quinta-feira, 26 de novembro de 2009

1381) O anjo azul (17.8.2007)


(a cena que descrevi de memória)

Revi dias atrás este filme clássico de Josef von Sternberg. É o filme que revelou Marlene Dietrich, e consagrou um dos “posters” mais famosos do cinema: Dietrich, no palco de um cabaré, sentada num banquinho, com uma cartola prateada na cabeça, erguendo no ar a perna dobrada, vestida em meias de nylon, segurando-a com os dedos cruzados no joelho. Dietrich virou estrela de Hollywood, virou símbolo sexual, virou mulher-enigma para os intelectuais, virou modelo para um milhão de travestis.

O filme conta uma daquelas histórias cruéis em que um homem de meia-idade, sério, conservador, se apaixona por uma sirigaita que acaba fazendo dele gato e sapato e conduzindo-o à sarjeta. O professor interpretado por Emil Jennings é uma figura alternadamente antipática, simpática, ridícula, patética. Podemos entender sua paixão pela cantora, uma paixão atabalhoada e que culmina num casamento absurdo. Como todo puritano, o professor nunca viu aquilo, coitado, e quando vê, não resiste. Lembra aquele personagem moralista e circunspecto de Nelson Rodrigues em O Casamento; no dia em que toma um pileque, acorda na cama de uma prostituta que elogia suas numerosas performances ao longo da noite inteira.

O crítico Roger Ebert comenta com argúcia que é fácil entender o que o professor vê em Dietrich, danado é entender o que ela viu nele. Talvez respeitabilidade, casamento, uma cortina de fumaça para a velada prostituição que ela exerce entre os camarins e os hotéis. Dietrich ora se mostra carinhosa com o velho, ora ríspida, ora desdenhosa. Ele nunca sabe (nem nós) como ela vai tratá-lo na cena seguinte. Mas fica ali, grudado no pé dela, como um cachorro enxotado que pede socorro a quem o enxotou.

David Thomson acha que o personagem de Dietrich no cinema não tinha muito a ver com a atriz real; foi uma criação de Sternberg ao longo dos sete filmes que fizeram juntos entre 1930 e 1935, e talvez reflita aspectos da relação tempestuosa que os dois viveram como diretor e atriz, homem e mulher. Dietrich, diz Thomson, “era uma invenção do cinema, uma mensagem entendida pelos espectadores mas não por ela mesma. (...) Nunca mais ela voltou a ser aquela mulher, e tanto esta perda lhe fez falta quanto ela foi sempre incapaz de compreendê-la”.

Dietrich foi transformada por Sternberg, diz ele, na “essência da mulher sado-masoquista”, predadora, cruel, insaciável e indiferente. Ao mesmo tempo, ele cita as palavras de Sternberg descrevendo como a tratava nas filmagens: “Não fui um entusiasta, mas alguém que criticava mecanicamente, friamente, qualquer movimento seu. Quando havia um elogio, era algo como ‘Está bem, esta vai servir’. O que ela escutava na maior parte do tempo era: ‘Vire os ombros para lá e se endireite... Abaixe a voz uma oitava, sem ciciar... Conte até seis e olhe para aquela lâmpada como se não pudesse viver sem ela... Fique assim, não se mexa, estamos ajustando as luzes”. Era assim que a predadora preferia ser tratada.

1380) A Idade da Ignorância (16.8.2007)





(C. P. Snow)

O jornal “The Observer” convidou três escritores, três cientistas e dois apresentadores de TV para responderem perguntas básicas sobre ciência. A intenção era dar um balanço de como andam os nossos conhecimentos gerais. 

As perguntas são relativamente simples, mas para meu enorme embaraço percebi que não sabia as respostas certas para a maioria delas. Aliás, não só eu. A maioria dos entrevistados também. 

As perguntas eram: Por que o sal se dissolve na água? Qual a idade da Terra? O que acontece quando você acende uma lâmpada? Um clone é o mesmo que um gêmeo? Por que o céu é azul? Qual é a Segunda Lei da Termodinâmica? Eu acertei duas, mas não direi quais.

O jornal propunha um debate – que já vem rolando há décadas – sobre a divisão do mundo ocidental em duas culturas, uma humanista e artística, e outra científica e tecnológica. Em geral, quem faz parte de uma ignora e desdenha a outra. 

Essa denúncia foi feita pelo britânico C. P. Snow em seu livro As Duas Culturas e a Revolução Científica (1959). Snow combatia a ignorância científica dos intelectuais britânicos de sua época.

Dizia ele: “Muitas vezes compareço a reuniões de pessoas que, pelos critérios tradicionais, são consideradas muito cultas, e que se espantam com a falta de cultura dos cientistas. Uma ou duas vezes, reagindo a provocações, eu lhes perguntei o que eles sabiam a respeito da Segunda Lei da Termodinâmica, ou a Lei da Entropia. A resposta sempre foi fria, e negativa. E na verdade eu estava perguntando o equivalente científico a: Vocês já leram alguma obra de Shakespeare?” 

Neste ponto, os grandes cientistas saem ganhando – todos eles demonstram uma grande amplitude de leituras e de apreciação artística (música, pintura, etc.).

A certa altura da vida, todo indivíduo bem sucedido social e financeiramente acha que o que sabe já dá pro gasto, e que não precisa aprender mais nada. E no entanto se saíssemos fazendo perguntas desse tipo por aí, teríamos um retrato patético do que são nossos “intelectuais”. 

Não me refiro a ir fazer esse tipo de pergunta no metrô ou na calçada. Bastaria fazê-las nas Academias literárias, nas redações de jornais, no Congresso Nacional, nos Conselhos Universitários. Cada um só sabe as coisas do seu ofício – e olhe lá!

No meu livro O que é ficção científica (1986) citei uma frase de Arthur C. Clarke: “Uma pessoa que conheça tudo sobre as comédias de Aristófanes e nada sobre a Segunda Lei da Termodinâmica é tão inculta quanto aquela que dominou a teoria quântica mas pensa que Van Gogh pintou a Capela Sistina”. 

Nosso conhecimento do mundo será sempre imperfeito e deformado. É ilusão pensar que alguém, em algum momento, já entendeu o que é o mundo. Aristóteles, Hegel, Einstein, Marx, Freud... cada um deles descreveu uma unha do pé do elefante, e olhe lá. Mas isto não é razão para que a gente esnobe quem procura estudar o elefante, nem para que a gente se recuse a admitir que o elefante existe.





quinta-feira, 19 de novembro de 2009

1379) “Pré-História do Futuro” (15.8.2007)




No confronto de idéias entre a Cidade e o Sertão há um mito poderoso: o da Aventura, que cada qual, curiosamente, reivindica para si. 

Para os urbanos, a Cidade é uma colmeia fervilhante de eventos extraordinários, e o Sertão é um ermo sonolento e cheio de mosquitos onde nada acontece. São muitos os celebradores da cidade, desde Baudelaire e Poe até Balzac e Chesterton. Para esses autores, na cidade existe uma aventura em cada esquina. Mesmo um sertanista convicto como Ariano Suassuna coloca na boca de Quaderna, aos 10 anos de idade, esta exclamação deslumbrada com a vida na cidade (mesmo que sendo a Vila de Taperoá): 

“Somente naquela minha primeira manhã na Vila eu já tinha entrado em contato com a rua do sexo, da embriaguez, do jogo e dos desmandos do pecado; com o teatro; com a miséria degradante do Alto; com o esgoto do crime, na Cadeia; e com o anúncio de uma guerra iminente a se travar entre as forças de meu Padrinho e as de Antonio Moraes – e Samuel ainda achava que ali na Vila não acontecia nada!”

Já a vida aventureira e solta, a cavalo, nas planícies, correndo atrás do gado ou enfrentando tiroteios é a base onde se construiu o faroeste americano. Perto disso, a vida engravatada e burocrática das cidades é uma cadeia. 

Isto me lembra um romance ficção científica do francês Stefan Wul, Pré-História do Futuro (“Niourk”, 1957), ambientado num mundo futuro pós-apocalipse nuclear, quando os oceanos secaram e as metrópoles como Nova York estão tomadas pelo mato. O herói é um rapaz marginalizado em sua tribo por ser negro. Eles vivem de caçar polvos e comer seus cérebros. 

O rapaz negro foge da tribo e vai parar em Niourk, a grande metrópole em ruínas. Ali ele encontra astronautas que vêm à Terra para pesquisas arqueológicas, fica amigo deles, e percebe que está passando por uma mutação que lhe dá super-inteligência e super-poderes. 

É uma longa história; no final, o rapaz negro abre mão de todos esses poderes e até da possibilidade de reviver a antiga civilização urbana e tecnológica; e volta aos pântanos do antigo Oceano Atlântico, junto a sua velha tribo, para caçar e viver – diz ele – “A única vida que vale a pena ser vivida”. A vida da aventura.

Estes julgamentos são visivelmente apaixonados, afetivos. A aventura está no lugar que amamos. 

Para cada obra que exalta e revela a aventura urbana, temos outra que explora o tédio urbano, a rotina, a falta de perspectiva, o massacre do espírito pela claustrofobia da selva de cimento. 

Para cada obra que exalta e revela a aventura sertaneja, encontramos outra que desmascara a solidão e o silêncio sem fim das campinas, os vilarejos imóveis onde tudo que se faz é espantar moscas, a cidadezinha qualquer do “Êta vida besta, meu Deus”. 

Se a única vida que vale a pena ser vivida é a da aventura, a aventura está em nós mesmos, está em quem sabe ir procurá-la, seja nos arranha-céus e nos morros, seja nas caatingas e nas vilas.






1378) O sertão e o mar (14.8.2007)




(Icapuí, Ceará)

Podemos dividir a intelectualidade brasileira em dois grandes partidos: os que preferem Machado de Assis e os que preferem José de Alencar.

Notem que o sujeito não precisa desgostar do outro autor, ele apenas prefere um, identifica-se com o mundo dele, a mentalidade dele.

Glauber Rocha, em sua fase terminal, foi um alencarista ferrenho. Sentava o malho no pobre do Machado naqueles seus artigos cheios de K, Y e Z.

Outro alencarista era Sílvio Romero – na verdade, este era menos um caso de alencarista do que de anti-machadista. Romero chamava as obras de Machado de “comédias de almanaque”, criticava seu pessimismo que só servia para iludir alguns simplórios que achavam aquilo uma maravilha.

Quem equacionou essa questão de maneira mais algébrica foi Ariano Suassuna em As Infâncias de Quaderna. No Folheto 63, “Os Cortiços da Cidade e os Guerreiros do Sertão”, ele diz, através do personagem Samuel (o defensor da cultura ibérica), que desde a vinda da Coroa portuguesa o Brasil se dividiu:

“De um lado, os urbanistas cosmopolitas e ocidentalistas, os quais, sob o chamado espírito de civilização, pretendem aproximar o Brasil das elites européias; do lado oposto, os sertanistas, que sob o espírito da conquista, pretendem – a meu ver erradamente – realizar o nacionalismo através de uma fusão grosseira da épica com um certo tradicional-populismo que no nosso caso tem sido o escárnio da Nação e da Tradição!” 

E Samuel conclui indicando os autores-símbolo das duas correntes: Machado e Euclides da Cunha.

A descrição de Ariano é feita através do seu adversário ideológico, porque todo mundo sabe que entre Euclides e Machado o autor da Pedra do Reino escolherá sempre Euclides.

O importante, contudo é essa divisão teórica entre os Urbanistas (que incluem de Machado até Rubem Fonseca) e os Sertanistas (de Alencar até Graciliano, Zé Lins, Rachel de Queiroz, etc.). Essas duas correntes exprimem, por exemplo, as duas colonizações do Nordeste: a que foi feita pelo litoral em nome dos governos, e a que foi feita pelo interior, subindo o Rio São Francisco, em nome dos desbravadores anônimos.

O Brasil tem essas duas camadas, sendo que hoje em dia a camada Urbanista, civilizatória, se sobrepõe (em termos de poder político e econômico, e em termos de visibilidade) à camada Sertanista.

Hoje, dois terços de nossa população vivem nas cidades. Mas grande parte desses dois terços migraram do “sertão” (tomado aqui em seu sentido mais amplo e simbólico). A civilização urbana parece ser nosso destino evolutivo, ou pelo menos é nesse rumo que o mundo tem se encaminhado até agora. Mas quando esse mundo Urbanista entra em crise, fica sem valores e à deriva, ou sente-se à falta de um tutano, de uma medula, é no “sertão” que vai procurá-los.

A Cidade é a nossa face pública, racionalista. O Sertão é o nosso Inconsciente profundo, de onde nascem nossas emoções e onde pulsa “a única vida que vale a pena ser vivida”, como dizia Stefan Wul em Pré-História do Futuro.








1377) O Bosque de Birnam (12.8.2007)



Macbeth é um nobre escocês que certa noite hospeda o rei em seu castelo. Quando o rei está dormindo, Macbeth entra no quarto, corta-lhe a garganta e assume o trono da Escócia, de espada em punho, olhando em redor com aquela cara de “Que foi que viu? Vai encarar?!” Como dizia Dom Pedro Dinis Quaderna, uma maneira muito européia e fidalga de tornar-se rei.

Preocupado, Macbeth vai se consultar com as feiticeiras locais, e elas lhe dizem que, entre outros sinais, ele só será derrubado do trono “quanto o bosque de Birnam chegar a Dunsinane”, que é o castelo onde ele mora. É um pouco como dizer – quando a Floresta da Tijuca chegar ao Palácio do Catete. Macbeth sente firmeza e começa a praticar os maiores despautérios, até que os outros nobres mobilizam as tropas e marcham contra seu castelo. Ao passarem por Birnam, eles, sem sequer saberem da profecia, cortam os galhos das árvores e os empunham, para disfarçar o número de seus soldados. Macbeth recebe o alarma, vai até a muralha de Dunsinane, e o que vê no horizonte? O bosque de Birnam marchando na direção do seu castelo.

É vezo das profecias parecerem impossíveis e depois se concretizarem graças a um pulo-do-gato qualquer. Há um livro notável e pouco conhecido de Malba Tahan intitulado Sob o Olhar de Deus, que em sua primeira edição tinha o título “O Aviso da Morte”, mais descritivo do seu conteúdo. Célio Musafir, um escritor de sucesso, recebe uma noite a visita da Morte, que faz um pacto com ele: quando chegar a hora de levá-lo embora, lhe dará um aviso. Aliviado com esta promessa, Musafir passa a viajar, ter aventuras, fazer caçadas, escalar montanhas, etc., confiante de que a Morte cumprirá a palavra. Anos depois ela volta a lhe aparecer e diz que está na hora. Ele reclama que não recebeu aviso nenhum. E a Morte diz: “Meu amigo! E aquelas avalanches na montanha, e aquele tigre que quase o alcançou, e aquele seu barco que naufragou, etc. – isso não foi aviso suficiente de que eu estava chegando perto?!”

Compreensivelmente, ele diz que não entendeu assim. Quer um aviso claro, inconfundível; e a Morte diz: “Então tá bom. Escolha o aviso”. Ele pensa um pouco e diz: “Quero que o aviso seja esta cena: uma mulher de preto, sentada num piano, à luz de velas, tocando a Marcha Fúnebre de Chopin”. A Morte aceita: “Tá legal. Quando chegar sua hora, você verá exatamente isso”. E desaparece.

Musafir respira aliviado e pensa: “Bom, tudo que eu tenho a fazer daqui em diante é deixar de ir a concertos de piano”. E vai à janela, para fechá-la e ir dormir. Quando chega lá, vê do lado oposto da rua que na mansão em frente está havendo uma festa: pela janela ele vê a sala da mansão, e bem ali, no meio, adivinhem o quê. Ele vacila, cambaleia, leva a mão ao coração e (a frase final é uma citação de Dante) “caiu como um corpo morto cai”. Bem feito. Ele, um homem culto, leitor dos clássicos, deveria saber que o bosque de Birnam sempre chega a Dunsinane.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

1376) Música onomatopaica (11.8.2007)




Uma coisa que alguns leitores de poesia às vezes não percebem, e mesmo quando percebem não aceitam, é que a sonoridade das palavras faz parte da arte poética. É um fator a mais de beleza, é uma região onde o poeta pode exercer sua criatividade, e deve sempre ser levada em conta. Mesmo quando o poeta, como aqueles fotógrafos que se recusam a trabalhar com a cor, prefere abrir mão dela. É um direito do artista, claro. São opções estéticas desse tipo que, somando-se umas às outras, delineiam o perfil do artista. Mas nem por isso a sonoridade deixa de existir no mundo da poesia, ou a cor deixa de existir no mundo da fotografia. Estão aí, doidas para serem bem trabalhadas por quem goste delas e as entenda.

Um grande poema lido em voz alta independe do idioma para que se perceba sua textura sonora. Ouvir um bom ator lendo desde o verso cadenciado e as rimas exatas de Kipling até os ritmos mais complexos e as rimas mais sutis de Eliot é uma experiência estética parcial mas satisfatória, até para quem não sabe inglês. Se na poesia escrita é assim, o que dizer da letra de música? Essa, sim, é sonoridade em estado puro, saltando direto das cordas vocais de um para os tímpanos do outro.

Nem toda letra de música nasce da poesia escrita. Grande parte das letras de música nascem do cantarolar difuso, onomatopaico, com que os compositores acompanham o momento da criação musical ao instrumento. Todo mundo, quando está inventando uma melodia, recorre ao “lalari-lalá”, ao “tantarim-tarim-tantan”, ao “undererê, undererá”. São marcações sonoras que estão ali apenas “guardando o lugar” para versos que virão depois. Muitas vezes, essas sílabas aleatórias se impregnam de tal maneira na melodia que quando é depois a gente só consegue criar os versos seguindo as mesmas rimas, as mesmas finalizações.

E essas coisas acabam se transportando para a letra final. Lembrem do “Can-ganscans-gansculans” de Adoniran Barbosa, do “tchubidu-bidu” de Djavan, do “Wop-bop-abalooba-wob-bop-bem-boom” de Little Richard, do “Bumbum-paticundum-prugurundum” de Aloísio Machado e Beto Sem Braço, do “yeah, yeah, yeah” de Lennon e MacCartney... Sons assim acabam batizando os estilos musicais, daí nos EUA existirem estilos como o “doo-wop” (aqueles coros-a-quatro-vozes das baladas românticas estilo The Platters: “Only yoooou...”), o”cha-cha-cha” latino, e o nosso brasileiríssimo, onipresente e indefinível “chacundum”.

Música é som, e quando a poesia adentra o território da música não pode entrar muda e sair calada, apenas erguendo uma cartolina branca com versos escritos. Tem que abrir a boca, soltar o grito ou caprichar no sussurro, tem que produzir algum som e dizer a que veio. É compreensível que poetas e ouvintes pouco afeitos a isto recuem diante dessa obrigação. Nada contra. Mas tudo que se comunica através do som (e não da página escrita) tem que pagar seu tributo aos deuses da sonoridade. Se não, que graça tem?

1375) O efeito da Coca-Cola (10.8.2007)



Encontrei este texto no saite “No Mínimo”. Não boto a mão no fogo pela verdade científica, mas me pareceu vagamente plausível. Não sei o autor nem a origem do texto, “estou vendendo pelo preço de fatura”. O texto descreve o que acontece no seu organismo quando você bebe uma lata de Coca-Cola.

“NOS PRIMEIROS 10 MINUTOS: 10 colheres de chá de açúcar batem no seu corpo, 100% do recomendado diariamente. Você não vomita imediatamente pelo doce extremo porque o ácido fosfórico corta o gosto. 20 MINUTOS: O nível de açúcar em seu sangue estoura, forçando um jorro de insulina. O fígado responde transformando todo o açúcar que recebe em gordura. (É muito neste momento particular.) 40 MINUTOS: Absorção da cafeína está completa. Suas pupilas dilatam, a pressão sangüínea sobe, o fígado responde bombeando mais açúcar na corrente. Os receptores de adenosina no cérebro são bloqueados para evitar tonteiras.

“45 MINUTOS: O corpo aumenta a produção de dopamina, estimulando os centros de prazer do corpo. (Fisicamente, funciona igualzinho com heroína.). 60 MINUTOS: O ácido fosfórico empurra cálcio, magnésio e zinco para o intestino grosso, aumentando o metabolismo. As altas doses de açúcar e outros adoçantes aumentam a excreção de cálcio na urina. 60 MINUTOS: As propriedades diuréticas da cafeína entram em ação. (Você urina.) Agora é garantido que porá para fora cálcio, magnésio e zinco dos quais seus ossos precisariam. 60 MINUTOS: Conforme a onda abaixa você sofrerá um choque de açúcar. Ficará irritadiço. Você já terá posto para fora tudo o que estava na Coca, mas não sem antes ter posto para fora junto coisas das quais seu organismo precisaria.”

Rapaz... É um negócio arrepiante. É como se alguém descrevesse todo o trajeto de uma petição de aposentadoria no INSS. Para efeito de contraste, vai aqui um comentário de um leitor do saite que se assina “Rico”:

“É um exagero (...). Se em 20 minutos seu figado já converteu toda a a glicose em gordura, como o aumento da pressão pode bombear mais glicose, se você já está com a glicemia baixa novamente? O figado só converte a glicose em gordura se você já estiver com a glicemia alta, se não, você metaboliza-a em energia (seu cérebro é sedento de glicose). Como o ácido fosfórico empurra cálcio e zinco para o cólon? Ele precipita cálcio, mas você precisaria ingerir muito ácido fosfórico para prejudicar a absorção de cálcio. E em qualquer refeição você absorve muito ácido fosfórico, que é abundante nos seres vivos. O aumento da diurese feito pela cafeína não significa aumento de perda de íons, mas apenas de água. O aumento da dopamina ocorre nomalmente quando temos uma sensação prazerosa, etc etc…. Uma bobajada sem base bioquímica ou fisiológica.A única coisa certa é que a Coca e qualquer refrigerante tem MUITO açúcar, portanto evite, dê preferência a sucos naturais; mas de vez em quando não vai matar ninguém.”

Para vocês verem o quanto é difícil optar entre duas teorias científicas.

1374) Onomatopéias (9.8.2007)



(Roy Lichtenstein)

Podemos aprender muito sobre a formação das línguas estudando as onomatopéias, aquelas palavras que procuram reproduzir um som. “Bang” é uma onomatopéia inglesa que reproduz um tiro de arma de fogo, e é uma palavra reconhecível internacionalmente. Nossa nordestiníssima “Pêi” não tem a mesma fama, mas tem a mesma eficácia. Pense numa expressão eloqüente como “Pêi-bufo”. Existe maneira mais descritiva e mais sonora de dizer “tiro e queda”?

Vejam agora a palavra “pipôco” (que os cearenses, p. ex., dizem “papôco”). É uma onomatopéia? Eu creio que sim, porque ela reproduz uma coisa que acontece com freqüência: uma pequena detonação seguida de outra muito mais forte. É o martelinho da espingarda estalando a espoleta (“pi”), e depois o tiro propriamente dito (“pôu”). Algum lexicógrafo virginiano virá me perguntar por que então a palavra não é “pipôu” apenas. E eu responderei que assim seria, se quem inventasse as palavras fossem os lexicógrafos. Mas não é. Essas palavras são uma criação coletiva e aleatória do Povo, e em tais processos a gente só deve tentar explicar as coisas até um certo ponto. Depois, nem Freud explica.

Eu mesmo considero que algumas onomatopéias são erradas. Vejam a palavra “tchibum”, o ruído de alguém mergulhando nágua de certa altura. Está errada. Era para ser algo como “bum-tchi”, porque na verdade ouvimos primeiro a queda pesada do corpo, e depois o espalhar da água que foi jogada ao ar, voltando a cair na superfície. Em casos assim, O Povo me desculpe, mas O Povo errou. Por outro lado, a palavra “atchim” para exprimir um espirro está certíssima: primeiro o ar sendo aspirado para encher os pulmões, e depois a descarga.

Na canção “Filomena e Fedegoso” cantado por Jackson do Pandeiro tem um verso, falando da roupa comprada pelo matuto no Rio de Janeiro: “Ele diz que comprou no magazim... Pois sim! Como vai, seu vuco-vuco?”. Explicar isso a quem não é nordestino é um drama. Primeiro temos que dizer que “vuco-vuco” é onomatopéia de um movimento implacável e contínuo como o de um serrote serrando uma tábua. Depois, por extensão, qualquer agitação que não pára. Depois, por nova extensão, o mercadinho popular (os atuais camelódromos) onde se vendem produtos baratos e por isto vivem numa agitação febril e permanente, que nunca pára. E por fim tem que explicar que esse “como vai” é uma ironia, cumprimentando a roupa: “Como vai, seu vuco-vuco?” (E eu calculo que dirigir-se a algo inanimado, personificando-o, já é uma parenta da onomatopéia: a “prosopopéia”).

Quando Mestre Fuba compôs o “Hino das Muriçocas do Miramar”, usou a palavra “trelelê”, que eu, pelo menos, desconhecia. Talvez fosse uma gíria comum em João Pessoa, mas eu nunca tinha escutado. E aí eu estava com alguns amigos cariocas escutando a música, e um deles me perguntou: “O que é um trelelê?” E eu dei a única resposta que me pareceu cabível: “É um zum-zum-zum zunindo”. Se ele não entendeu, não posso fazer nada.

1373) O apocalipse evangélico (8.8.2007)




Um novo gênero literário está surgindo nos EUA: a ficção científica apocalíptico-evangélica. São livros que têm feito muito sucesso e foram adaptados para o cinema. O nome da série (já com mais de 12 títulos), tirado do primeiro romance, é Left Behind (“Deixados para Trás”). Sua premissa é o fenômeno religioso chamado “the Rapture”, que pode ser traduzido como “rapto”, “arrebatamento”, “abdução”: de um momento para outro, todos os verdadeiros cristãos desaparecem da Terra, levados para o Paraíso, e aqueles que são “deixados para trás” têm que enfrentar um mundo que regride ao caos e à selvageria como num romance de terror de Stephen King, para se redimirem através das boas ações e da fé.

A base dessa crença está em várias passagens bíblicas, como na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, cap. 4, versículos 15-16: “Porque o mesmo Senhor com mandato e voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus, descerá do céu: e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro. Depois nós os que vivemos, os que ficamos aqui, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens a receber a Cristo nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor”.

Chamei ao gênero de FC, mas não porque haja uma base científica para essa crença, que é puramente uma questão de fé ao-pé-da-letra no texto bíblico. Mas os temas apocalípticos em geral têm sido terreno literário da FC: guerra nuclear, crise ambiental, invasão alienígena, cataclismos tectônicos... Diferentes receitas de fim-do-mundo foram experimentadas pela FC, de modo que esse apocalipse evangélico guarda pelo menos uma relação de parentesco colateral. O New York Times saudou o romance (de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins) como uma mistura de Tom Clancy, amor romântico, referências bíblicas e macetes “high-tech”.

O mais engraçado é que a série foi transformada num video-game. “Video-game religioso?”, perguntarão alguns. “Que bom! Até que enfim!” Mas eis a descrição do game (intitulado Left Behind: Eternal Forces), feita pelo jornalista Jonathan Hutson: “Imagine que você é um soldado num grupo para-militar cujo propósito é reconstruir a América numa teocracia cristã, e estabelecer no mundo a visão do domínio de Cristo sobre todos os aspectos da vida. Você recebe armamentos de última geração, e instruções para combater os infiéis nas ruas de Nova York. Sua missão é religiosa e militar: converter ou matar os católicos, os judeus, os muçulmanos, os budistas, os homossexuais, e qualquer pessoa que defenda a separação entre a Igreja e o Estado, especialmente os cristãos moderados. Sua missão é travar uma guerra física e espiritual, e todos os que resistirem devem ser combatidos de forma radical”. Interessante esta curiosa mistura de fundamentalismo pós-11-de-setembro, jogos de guerra, comércio, apocalipse e FC militarista. Não é por nada não, mas se era preciso um sinal de que o fim do mundo está perto, então não precisa mais.


1372) O peso fantástico (7.8.2007)


Um dos atributos mais inquietantes e mais raramente usados na narrativa fantástica é o peso de um objeto ou de uma criatura. Coisas excessivamente pesadas ou excessivamente leves nos produzem uma sensação do estranho, do sinistro, do “uncanny”. 

Lembro-me da antiga lenda a respeito de São Cristóvão, um gigante de bom coração que vivia à beira de um rio, transportando pessoas de um lado para o outro. Um dia aparece um menino que pede para ser carregado. Cristóvão o coloca nas costas mas quando começa a caminhar sente que o peso do menino aumenta extraordinariamente a cada passo dado. No meio do rio, ele já não agüenta mais, é como se o garoto pesasse toneladas. Ele se assusta, pergunta a que se deve aquilo, e o garoto responde que é Jesus Cristo, e que pesa daquela forma porque carrega consigo os pecados da humanidade. 

É uma bela lenda, que admite também o seu reverso, porque já ouvi dizer que o ataúde de um criminoso ou de um suicida costuma ser pesadíssimo, como se estivesse carregado de pedras: é o peso da culpa, do pecado não-expiado. 

O peso sobrenatural foi explorado por Ariano Suassuna num episódio no Folheto 33 do Romance da Pedra do Reino, “O estranho caso do cavaleiro diabólico”. O cantador Lino Pedra Verde está indo para o roçado quando vê no descampado, a certa distância, um Cavaleiro sobrenatural de cuja boca aberta saem sete línguas em forma de serpentes. O Cavaleiro se encaminha em sua direção, e Lino percebe que o seu peso é tal que o chão começa a pender em sua direção: pedras começam a rolar, e é como se todo o chão do planeta se inclinasse na direção do lado onde está o Cavaleiro, devido ao seu peso. 

Mesmo quando há uma explicação científica para isto, a estranheza permanece. É o que se dá no conto de Jorge Luís Borges “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, em que o narrador começa a perceber que o mundo está sendo invadido por objetos pertencentes a um universo paralelo ao nosso. Um desses objetos é “um cone reluzente, do diâmetro de um dado”. Diz o narrador: 

“Em vão um menino tentou recolher esse cone. Apenas um homem mal conseguiu levantá-lo. Peguei-o na palma da mão por alguns minutos: lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o cone, persistiu a pressão. Também me lembro do preciso círculo que me gravou na carne. Essa evidência de um objeto muito pequeno e ao mesmo tempo pesadíssimo deixava a impressão desagradável de asco e medo”. 

A impressão de asco é mais uma reação fisiológica do que moral. Objetos muito pesados ou muito leves distorcem nossa apreensão instintiva de massas, volumes, etc., e entrar em contato com eles é como estar no convés de um navio que oscila. Temos uma sensação de náusea ou de enjôo, porque nosso cerebelo ou nosso labirinto (sei lá qual é o órgão que controla isto) perde o referencial. 

Qualquer distorção na nossa percepção do espaço e do tempo tem uma conseqüência parecida, fazendo nossa fé na realidade cair verticalmente.