No confronto de idéias entre a Cidade e o Sertão há um mito poderoso: o da Aventura, que cada qual, curiosamente, reivindica para si.
Para os urbanos, a Cidade é uma colmeia fervilhante de eventos extraordinários, e o Sertão é um ermo sonolento e cheio de mosquitos onde nada acontece. São muitos os celebradores da cidade, desde Baudelaire e Poe até Balzac e Chesterton. Para esses autores, na cidade existe uma aventura em cada esquina. Mesmo um sertanista convicto como Ariano Suassuna coloca na boca de Quaderna, aos 10 anos de idade, esta exclamação deslumbrada com a vida na cidade (mesmo que sendo a Vila de Taperoá):
“Somente naquela minha primeira manhã na Vila eu já tinha entrado em contato com a rua do sexo, da embriaguez, do jogo e dos desmandos do pecado; com o teatro; com a miséria degradante do Alto; com o esgoto do crime, na Cadeia; e com o anúncio de uma guerra iminente a se travar entre as forças de meu Padrinho e as de Antonio Moraes – e Samuel ainda achava que ali na Vila não acontecia nada!”
Já a vida aventureira e solta, a cavalo, nas planícies, correndo atrás do gado ou enfrentando tiroteios é a base onde se construiu o faroeste americano. Perto disso, a vida engravatada e burocrática das cidades é uma cadeia.
Isto me lembra um romance ficção científica do francês Stefan Wul, Pré-História do Futuro (“Niourk”, 1957), ambientado num mundo futuro pós-apocalipse nuclear, quando os oceanos secaram e as metrópoles como Nova York estão tomadas pelo mato. O herói é um rapaz marginalizado em sua tribo por ser negro. Eles vivem de caçar polvos e comer seus cérebros.
O rapaz negro foge da tribo e vai parar em Niourk, a grande metrópole em ruínas. Ali ele encontra astronautas que vêm à Terra para pesquisas arqueológicas, fica amigo deles, e percebe que está passando por uma mutação que lhe dá super-inteligência e super-poderes.
É uma longa história; no final, o rapaz negro abre mão de todos esses poderes e até da possibilidade de reviver a antiga civilização urbana e tecnológica; e volta aos pântanos do antigo Oceano Atlântico, junto a sua velha tribo, para caçar e viver – diz ele – “A única vida que vale a pena ser vivida”. A vida da aventura.
Estes julgamentos são visivelmente apaixonados, afetivos. A aventura está no lugar que amamos.
Para cada obra que exalta e revela a aventura urbana, temos outra que explora o tédio urbano, a rotina, a falta de perspectiva, o massacre do espírito pela claustrofobia da selva de cimento.
Para cada obra que exalta e revela a aventura sertaneja, encontramos outra que desmascara a solidão e o silêncio sem fim das campinas, os vilarejos imóveis onde tudo que se faz é espantar moscas, a cidadezinha qualquer do “Êta vida besta, meu Deus”.
Se a única vida que vale a pena ser vivida é a da aventura, a aventura está em nós mesmos, está em quem sabe ir procurá-la, seja nos arranha-céus e nos morros, seja nas caatingas e nas vilas.
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