quarta-feira, 1 de abril de 2015

3777) A literatura da fome (2.4.2015)



Contos de fadas não são contos onde fadas aparecem. Os contos populares ou folclóricos, como os que foram recolhidos pelos Irmãos Grimm na Alemanha, e entre nós por Câmara Cascudo, Sílvio Romero e muitos outros, podem ter alguns perfis que não têm nada a ver com o “feérico” ou com o propriamente maravilhoso. 

Numa entrevista conjunta com Neil Gaiman concedida à revista Locus (2002), Gene Wolfe fala sobre os livros de “bad boys”, histórias sobre garotos que aprontavam, como Tom Sawyer. Ele comenta: 

“Os garotos modernos não conseguem imaginar que houve um tempo em que a maioria dos garotos vivia perpetuamente faminta. Eles acordavam com fome e iam dormir com fome.”

Muita da ação incessante de algumas novelas picarescas se deve ao fato de que o pícaro está mesmo se acabando de fome, e por isto as histórias onde atua são tão animadas.  Devido à fome ele vai à luta, sofre golpes, aplica golpes, corre riscos, trai concorrentes, sacaneia quem o ajudou, tudo porque a fome assassina que sente toma precedência sobre tudo. 

Neil Gaiman, pegando a deixa de Wolfe, completou:

“’João e Maria’ (‘Hansel e Gretel’) conta a história de uma família durante uma grande fome coletiva, quando eles não tinham comida bastante para duas crianças e dois adultos, e lamentavelmente iam ter que se livrar das crianças. É a respeito de duas crianças esfomeadas na floresta que praticamente tropeçam nessa casa feita de pão de gengibre. A trilha que eles deixam é devorada por pássaros famintos, e eles mesmos não demoram a ser apanhados por uma mulher que vê neles uma refeição em potencial. É uma história sobre fome.”

Por isso que tantos milagres desses contos, inclusive os do cordel, têm a ver com comida. 

Em seu Diário da Guerra do Porco (1969) Bioy Casares fala de um personagem que dorme à noite na casa de outra pessoa, e diz que de manhã, “como nos contos de fada, havia uma mesa posta à sua espera”. 

A mesa posta por mãos invisíveis diante do aventureiro que entra sem licença num castelo ou mansão; a toalha mágica que basta ser sacudida e estendida para se cobrir instantaneamente de vinhos e vitualhas. A garrafa que nunca se esgota, o prato que magicamente se renova.  

Para encerrar as histórias havia até a fórmula tradicional: 

“E o príncipe casou com a princesa, deram uma festa maravilhosa, eu fui, e quando voltei trouxe uns doces e uns salgadinhos para vocês, mas quando fui atravessar o rio escorreguei numa pedra, e caiu tudo na água e o rio levou!”  

A comida é mágica, é sagrada, é trazida por um pássaro para uma torre ou derrubada por um gremlin nas águas do rio, mas é sempre uma coisa encantada em si.







Um comentário:

Fênix K disse...

Nunca tinha pensado nisto, mas faz muito sentido. Parabéns pelo blog, adicionado aos favoritos.