quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

4656) Natal 2020 (24.12.2020)





(Imagem: Rudy Rucker, The Virgin of Mandelupe)


1
... e o fio enlaça o fio e faz um nó
amarrando a si mesmo, lasso, frouxo,
e eu cá cofio o meu bigode-groucho,
penso no tempo, nos seus vais e vens.
E os anos se sucedem como trens.
Até que chegue aquele... e eu vá embora
pra conferir o enigma do Lá-Fora
pra descobrir num salto o fim do poço,
porque cada filósofo que eu ouço
é implorando que ele me desminta.
 
2
Meu ofício é traçar fios de tinta
para entortá-los em arames-frases
e ocultar o Não-Sol; fazer as pazes
entre o sonho, o sentido, a letra, a lua,
o terror dos sem-voz que vem da rua,
o rangido do mundo aniquilado...
E o verso tem seis faces como um dado
e o dado gira até virar esfera
e o verso vira o avesso do que era
e a fala vira o fio que tudo amarra.
 
3
Na vida tudo é gato, é gambiarra,
versão-pirata de uma coisa-em-si,
sulanca a se passar por givenchy,
sarneys fazendo as vezes de tancredos;
e eu toco a vida assim, cheio de dedos,
como estátua na frente de um teclado.
Fazer o quê? Ficar aqui parado
enquanto ela se escorre como um rio?
Eu quero o vórtice, e o rodopio.
Quero a dor e a beleza, o grão e a fome.
 
4
A mão me estende algo, e me diz: Tome.
A mente fecha os olhos, diz: Esqueça.
Fico no escuro. Espero que apareça
um portento, um milagre, uma visão.
A raiz que rachou um calçadão.
A cheia que encobriu a cobertura.
O besouro que esbarra no miúra
e o revira quadrúpede no ar.
Qual a pedra que eu vim para quebrar
e revelar a drusa multicor?
 
5
Peço perdão a cada cantador
de quem furtei um símile, um refrão,
anacoluto ou aliteração,
rima, cadência, estrofe, vocativo...
Irmão, furtei de ti pra ficar vivo!
E que me furtem os vilões vindouros;
que minhas jóias brilhem nos tesouros
com que enfeitarem suas perseguidas...
Meus versos vão viver, ver novas vidas,
na fervura do século 21.
 
6
Falando nisso, lembro do cartum:
tanque de guerra, areia movediça...
Como explicar que não é só preguiça
a razão que me impede de escrever?
Falta vontade, o empuxo do querer?
Ou falta a glândula de adrenalina?
O ar frio, as calçadas de Campina?
Não importa. Por mim, não tenho mágoa;
vou molhando meu pão na minha água,
vou dizendo o que cabe em minha voz.
 
7
Nascemos sós, e morreremos sós;
por que vivermos sós na travessia?!
A vida pulsa, a veia é tão macia,
mesmo havendo milênios de distância.
A mão estende o vinho com elegância;
mais um gole na fonte da saudade.
É Natal. Na janela, uma cidade
inacessível a mim, também celebra,
e mais um ano de cristal se quebra;
e a vida é sempre nova, e uma só...
 





4 comentários:

Maria Salet F. Novellino disse...

A emoção da leitura desse poema foi direto para o pulmão. Cada frase me fez respirar mais fundo.

Henrique Marinho disse...

Que maravilha. Obrigado Mestre.

Henrique Marinho disse...

Que maravilha. Obrigado Mestre.

Fraga disse...

CLAP, CLAP, CLAP!

Gracias por essa imensa belezura, Braulio.