevi em algum lugar que não há originalidade que resista a um bom levantamento bibliográfico. A busca eletrônica pode descobrir em horas algo que levaria anos para fazer em bibliotecas, compulsando coleções encadernadas de jornais empoeirados e obscuros. 

O miniconto de Hemingway não perde com isso sua força literária. Ela fica até maior se considerarmos agora, podendo fazer a comparação entre as sucessivas versões, que o texto foi sendo limado, reduzido, aperfeiçoado até chegar à sua irretocável versão atual de seis palavras. O que perde é a “lenda urbana” criada em função do autor famoso. 

E por vias transversas acabamos batendo noutra característica da cultura digital: a mania de atribuir uma boa frase a uma pessoa famosa, na crença de que isso ajudará a propagá-la. Crença perfeitamente justificada, aliás.




sexta-feira, 27 de março de 2015

3773) "O Anjo Exterminador" (28.3.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão deste sábado, haverá debate comigo e o prof. Sérgio Almeida.)

Para hoje está programado O Anjo Exterminador (“El Ángel Exterminador”, 1963) de Luis Buñuel, realizado no México logo depois que Buñuel, tendo passado um período de relativa obscuridade, ganhou prêmios internacionais, provocou escândalo com Viridiana (1961) e voltou a chamar a atenção da crítica. Em O Anjo..., o milionário Nobile traz para sua mansão um grupo de amigos para um jantar, após a apresentação de uma ópera. Acabado o jantar, eles descobrem que não conseguem sair do salão principal da casa, embora as portas estejam abertas. Uma espécie de bloqueio mental os impede de cruzá-las, e do mesmo modo as pessoas de fora não conseguem entrar na casa. Há uma barreira invisível, mas não é física, e sim mental.

Buñuel mostra a lenta bestialização daquelas pessoas ricas e sofisticadas (seriam chamadas hoje de “coxinhas”) quando começam a sentir falta de comida, água, sanitários. Choram, desesperam-se, trocam socos e acusações, vão aos poucos regredindo a um estágio animalesco. Trancafiados num salão aberto, em breve não se distinguem mais de um grupo de moradores de rua, sujos e famintos. Alguns começam a morrer, e os cadáveres são escondidos em armários.

Assim como o personagem de Feitiço do Tempo de Harold Ramis fica preso no trecho de tempo, os personagens de Buñuel ficam presos num espaço, sem nenhuma explicação. O interesse do diretor é mostrar o processo de deterioração física e moral de todos. Buñuel (tratei disto em meu livro O Anjo Exterminador, Ed. Rocco, 2002) traz para seu cinema influências do movimento surrealista francês dos anos 1920, do qual fez parte; da literatura de folhetim européia; do romance gótico de terror dos séculos 18 e 19.  Seu individualismo feroz o fez investir contra a Igreja, o Estado, a Burguesia, contra tudo que, a seu ver, limitava as liberdades do indivíduo.

É um filme fantástico que não sugere nenhuma explicação racional, embora os personagens comentem sem parar o que aconteceu, proponham hipóteses, tentem descobrir uma maneira de sair dali. Buñuel desdenhava explicações: com o Surrealismo ele aprendeu a importância do impacto direto das imagens absurdas e das situações insólitas, como elemento capaz de desestruturar nosso raciocínio, descarrilar o trajeto seguro das explicações preconcebidas, da lógica, do racionalismo.



quinta-feira, 26 de março de 2015

3772) A perna artificial (27.3.2015)



Era uma vez um cara que morava perto da linha do trem, e costumava ficar às vezes sentado no chão, perto dos trilhos, pensando na vida. Um dia ele estava distraído, com a perna esquerda em cima dos trilhos, e o trem passou e arrancou a perna dele.  Grande comoção na família, que se mobilizou, fez lista de doações, livro-de-ouro, o escambau, e levantou um milhão de cruzeiros (a história é antiga) para poder dar a ele uma caríssima perna artificial. Foi feito, e a vida voltou à normalidade. Uma tarde, ele estava mais uma vez sentado junto da linha do trem, desta vez com as duas pernas em cima dos trilhos. À distância, o trem apitou para avisar que se aproximava. Ouvindo o apito, ele deixou a perna de carne e osso em cima do trilho e afastou a outra, comentando: “Esta aqui me custou um milhão de cruzeiros!”.

Esta é uma das piadas mais antigas que me lembro de ter escutado. Marcou minha infância, e me fazia rir muito. Quando comecei, já por volta dos vinte-e-tantos anos, a refletir sobre o humor e os processos que ele utiliza, percebi que cada vez que pensava nela surgiram novas associações de idéias. A mais importante, acho, é que ela é uma metáfora terrível da nossa época. A gente tende a valorizar o que conquistou com esforço próprio, não o que trouxe de nascença. A gente valoriza mais a tecnologia do que a biologia, mais a civilização do que a natureza. (Um amigo já me disse: “eu cuido melhor do meu computador do que de mim”.) E com isso corre o risco de ficar sem as duas. É uma boa fábula moral para este Brasil que, segundo Glauber Rocha, “pode beber água de coco de graça, mas prefere pagar por uma Coca-Cola”.

Hoje, o que mais me chama a atenção é o mecanismo tragédia-grega de uma historieta assim. Tudo é fado, tudo é destino, e não se vê um dedo sequer de livre arbítrio nesse personagem aparentemente tão bem posto em si mesmo. Sentar com as pernas em cima de uma linha do trem é meio caminho andado para perdê-las. E quando isto acontece, pensam que o cara ficou com um trauma, uma repulsa pelas coisas ferroviárias? Não, ele continua a sentar no mesmo lugar, com as duas pernas ali, fazendo por conta própria uma reconstituição ritual do trauma, quase que implorando aos Deuses do Plot para que aquele fato espantoso se repita. Anedota não é realismo, é fabulação. Tentar interpretá-la através de motivações emocionais realistas é perdido. Há uma certa literatura (não toda, é claro) que também funciona assim. Críticos desperdiçam hectares de papel cobrando verossimilhança de personagens que são meras funções de uma história que precisa acontecer de uma maneira tão implacável quanto a aproximação de um trem.