Uma coisa que alguns leitores de poesia às vezes não percebem, e mesmo quando percebem não aceitam, é que a sonoridade das palavras faz parte da arte poética. É um fator a mais de beleza, é uma região onde o poeta pode exercer sua criatividade, e deve sempre ser levada em conta. Mesmo quando o poeta, como aqueles fotógrafos que se recusam a trabalhar com a cor, prefere abrir mão dela. É um direito do artista, claro. São opções estéticas desse tipo que, somando-se umas às outras, delineiam o perfil do artista. Mas nem por isso a sonoridade deixa de existir no mundo da poesia, ou a cor deixa de existir no mundo da fotografia. Estão aí, doidas para serem bem trabalhadas por quem goste delas e as entenda.
Um grande poema lido em voz alta independe do idioma para que se perceba sua textura sonora. Ouvir um bom ator lendo desde o verso cadenciado e as rimas exatas de Kipling até os ritmos mais complexos e as rimas mais sutis de Eliot é uma experiência estética parcial mas satisfatória, até para quem não sabe inglês. Se na poesia escrita é assim, o que dizer da letra de música? Essa, sim, é sonoridade em estado puro, saltando direto das cordas vocais de um para os tímpanos do outro.
Nem toda letra de música nasce da poesia escrita. Grande parte das letras de música nascem do cantarolar difuso, onomatopaico, com que os compositores acompanham o momento da criação musical ao instrumento. Todo mundo, quando está inventando uma melodia, recorre ao “lalari-lalá”, ao “tantarim-tarim-tantan”, ao “undererê, undererá”. São marcações sonoras que estão ali apenas “guardando o lugar” para versos que virão depois. Muitas vezes, essas sílabas aleatórias se impregnam de tal maneira na melodia que quando é depois a gente só consegue criar os versos seguindo as mesmas rimas, as mesmas finalizações.
E essas coisas acabam se transportando para a letra final. Lembrem do “Can-ganscans-gansculans” de Adoniran Barbosa, do “tchubidu-bidu” de Djavan, do “Wop-bop-abalooba-wob-bop-bem-boom” de Little Richard, do “Bumbum-paticundum-prugurundum” de Aloísio Machado e Beto Sem Braço, do “yeah, yeah, yeah” de Lennon e MacCartney... Sons assim acabam batizando os estilos musicais, daí nos EUA existirem estilos como o “doo-wop” (aqueles coros-a-quatro-vozes das baladas românticas estilo The Platters: “Only yoooou...”), o”cha-cha-cha” latino, e o nosso brasileiríssimo, onipresente e indefinível “chacundum”.
Música é som, e quando a poesia adentra o território da música não pode entrar muda e sair calada, apenas erguendo uma cartolina branca com versos escritos. Tem que abrir a boca, soltar o grito ou caprichar no sussurro, tem que produzir algum som e dizer a que veio. É compreensível que poetas e ouvintes pouco afeitos a isto recuem diante dessa obrigação. Nada contra. Mas tudo que se comunica através do som (e não da página escrita) tem que pagar seu tributo aos deuses da sonoridade. Se não, que graça tem?
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