sábado, 26 de dezembro de 2020

4657) "O Gambito da Dama" (26.12.2020)




Prefiro traduzir assim o título da minissérie The Queen’s Gambit, na Netflix. É a história de uma menina que descobre aos 9 anos ter uma capacidade fora-do-comum para o jogo de xadrez. Introvertida, meio selvagem, criada num orfanato, ela é vítima de uma série de acasos benignos muito comuns nos romances de Charles Dickens, e possíveis da vida real. Torna-se uma supercampeã, mas paga o preço do doping, porque ao longo da carreira se vicia em bebida e drogas.
 
Aprendi o xadrez por volta dos dez anos, com meu pai. Ainda hoje tenho aqui em casa a caixa com as mesmas peças de madeira com que jogávamos, na casa da rua Miguel Couto, 60 anos atrás.

 
Não tenho é tabuleiro. Faz trinta anos que não jogo com ninguém. Não sou bom jogador: tenho preguiça de planejar jogadas. Jogo improvisando, como quem percorre um labirinto. Não entendo de aberturas, defesas, etc. Mesmo quando pegava um livro e reproduzia uma partida clássica, só entendia uns 30% daquilo. Não é meu formato de inteligência.
 
O xadrez era para mim como a Ciência e a Música Clássica. Não entendo nada de música erudita, mas tão musicais quanto as sinfonias e as sonatas eram aqueles nomes: Rimsky-Korsakoff, Prokofiev, Scarlatti, Rossini, Stravinsky, Khachaturian...  Era como estar ouvindo falar em Heisenberg, Schrodinger, Gell-Mann, Bohr, Feynman, Freeman Dyson...
 
Do mesmo jeito existe até hoje para mim uma música misteriosa, cheia de promessas de enigmas e prodígios, por trás dos nomes dos grandes enxadristas, e com certo alívio (porque a idade avançada nos insensibiliza) descobri durante a minissérie que ainda me arrepiava ouvindo os nomes de Capablanca, Alekhine, Morphy, Philidor, Botvinnik...
 
Mesmo quando não entendemos certas “ciências exatas”, somos capazes de perceber a nuvem, o casulo de “ciências humanas” que sempre as envolve – e reagir a ele.




(Reshevsky, aos 8 anos)

Os enxadristas foram os
nerds do século 19, aquela geração de pessoas cujo gráfico mental-emocional é um horizonte liso, perturbado a certa altura por um pico descomunal numa área específica. São mentes quase autistas, introvertidas, desatentas para com as banalidades do mundo. Toda sua energia é para alimentar aqueles bilhões de neurônios em forma de quadradinhos preto-e-branco.
 
A série é muito boa ao retratar esse lado de “nerdice”, e não me surpreende que seja baseada num livro de um escritor de ficção-científica. Walter Tevis certamente conhece essa fauna desengonçada do fandom, onde as pessoas se vestem de qualquer jeito mas discutem horas sobre diferenças mínimas na capa de edições diferentes de um mesmo livro.
 
Comparei o xadrez, acima, com a música erudita e a física atômica. Não é por acaso. São domínios dos quais entendo pouquíssimo, mas entendo o bastante para saber por alto o que está se passando; é como ver um filme estrangeiro sem legendas. E um dos grandes trunfos da série é compreender isto, e ser acessível a quem não joga xadrez, porque não discute as jogadas em si, mas as reações conflitantes que essas jogadas produzem nas pessoas em redor do tabuleiro.


Millôr Fernandes, o Escarninho, dizia que o jogo de xadrez ajuda muito a desenvolver a capacidade de jogar xadrez. Tem razão, por um lado. Mas podemos dizer o mesmo de mil coisas. Um detalhe comovente da série é quando ficamos sabendo que a mãe adotiva de Beth Harmon (a ótima Marielle Heller) tocava piano bastante bem, mas desanimou do instrumento devido a um casamento pavoroso. Para que serve tocar piano? Para nada, talvez. E para tudo. Ao ver o talento da filha no xadrez, ela decide investir naquilo. Para que servem o xadrez, o piano? Para aproximar duas pessoas tão diferentes.
 
Gosto muito do modo como os jovens enxadristas conversam na minissérie. Depois de meses sem se ver, eles se reencontram. “Ôi.”  “Ôi, tudo bem?”  “Tudo. Não entendi porque você não usou o bispo naquela final com Fulano, há dois meses.”  “Usei o peão, para ele pensar que eu queria proteger o cavalo.”  É assim que nerd conversa: não tem preâmbulos, não tem “chat social”, perguntar pela família, comentar que está calor... Nerd vai logo ao que interessa. É um alívio conversar com gente assim.



(Isla Johnston)
 
As atrizes que fazem Beth são excelentes. A transição entre a Beth aos 9 anos (Isla Johnston) e a Beth daí em diante (Anya Taylor-Joy) é fluida. Existe uma continuidade na expressão, concentrada e relaxada ao mesmo tempo, uma economia de gestos e expressões porque 99% da CPU está ocupada pensando. O olho que rapidamente vai de torre a torre, registrando tudo. A contração dos lábios, geralmente nos momentos em que ela reprime uma resposta problemática.
 
A economia de emoções deixa transparecer a tensão quando vemos Taylor-Joy nervosa, insegura, apanhada de surpresa por um adversário mais cheio de recursos. O olhar vagueia, o rosto enrubesce de raiva. Mas quando ela consegue compor sua armadilha, quando se sente dona-do-pedaço, assume a pose da foto do cartaz: dedos entrelaçados sob o queixo, e aquele olhar de: “Vamos, espertinho, me mostre como vai sair dessa”.
 
Em termos de narrativa, a série é totalmente convencional. Tem o famoso roteiro em forma de N maiúsculo, preconizado nos manuais de escrita. O personagem começa embaixo, sobe até conhecer o cheiro do sucesso e ser obrigado a dobrar suas apostas, sofre em seguida uma queda problemática e no trecho final decola para uma vitória consagradora.
 
É o que ocorre com Beth Harmon, cuja “jornada do herói” segue o mesmo esqueleto de tantos outros roteiros da Sessão da Tarde. Aparecem na história as previsíveis surpresas, as reviravoltas obrigatórias que a gente enxerga quilômetros antes como uma curva da estrada; quem sustenta a narrativa é o charme ingênuo dos personagens. Ajuda bastante ser uma série “de época”. Um tal argumento soaria impossível num roteiro ambientado no século 21. Mas nos anos 1960 acreditávamos que tanta coisa era possível.



(Moses Ingram e Anya Taylor-Joy)

À medida que a série avança, vai se tornando mais hollywoodianamente previsível, marchando na direção do Final Feliz, esta versão moderna da tragédia grega, daquela força superior a que ninguém (no caso, os roteiristas) pode desobedecer.
 
Em termos enxadrísticos, ela começa no estilo Beth Harmon (pessoal e ousado) e vai encaretando para um estilo Borgov (defensivo e conservador). Gostei da série toda (sou um velho espectador da Sessão da Tarde), mas como roteiro os melhores episódios são os dois primeiros, onde ainda se tem aquela sensação do tudo-pode-acontecer.
 
Comparei acima o xadrez com a Física Sub-Atômica. Não é apenas a questão da complexidade, mas o fato de que um dos méritos da série é justamente ter como tema algo que não pode ser mostrado, e que podemos conhecer apenas pela reação que produz nas pessoas envolvidas. Ninguém precisa jogar xadrez para entender a irrupção de Harmon no mundo do jogo: basta observar o impacto das jogadas dela nos rostos dos homens mais velhos que a cercam. Nesse sentido, a série vale como uma síntese entre o empoderamento dos jovens diante dos “mais velhos” (um tema dos anos 1960) e o das mulheres diante dos homens (um tema dos anos 2020).



A matemática cruel do jogo impõe uma disputa de poder escancarada, uma disputa entre ataque e defesa, uma luta de destruição recíproca. Todas as metáforas do xadrez são metáforas de guerra. The Queen’s Gambit é uma história típica da Guerra Fria, e reflete a vivência do autor do romance original, Walter Tevis (1928-1984).  Pelos comentários que li, a reconstituição dos ambientes dos torneios, bem como das partidas em si, é impecável. Acredito.
 
A certa altura, Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster), o campeão norte-americano que se torna um dos mentores de Beth, comenta sobre os enxadristas russos: “Eles são bons porque jogam coletivamente. Todos treinam juntos e corrigem os defeitos uns dos outros. Nas partidas adiadas, analisam cada jogada, conjuntamente. Nós norte-americanos acreditamos no talento individual, que ganha tudo sem a ajuda de ninguém”. Eles adotam o sistema russo, e batem os russos. Nessa reflexão não me parece haver uma intenção de comparar o individualismo capitalista e o socialismo soviético. (Claro que quem quiser interpretar assim tem pano para as mangas.)
 
O importante, que se concretiza no capítulo final, é o fato de que na URSS o xadrez fazia parte da cultura popular, e nos EUA não. Na URSS o xadrez era jogado por centenas de velhinhos, na praça, ao ar livre, num frio de zero grau. Os campeonatos eram transmitidos e comentados pelo rádio como se fosse uma Copa do Mundo. Num ambiente assim, mais do que o nacionalismo político o que se impõe (como tantas vezes ocorre na arte e no esporte) é o amor ao talento. Depois de derrotar o campeão russo, Harmon é agarrada em delírio pela multidão de russos. Por que? Porque eles sentem ali a presença do talento, da Grande Arte.


 
É como quando vi a torcida sueca comemorar a derrota de 5x2 para o Brasil de Garrincha e Pelé, ou quando vi Lionel Messi destroçar o time do Real Madrid, no estádio Santiago Bernabeu, e sair de campo aplaudido pela torcida adversária. O amor ao jogo (a um valor abstrato, não utilitário, mas dotado de uma ética, uma estética e uma moral próprias) pode ser, em casos muito especiais, um elemento capaz de transpor fronteiras e neutralizar parcialmente os conflitos de outra natureza.
 







Um comentário:

Marcia disse...

Agradeço seus comentários brilhantes